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Os escombros da Ponte de Entre-Os-Rios a 05 de março de 2021, um dia depois da queda, durante as operações de busca e resgate
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Os escombros da Ponte de Entre-Os-Rios a 05 de março de 2021, um dia depois da queda, durante as operações de busca e resgate

João Abreu Miranda/Agência Lusa

Os escombros da Ponte de Entre-Os-Rios a 05 de março de 2021, um dia depois da queda, durante as operações de busca e resgate

João Abreu Miranda/Agência Lusa

Sete histórias na primeira pessoa de quem viveu a tragédia de Entre-os-Rios, 20 anos depois

Há 20 anos, 59 pessoas morreram quando a Ponte Hintze Ribeiro caiu ao Douro. Sete pessoas, dos familiares das vítimas aos mergulhadores, recordam a tragédia na primeira pessoa.

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Passavam dez minutos das nove da noite daquele domingo, 4 de março de 2001, quando a Ponte Hintze Ribeiro, na localidade de em Entre-os-Rios, colapsou devido à chuva forte que caiu ao longo do fim de semana. O quarto pilar, praticamente despido da areia que o suportava e perante a forte pressão do caudal do Douro, desmoronou-se e arrastou o tabuleiro, que se desfez em dois. Sobre ele, naquele momento, passava um autocarro com 53 pessoas e três automóveis com mais seis. As 59 morreram, mas só 23 corpos foram resgatados, alguns dos quais muitas semanas depois, na costa espanhola da Galiza.

Passaram-se duas décadas desde que Portugal viveu o maior desastre rodoviário da sua história. O Observador falou com sete pessoas envolvidas no acidente, desde o bombeiro que testemunhou a queda da ponte ao pai que perdeu o filho com 21 anos, passando pelos bombeiros e mergulhadores que durante três meses vasculharam o rio Douro em busca de respostas para a tragédia de Entre-os-Rios. Todos contam na primeira pessoa as memórias que guardam daquela noite e como ela lhes transformou a vida, 20 anos depois.

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António Salazar

A única pessoa que viu o momento em que a ponte colapsou

“Estava de frente ao autocarro [que viria a cair], na minha viatura do Serviço Nacional de Bombeiros. Tinha dois ou três carros à minha frente e, em sentido contrário, percebi pelas luzes que vinha um autocarro. De repente, ouvi um grande estrondo e vi o autocarro a desaparecer num ápice. 

Percebi que tinha caído ao rio e que me competia a mim fazer alguma coisa, ninguém me perdoaria se não fizesse nada. No momento, pensei que o autocarro tinha caído sozinho. Depois percebi que, se tivesse simplesmente galgado as margens, não desaparecia assim de repente.

Saí da minha viatura e comecei a caminhar pela ponte, convencido que ela existia. Cheguei a determinada altura e só por milagre, ou chamem-lhe o que quiserem, é que não caí. De repente, percebi que não havia mais ponte. Olhei para baixo e vi o autocarro a desaparecer, afundando-se pela água do rio. Naquele momento, eu não caí da ponte, mas ela caiu-me em cima.

Cheguei a determinada altura e só por milagre, ou chamem-lhe o que quiserem, é que não caí. De repente, percebi que não havia mais ponte. Olhei para baixo e vi o autocarro a desaparecer, afundando-se pela água do rio. Naquele momento, eu não caí da ponte, mas ela caiu-me em cima.
António Salazar, inspetor do Bombeiros de Viseu e única testemunha ocular da queda da ponte

A única pessoa que tinha comunicações era eu, porque tinha vários rádios no meu carro de serviço, por isso dei o primeiro alerta aos meus superiores para mobilizar as operações. Comigo estavam a minha mulher e a minha filha, que também era bombeira e me ajudou muito nestas tarefas.

O carro do meu filho foi o último a atravessar a ponte antes de o autocarro começar a travessia — como o tabuleiro era estreito, era preciso passar-se num sentido de cada vez. Ele e a mulher tinham estado na minha casa a passar o domingo.

Muito possivelmente ele e a minha nora podiam estar também no fundo do rio, mas nem sequer pensei mais neles quando a ponte caiu. Ele, a caminho do Porto, viu várias viaturas de bombeiros a caminho de Entre-os-Rios, por isso telefonou-me para saber o que se passava. Só nesse momento é que pensei: “Eh pá, o nosso filho podia ter morrido”. Agi sobretudo como profissional, mas não por vontade própria: foi instintivo.

