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"Silverview" é o 26.º livro de Le Carré, que se estreou nos romances de espionagem há 60 anos, com "Call of the Dead"
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"Silverview" é o 26.º livro de Le Carré, que se estreou nos romances de espionagem há 60 anos, com "Call of the Dead"

picture alliance via Getty Image

"Silverview" é o 26.º livro de Le Carré, que se estreou nos romances de espionagem há 60 anos, com "Call of the Dead"

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Pré-publicação. O primeiro capítulo do último livro de John Le Carré, "Silverview"

Um espião, um livreiro e um homem misterioso protagonizam "Silverview", o último livro de Le Carré. É publicado esta terça-feira e o Observador revela um excerto.

O livro ficou pronto antes da morte de John Le Carré (a 12 de dezembro de 2020), com o aval do escritor para que fosse publicado. Surge agora, 10 meses após o mundo dos espiões ter perdido o seu mais popular autor. Silverview é o título e chega às livrarias de todo o mundo em simultâneo, numa espécie de último adeus a um dos homens que ajudou a definir a imagem do agente secreto na cultura popular (e que viu a obra ser adaptada ao cinema e à televisão).

Neste que é o 26.º livro de Le Carré, os protagonistas são figuras caras à memória do autor: um, Julian Lawndsley, é o dono de uma livraria numa pequena localidade inglesa costeira distantes da capital inglesa que o atormentava; outro, Edward, é um emigrante polaco que entra nessa mesma livraria e parece saber muito sobre a família do pacato livreiro; o terceiro é um espião que deixa Londres a caminho da tal vila costeira, com a informação de que há por ali perigo a acontecer.

A propósito do lançamento de “Silverview”, o Observador publica o primeiro capítulo do livro que fica disponível a partir desta terça-feira, dia 12 de outubro. Neste excerto, o agente de segurança doméstica dos serviços secretos britânicos recebe uma misteriosa carta que motiva o início da investigação que haverá de marcar o livro.

A capa de "Silverview", o novo livro de John le Carré, obra póstuma, a única que deixou terminada (Dom Quixote, nas livrarias esta terça feira, dia 12 de outubro)

Às 10 horas de uma manhã chuvosa no West End de Londres, uma jovem mulher, com um anoraque largo e um cachecol de lã puxado sobre a cabeça, avançava resolutamente, a passos largos, debaixo da tempestade inclemente que se abatia sobre South Audley Street. Chamava-se Lily e encontrava-se num estado de ansiedade emocional que ocasionalmente se transformava em indignação. Com uma mão enluvada, protegia os olhos da chuva enquanto mirava os números das portas, e com a outra conduzia um carrinho de bebé, protegido por uma capa de plástico, que continha Sam, o seu filho de dois anos. Algumas casas eram tão grandiosas que nem tinham números. Outras tinham números mas ficavam na rua errada.

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Ao chegar a uma entrada pretensiosa que exibia um número pintado com uma clareza invulgar num pilar, subiu os degraus às arrecuas, içando o carrinho de bebé atrás de si. Chegada ao cimo, franziu o sobrolho para a lista de nomes ao lado dos botões das campainhas e premiu o que se encontrava mais abaixo.

– Basta empurrar a porta, minha querida – informou-a uma bondosa voz feminina pelo intercomunicador.
– Preciso de falar com o Proctor. Ela disse o Proctor ou ninguém – retorquiu Lily de imediato.
– O Stewart vai já aí, minha querida – anunciou a mesma voz tranquilizadora. Segundos depois, a porta da rua abriu-se e revelou um homem alto e magro, de óculos, de uns cinquenta e tal anos, com o corpo curvado para a esquerda e uma cabeça alongada inclinada numa expressão interrogativa meio divertida. Uma mulher com aspeto de matrona e cabelo branco, de casaco de malha, apareceu junto do seu ombro.
– Sou o Proctor. Em que posso ajudá-la? – perguntou ele, espreitando para dentro do carrinho.
– Como sei que é o senhor? – redarguiu Lily, em resposta.
– Porque a sua respeitável mãe telefonou ontem à noite para o meu número privado e solicitou-me que estivesse aqui hoje.
– Ela disse sozinho – objetou Lily, lançando um olhar carregado à matrona.
– A Marie trata da casa. E também não se importa de dar uma ajuda, quando é necessário – disse Proctor.

Levando o carrinho para o vão da escada, onde estava mais escuro, Lily procurou no cesto da parte de baixo, extraiu um grande envelope branco sem nada escrito e postou-se diante de Proctor. O meio sorriso dele recordava-lhe o sacerdote idoso a quem ela deveria confessar os pecados no colégio interno. Não tinha gostado do colégio, não tinha gostado do sacerdote e não tencionava gostar de Proctor agora.