Movimentou-se muita gente, as luzes das lanternas e dos geradores apontaram-se todas ao rio, mas para nada. Quando concluímos que o tabuleiro da ponte tinha caído e que mais três carros, que seguiam atrás do autocarro, tinham caído também, só nos restava fazer uma operação de resgate. Só que não sabíamos quando, nem sabíamos como.

Nessa mesma noite, ainda entraram alguns botes no rio em busca das vítimas. O rio transportava imensos troncos na água que, no meio daquela escuridão profunda, se confundiam com pessoas. A vontade era enorme de encontrar alguém, mesmo que sem vida, só queríamos encontrar os cadáveres para que as pessoas viessem a fazer o luto. Infelizmente, nem com todos os esforços que fizemos conseguimos recuperar toda a gente.

Fui a última pessoa a sair de lá. De manhã, pela aurora, ainda se tentou mergulhar no rio, mas era impossível: os mergulhadores eram arrastados, o volume da água era enorme e a força era terrível. Basta ver que, creio que dois dias depois, apareceram os cadáveres de seis pessoas na Costa da Morte — vejam lá, que nome… — na Galiza. A velocidade com que elas foram transportadas para atravessar o rio, a barragem, chegar à foz do Douro e dali o mar levá-las para Norte.

Foram tempos complicados, mas acho que não me perturbou tanto porque já tinha algum traquejo. Tenho alma de bombeiro. Naquela altura já tinha criado uma corporação e já tinha participado no combate a incêndios, com mortes de companheiros nossos. Isso dá-nos um certo calo, uma certa frieza.

Mas claro, temos compaixão por todos: havia um poeta que dizia que quando os sinos dobram, dobram por todos nós. Os familiares chegavam ao pé de nós com um sofrimento medonho estampado na cara. Nunca tinha havido um acidente rodoviário daquela envergadura em Portugal.

A minha tristeza maior é que estou absolutamente convencido de que ainda não estamos preparados. Marcou-me, por exemplo, a despedida do comandante Ezequiel, que além de ser muito competente, era também um humanista. No dia em que se despediu, chegou-se à beira do rio e lançou um ramo de flores. Mostrou quem era, para além da capacidade de trabalho que tinha.”

Paulo Teixeira

O autarca que aprendeu em Entre-Os-Rios a falar com os jornalistas

“Na véspera da tragédia das Entre-os-Rios tinha chovido torrencialmente e o país vivia sobressaltado com a possibilidade de mais uma grande cheia, com a água quase a chegar à ponte histórica de Amarante. No domingo à noite, estava em casa do meu sogro — tinha sido pai há 35 dias e estava a viver com ele.

Tínhamos acabado de jantar quando recebi um telefonema, eram 21h15. Era um amigo meu que vivia em Marco de Canaveses, mas já na fronteira, de frente para a ponte. Disse que havia muitas sirenes em direção à ponte e que teria havido um acidente no tabuleiro. 

De minha casa vejo a ponte de Entre-os-Rios. Fui à varanda, mas estava muito escuro — a única coisa que via eram as sirenes. Por isso, fui com o meu sogro até à zona da ponte. Havia muita gente aos gritos. Entrei na ponte a pé e houve uma senhora que me disse: “Senhor presidente, não avance mais que não tem mais ponte”. Ainda dei mais uns passos, mas constatei que era mesmo assim.

Ouvia-se um barulho muito forte da água a passar mesmo junto ao que restava da ponte. Normalmente, a água costuma estar afastada a uns 150 metros do tabuleiro, mas em pleno inverno atinge o encosto da ponte. Fiquei atónito, até porque já se tinha reclamado uma nova ponte há muito tempo. Recordo-me de ter dito a um bombeiro que seria melhor colocar uma rede na Barragem de Crestuma para evitar que as vítimas e os veículos passassem dali, mas ele disse-me que a água já ultrapassava a barragem.

Às três da manhã, uma estação emissora pediu-me para fazer um comentário a uma intervenção que o ministro Jorge Coelho ia fazer ao país. Nunca tinha falado em direto. Estava há dois anos na Câmara Municipal, mas tinha pouca experiência de contacto com a comunicação social. Por isso, comentar uma afirmação que não sabia qual era, de um ministro com um peso importantíssimo no Governo, deixou-me atrapalhado.

Ao meu lado, naquele momento, estava o presidente da Câmara de Gaia, Luís Filipe Menezes, que apareceu à minha beira para saber como podia ajudar. Perguntei-lhe o que achava que devia dizer. Respondeu: “Sei lá, diz o que pensas, diz o que te vai na alma”. 

Sentia-me revoltado. Já tinha sido recebido por dois secretários de Estado. O primeiro disse-me que a construção da nova ponte era premente, mas não era urgente. O outro disse que andava a fazer política com a nova ponte sobre o Douro, o que me ofendeu. Foi essa a revolta que manifestei.

Fiquei ali toda a noite, mas só quando o dia começou a despontar é que começámos a reparar na ausência dos pilares, a ausência do tabuleiro. Estava nevoeiro, e quando ele desapareceu é que vimos que realmente já não havia ponte. Questionei-me: “O que terá acontecido?”. A incerteza era muita.

A corrente da água era muito forte. Fui receber mergulhadores franceses que vinham ajudar nas buscas, que me perguntaram a que velocidade estava o rio. Disse-lhes que não era especialista, mas que me tinham dito que eram 40 quilómetros por hora. Eles olharam para mim e disseram: “Mas então, o que viemos aqui fazer? Com essa velocidade não encontramos nada no rio”.

Fui receber mergulhadores franceses que vinham ajudar nas buscas, que me perguntaram a que velocidade estava o rio. Disse-lhes que não era especialista, mas que me tinham dito que eram 40 quilómetros por hora. Eles olharam para mim e disseram: "Mas então, o que viemos aqui fazer? Com essa velocidade não encontramos nada no rio".
Paulo Ramalheira Teixeira, presidente da Câmara Municipal de Castelo de Paiva em 2001

Também houve uma experiência em que um mergulhador da nossa Marinha aceitou descer dentro de uma gaiola para dentro do rio, para ver se assim conseguia detetar alguma coisa. Era quase impossível porque a água estava muito barrenta. Os mergulhadores chegaram a deitar uma pedra de granito de 30 toneladas ao rio e ela andou uma série de metros a flutuar na água. Trinta toneladas! É uma coisa impensável.

Mas encontrar os corpos era a nossa prioridade. O nosso país é profundamente católico, nesta região ainda mais, e precisávamos disso para fazer o luto. Não podia dizer aos microfones da televisão que os corpos não iam aparecer, ainda por cima sem a possibilidade de falar com todos os familiares ao mesmo tempo.

É por isso que ao segundo ou terceiro dia pedi ao Professor José Eduardo Pinto da Costa, que era o diretor do Instituto de Medicina Legal na altura, para ele explicar do ponto de vista psiquiátrico o que se podia esperar dali. O que ele disse acabou por ser uma realidade: os corpos poderiam nunca aparecer. Dos 59 corpos apareceram 23.

Passo junto à ponte todos os dias para ir trabalhar e todos os dias recordo aqueles 30 dias seguidos que passei ali. Ninguém estava preparado para isto — nem a região, nem o país, nem a Europa.”

Alves da Cunha

O militar que viveu em Entre-Os-Rios uma das suas piores noites

“Foi um dia de muita chuva e previa-se que pudesse haver cheias. Tinha estado de prevenção na Delegação Distrital do Porto, da Proteção Civil. Era para ser substituído por volta das 19h30, mas o rapaz atrasou-se e chegou já passava das 20h. A minha ideia era jantar rapidamente e depois ir à missa na Igreja dos Clérigos, que era às 21h30.

Quando me sentei para começar a jantar, recebi uma chamada do inspetor dos bombeiros: “Oh senhor coronel, a ponte de Entre-os-Rios caiu abaixo”. Ninguém estava à espera que aquilo acontecesse e não julguei que fosse verdade. Respondi-lhe com uma linguagem vicentina, julgando que ele estava na brincadeira. Disse-me: “Não, pá, caiu mesmo!”.

Já nem comi. Telefonei para quem tinha de telefonar, peguei no meu carro, deixei-o na delegação e fui para Entre-os-Rios. Cheguei lá antes das 22h30. Estava uma confusão daquelas que não me lembro de ter visto antes. Não havia luz e não se via nada, a ponte não existia, as comunicações telefónicas estavam em baixo. O único telefone que funcionava era o meu.