A matrona avançou, mas Lily entrou ignorando-a, e Proctor fechou a porta atrás dela. No silêncio do grande vestíbulo, Lily enrolou a proteção de plástico até a parte superior da cabeça do menino adormecido ficar visível. Tinha cabelo preto encaracolado e uma expressão invejavelmente satisfeita.

– Esteve acordado toda a noite – disse Lily, pousando uma mão na fronte da criança.
– É lindo – disse a mulher Marie.

Levando o carrinho para o vão da escada, onde estava mais escuro, Lily procurou no cesto da parte de baixo, extraiu um grande envelope branco sem nada escrito e postou-se diante de Proctor. O meio sorriso dele recordava-lhe o sacerdote idoso a quem ela deveria confessar os pecados no colégio interno. Não tinha gostado do colégio, não tinha gostado do sacerdote e não tencionava gostar de Proctor agora.

– Devo ficar aqui e aguardar que a leia – informou-o.
– Claro que sim – concordou Proctor amavelmente, examinando-a de esguelha através dos óculos. – E é-me também permitido dizer que lamento imenso?
– Se tiver uma resposta a dar, levar-lha-ei de viva voz – disse ela. – Ela não quer telefonemas, mensagens nem emails. Nem do Serviço nem de ninguém. Incluindo o senhor.
– Isso é também muito triste – comentou Proctor após um momento de reflexão soturna. Como se só nesse momento se apercebesse do envelope que segurava na mão, tateou-o interrogativamente com os dedos nodosos. –Uma bela obra, devo dizer. Quantas páginas pensa que terá?
– Não sei.
– Material de escrita caseiro? –Tateava ainda. –Não pode ser. Ninguém tem sobrescritos e papel de carta deste tamanho em casa. Apenas papel normal de impressão, creio.
– Não vi o que vem lá dentro. Já lhe disse.
– Claro que sim. Bom – com um sorrisinho cómico que a desarmou momentaneamente –, ao trabalho, então. Ao que parece, tenho uma grande leitura pela frente. Dá-me licença que me retire?

Numa sala de estar fria, do outro lado do vestíbulo, Lily e Marie sentaram-se frente a frente em cadeirões de braços com estofos irregulares, de padrão escocês. Sobre uma mesa com tampo de vidro riscado, posta entre elas, havia um tabuleiro de latão com um termo de café e bolachas digestivas de chocolate. Lily recusou ambos.

– Como está ela? – perguntou Marie.
– Tão bem como seria de esperar, obrigada. Quando se está a morrer.
– Pois, é tudo horrível, claro. É sempre. Mas de cabeça, como está ela? – Ainda joga com o baralho todo, se é o que quer saber. Não toma morfina, não a aprova. Desce para jantar, quando consegue.
– E ainda aprecia a comida, espero?

John Le Carré, nascido David John Moore Cornwell, morreu a 12 de dezembro do ano passado. Tinha 89 anos

Getty Images

Incapaz de aturar mais aquilo, Lily dirigiu-se ao vestíbulo e manteve-se ocupada com Sam até Proctor aparecer. O aposento dele era mais pequeno do que o primeiro e mais escuro, com cortinas de filó sujas e muito grossas. Preocupado em manter uma distância respeitosa entre ambos, Proctor instalou-se perto de um radiador, na parede ao fundo. Lily não gostou da expressão no rosto dele. És oncologista no Hospital de Ipswich e o que estás prestes a dizer é apenas para a família chegada. Vais dizer-me que ela está a morrer, mas isso sei eu, portanto, o que mais pode ser?

– Estou a admitir que sabe o que a carta da sua mãe diz – começa Proctor numa voz neutra, a não parecer já o sacerdote a quem ela não se confessaria, mas antes uma pessoa muito mais real. Acrescenta, ao vê-la fazer menção de negar: – A ideia geral, pelo menos, se não o exato teor.
– Já lhe disse – retorquiu Lily com brusquidão. – Nem a ideia geral nem o resto. A mamã não me disse e eu não perguntei.

É o jogo que costumávamos fazer no dormitório: quanto tempo consegues fitar a outra rapariga sem pestanejar nem sorrir?

– Muito bem, Lily, ponhamos as coisas de outro modo – sugeriu Proctor com um paternalismo irritante. – Não sabe o que diz a carta. Não sabe do que trata. Mas disse a um ou outro amigo que ia dar um saltinho a Londres para a entregar. A quem disse, então? É que precisamos mesmo de saber.
– Não disse a porra de uma única palavra a ninguém – retorquiu Lily sem desviar os olhos do rosto inexpressivo do outro lado do aposento. – A mamã disse para não o fazer, por isso não o fiz.
– Lily.
– O que é?
– Não sei muito sobre as suas circunstâncias pessoais. Mas o pouco que sei diz-me que deve ter um parceiro qualquer. O que lhe disse a ele? Ou, caso seja uma mulher, a ela? Não pode simplesmente desaparecer um dia inteiro da sua desventurada casa sem alegar um pretexto qualquer. Não seria mais humano dizer, assim de passagem, a um namorado, a uma amiga, a um colega… até mesmo a um conhecimento de ocasião, «Sabes que mais? Vou dar uma saltada a Londres para entregar uma carta supersecreta da minha mãe»?
– Está a dizer-me o que é humano? Para nós? Falar assim uns com os outros? A um conhecimento de ocasião? O que é humano é a mamã dizer-me que não quer que conte a ninguém e, por isso, eu não o fazer. Além disso, fui doutrinada. Pela vossa laia. Estou metida ao barulho. Há três anos encostaram-me uma pistola à cabeça e disseram-me que já era crescida o suficiente para guardar um segredo. Além disso, não tenho parceiro nem tenho um monte de amigas com quem tagarelar.