Ninguém sabia ao certo o que se passava. Havia notícias desencontradas, mas confirmámos que um autocarro tinha caído ao rio quando telefonámos para a operadora rodoviária. Saí de Entre-os-Rios às quatro da manhã, cheguei ao Porto, fui para casa, tomei banho, tomei o pequeno-almoço e segui novamente para lá.

As pessoas, aflitas, tinha afluído todas para a margem do rio e havia muitos carros de bombeiros. Ainda não se sabia quantos veículos tinham caído, quantas pessoas tinham caído ao rio, mas umas horas depois recuperou-se o primeiro corpo — uma senhora que estava agarrada ao tronco de uma árvore na margem esquerda.

Disseram-me que era alguém que nadava extraordinariamente bem. Dizia-se que devia ter saído do carro e tentado nadar, mas com a água fria deve ter morrido por hipotermia. Não havia esperança nenhuma em encontrar alguém com vida. Toda a gente sabia que quem tinha caído ao rio só podia ter morrido. Só quem tivesse uma fé em Deus muito grande é que ainda acreditava que alguém se tivesse salvado.

Por essa altura, alguém que morava na margem direita do rio dizia ter visto umas luzes a correr ao longo do rio que depois desapareceram. Pensámos que ela estaria sonhar ou que estava a interpretar coisas de forma errado. O que é certo é que o local onde viu as luzes desaparecer foi o mesmo onde, passado cerca de dois meses, foi detetado o automóvel de um rapaz de Cinfães. O corpo dele é que não estava lá dentro.

O que é certo é que o local onde viu as luzes desaparecer foi o mesmo onde, passado cerca de dois meses, foi detetado o automóvel de um rapaz de Cinfães. O corpo dele é que não estava lá dentro. Foi a coisa mais triste a que assisti, essa.
Alves da Cunha, oficial do Exército e coordenador das operações da Proteção Civil

Foi a coisa mais triste a que assisti, essa. A minha função era de apoio, responsabilizei-me pelo contacto com as populações, e foi assim que contactei com o pai do rapaz. Ele tinha ido ao encontro da namorada para lhe entregar a aliança de noivado. Estava para casar.

Quando ele se aproximou da ponte, ela já tinha ido abaixo. Alguém na estrada fez-lhe sinal para travar, mas ele não fez caso, acelerou e caiu ao rio. O carro foi encontrado a uns 400 metros da ponte. Estava direito com os vidros abertos. Emanava um cheiro nauseabundo, por isso imaginei que o corpo estava lá dentro a decompor-se.

As portas foram rebentadas para se retirar a areia no interior, mas não encontrámos ninguém. O pai tinha um ar de tristeza grande, mas era daquelas pessoas que, apesar da mágoa, não insultava ninguém, não gritava com ninguém, esperando que nós descobríssemos o filho dele.

Dizer ao pai que o filho tinha desaparecido custou-me imenso. Isto marcou-me bastante. Ao longo da minha vida, tive de lidar com muitas mortes trágicas, algumas delas em combate, mas a vida é assim e tive de ultrapassar. Só que esta foi das piores noites da minha vida.”

Salvador Almeida

O bombeiro que recorda o medo de explorar as profundezas da barragem

“Fiquei chocado, sem conseguir falar durante uns bons segundos, quando me ligou o presidente de Câmara de Gaia, Luís Filipe Menezes, a dizer que tinha caído a ponte de Entre-os-Rios. Nessa mesma noite arrancámos com uma equipa para lá e, durante meses, fomos todos os dias prestar o nosso apoio. Era uma tragédia tão grande que precisávamos de fazer o que podíamos.

Estava um dia de muita chuva, muito nevoeiro e via-se muito mal. A única coisa que vi foi que a ponte tinha deixado de ser contínua. Aquela imagem era surreal e provocou-me muita consternação: sou engenheiro civil e quando vemos que uma grande obra como uma ponte caiu não queremos acreditar nos nossos olhos. Aquela já era muito antiga, sabia-se que tinha problemas, mas nada nos fazia crer que um desastre daqueles ia acontecer. Hoje continuo sem conseguir conceber que uma coisa desta natureza pode mesmo acontecer.