De novo o jogo do olhar fixo.

– E também não disse ao meu pai, se é isso que está a perguntar – acrescentou ela num tom que soava mais a confissão.
– A sua mãe estipulou que não lhe dissesse? – perguntou Proctor, bastante mais incisivo.
– Não me disse que devia, por isso não disse. É como somos. É como é na nossa casa. Andamos à volta uns dos outros em bicos de pés. Talvez em sua casa seja igual.
– Diga-me, então, se não se importa – prosseguiu Proctor, passando ao lado do que a sua família fazia ou deixava de fazer –, e só por curiosidade: que razão apresentou para vir hoje a Londres?
– Refere-se à história que inventei?

"Se disse que ia com o Sam visitar uma escola e a visitar, e quando chegar a casa disser que a visitou, onde está a mentira? Já basta a tensão em que anda, sem isso. Nem consigo imaginar como consegue aguentar tudo."

Do outro lado do aposento, o rosto esguio animou-se.

– Sim, suponho que sim – admitiu Proctor, como se a invenção de uma história fosse um conceito novo para ele, um conceito, ao que parecia, divertido.
– Andamos à procura de um infantário na nossa zona. Ao pé do meu poiso em Bloomsbury. Para pôr o Sam na lista, para quando tiver três anos.
– Admirável. E vai mesmo fazer isso? Procurar um infantário a sério? Você e o Sam? Encontrar-se com o pessoal e isso? Inscrevê-lo? – Proctor agora o tio preocupado, e bastante convincente nesse papel.
– Depende de como o Sam estiver, quando sair daqui com ele.
– Veja, por favor, se consegue – instou Proctor. – Vai tornar tudo mais fácil, quando voltar.
– Mais fácil? Mais fácil o quê? – A exaltar-se de novo.
– Quer dizer mais fácil mentir?
– Quero dizer mais fácil não mentir – corrigiu-a Proctor, sério. – Se disse que ia com o Sam visitar uma escola e a visitar, e quando chegar a casa disser que a visitou, onde está a mentira? Já basta a tensão em que anda, sem isso. Nem consigo imaginar como consegue aguentar tudo.

Durante um momento desconfortável, ela percebeu que ele falava a sério.

– Portanto, permanece a dúvida – continuou Proctor, regressando ao que interessava. – Que resposta devo pedir-lhe que leve à sua extremamente corajosa mãe? Porque ela merece-a. E deve tê-la.

Fez uma pausa, como se esperasse a ajuda dela. Como não a recebesse, prosseguiu:

– E, como disse, só pode ser de viva voz. E terá de lha dar sozinha. Lily, lamento mesmo muito. Posso começar?
– Começou, sem esperar autorização. – A nossa resposta é um sim imediato a tudo. Ou seja, três sins no total. A mensagem dela foi levada a sério. As suas preocupações serão tidas em conta. E todas as suas condições serão integralmente satisfeitas. Consegue lembrar-se de tudo isto?
– Não sou burra.
– E, claro está, um grande obrigado a ela pela sua coragem e lealdade. E pela sua também, Lily. Uma vez mais. Lamento muito.
– E o meu pai? O que devo dizer-lhe? – perguntou Lily, não satisfeita.

De novo aquele sorriso cómico, como uma luz de aviso.

– Ah, sim, hum… Pode contar-lhe tudo sobre o infantário que vai visitar, não pode? Afinal de contas, foi essa a razão que a trouxe hoje a Londres.

Com os pingos da chuva a ricochetearem no passeio em sua direção, Lily caminhou até Mount Street, onde mandou parar um táxi e pediu ao motorista que a levasse à estação de Liverpool Street. Talvez tivesse mesmo tido intenção de visitar o infantário. Já não sabia. Talvez tivesse anunciado isso na noite anterior, embora tivesse dúvidas, porque nessa altura já tinha decidido nunca mais dar explicações a ninguém. Ou talvez a ideia não lhe tivesse ocorrido até Proctor lha arrancar. A única coisa que sabia era: não ia visitar nenhuma porra de infantário por causa de Proctor. Que se lixasse isso, e as mães moribundas e os seus segredos, e tudo aquilo.

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