Nós fazíamos tudo o que podíamos, mas era uma impotência tremenda. Falávamos de quantas pessoas tinham caído, quantos automóveis tinham sido arrastados, mas sabíamos que não íamos salvar ninguém. Fiquei estupefacto, horrorizado, sem palavras. Tudo o que queríamos era encontrar os corpos das vítimas para entregar às famílias, para cumprir a missão, mas houve tanta gente que ficou por encontrar. De alguma forma, mantivemos sempre a esperança de resgatar alguns corpos e conservávamos a expectativa de o mar devolver os outros. Nunca conseguimos e isso é dramático para nós.

Experimentámos de tudo. Lembro-me perfeitamente da preparação psicológica que recebemos para os mergulhadores explorarem o fundo da barragem. Era um mergulho em profundidade com uma visibilidade nula, sentíamos um medo terrível do que estava para acontecer, mas tinha de ser feito. Sempre entendi que, enquanto bombeiro, para salvar uma vida era preciso arriscar a nossa. Ali não era para salvar ninguém, mas tínhamos ainda assim a missão de confortar a família da vida que se perdeu.

Era um mergulho em profundidade com uma visibilidade nula, sentíamos um medo terrível do que estava para acontecer, mas tinha de ser feito. Sempre entendi que, enquanto bombeiro, para salvar uma vida era preciso arriscar a nossa. Ali não era para salvar ninguém, mas tínhamos ainda assim a missão de confortar a família da vida que se perdeu.
Salvador Almeida, comandante dos Bombeiros Sapadores de Vila Nova de Gaia na altura do acidente

O rio estava medonho ao longo daqueles dias e o que vivemos dentro dele foi fantasmagórico. Quase inacreditável. Mergulhámos até ao fundo da barragem, encontrámos muito lixo e muita madeira, mas não se conseguiu encontrar ninguém. Foi em vão. E não foi por falta de meios que não encontrámos toda a gente, nem por falta de empenho. Foi porque a natureza não ajudou. Isso pelo menos deixa-nos de consciência mais tranquila.”

Augusto Moreira

Perdeu a mãe, o irmão e amigos. Transformou a dor num projeto social

“Estava a ver um jogo de futebol na televisão e apercebi-me pelo rodapé que tinha caído uma ponte em Castelo de Paiva, mas não prestei grande atenção. Entretanto, um familiar meu chegou a casa e disse-me que a ponte de Entre-os-Rios tinha caído. No dia seguinte, tinha de acordar às 5h30 para ir ao Porto e isso obrigava-me a passar por ali. Nessa altura chamou-me a atenção porque teria de procurar uma alternativa no meu percurso.

Fui descansar, mas quando me deitei não fiquei tranquilo. Algo me dizia que poderia ter acontecido qualquer coisa com algum familiar. Levantei-me, fui conversar com os vizinhos sobre o que se passava. Um deles disse-me que havia um grande alvoroço porque uma excursão tinha caído ao rio Douro.

Não fiquei tranquilo: sabia que a minha mãe tinha viajado numa das excursões para ver as amendoeiras em flor em Foz Coa. Telefonei, mas não consegui falar, por isso fui para a freguesia onde morava a minha mãe. As pessoas estavam todas na rua de olhos postos no rio e confirmaram-me que a minha mãe ainda não tinha chegado. Foi também nesse momento que soube que o meu irmão tinha viajado com ela.

Fui para a zona da ponte. À medida que o tempo ia passando, já de manhã, fui-me consciencializando que eles deviam ser vítimas do acidente — eles e muitos amigos de infância que também estavam na excursão. Foi muito sofrimento: era a dor de perder os meus familiares e amigos; e a dor de ver outros amigos a sofrerem também. E mais: sentia que me tinha despedido de todos eles.

À medida que o tempo ia passando, já de manhã, fui-me consciencializando que eles deviam ser vítimas do acidente — eles e muitos amigos de infância que também estavam na excursão. Foi muito sofrimento: era a dor de perder os meus familiares e amigos; e a dor de ver outros amigos a sofrerem também.
Augusto Moreira, presidente da Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios

Na sexta-feira anterior tinha sido Carnaval. O meu filho tinha estado com a avó nesse dia e perguntou se poderia ficar com ela no fim de semana, mas disse que não, porque íamos a Ovar passear. Lanchámos e jantámos com ela, depois fomos para umas atividades de Carnaval onde estive com esses meus amigos. Parecia que era mesmo uma despedida.

Os corpos dos meus familiares nunca foram encontrados, mas a carteira da minha mãe foi dar à costa de Espanha. Isso dificultou muito o nosso processo de luto: nós só acreditamos realmente quando vemos com os nossos próprios olhos. A certa altura, tudo o que queríamos era que eles fossem encontrados para termos algo concreto em que suportar o nosso sofrimento.

Depois de ter passado a manhã junto à ponte, só ao terceiro dia é que voltei lá. Víamos as imagens na televisão, mas sentia um espírito de negação sobre o desaparecimento. Quando vi os destroços tive a consciência da realidade. Percebi nessa altura que era importante envolver-me nas operações, que os familiares das vítimas acompanhassem o processo.

Foi nessa altura que arrancou a Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios.

Isto mudou completamente a nossa região. Quem cuidava dos nossos filhos eram os avós, que foram a maioria das vítimas do acidente. 

Começámos por ser umas seis ou sete famílias que se reuniam de dois em dois dias para conversar sobre isto, chegou a ser algo terapêutico partilharmos aquilo que sentíamos uns com os outros. Havia uma comunicação de grupo muito boa. Mas também serviu para pressionar nas operações de busca.

O último corpo a ser descoberto foi fruto da iniciativa dos familiares. Já se pretendia parar com as operações de busca, mas nós exigimos que continuassem enquanto os destroços da ponte não fossem retirados. Foi o que aconteceu: quando se levantaram esses destroços, encontrou-se uma vítima — a 26.ª.

Comecei a ter acompanhamento psiquiátrico, mas entendi que precisava de fazer mais pela minha saúde mental. Sentia uma grande revolta porque o meu irmão tinha estado numa manifestação pouco tempo antes para alertar para a degradação da ponte. A minha forma de fazer o luto foi transformar essa revolta em força. O grupo de famílias deu origem a uma associação com um projeto social, onde investimos o dinheiro das indemnizações. Foi uma terapia. E deve deixar felizes os nossos familiares e amigos.”

Manuel Gonçalves

Descobriu que o filho e a namorada tinham caído ao rio

“Eram 21h30 quando a minha mulher chegou a casa e me disse que a ponte tinha caído. Os nossos filhos não estavam em casa, por isso começámos a tentar perceber onde estariam. O mais velho estava em casa. A minha filha estava na casa dos sogros e, quando regressava a casa, já não a deixaram passar porque a ponte tinha caído. Mas não sabíamos do meu filho Paulito, que tinha 21 anos.

A minha mulher ficou alarmada, mas disse-lhe que era preciso ter fé. Fui a casa dele, onde morava com a namorada, e encontrei as janelas abertas. Achei nesse momento que eles podiam estar na tragédia. Andei toda a noite pelos sítios onde pensei que podiam estar, mas evitei ir à ponte. Não ia lá fazer nada.

No dia seguinte de manhã telefonei para o patrão do meu filho. O último sítio onde pensei que ele pudesse estar era no trabalho, mas também não estava lá. Foi nesse momento que confirmei dentro de mim que ele estava no meio da tragédia e que a namorada também estaria com ele.

Passados uns dias fui até à ponte e revoltei-me contra o comandante Ezequiel. Parecia que os trabalhos não estavam a fazer nada, também porque eu não percebia como é que as coisas funcionavam. O desespero é grande. Ele disse-me: “Tenha calma. Não se preocupe, o senhor vai ver que vou encontrar o seu filho e lho vou entregar em breve”. E foi mesmo: ao fim de um mês, entregou-me o meu filho e a namorada dele.

O meu filho, quando andava na escola, era o guarda-costas dos mais pequenos. Trazia-os aqui para casa e fazia bolos à mão para eles, fazia doces que eram uma maravilha e dava-lhes leite. Uma embalagem de pacotes de leite, se durasse uma semana era muito. Era muito protetor. A mãe às vezes até lhe dizia: “Oh Paulo, o pai anda a trabalhar na mina e tem uma despesa do caraças só em leite”. Ele respondia: “Mãe, deixa-me lá matar a fome aos meninos”.

A descoberta dos corpos trouxe alguma paz de espírito, fiz melhor o luto. Ainda guardo muita revolta, mas canalizo-a para trabalhar afincadamente no centro de acolhimento para crianças vítimas de maus tratos que a Associação [dos Familiares das Vítimas] abriu. É uma forma de o homenagear.”

A descoberta dos corpos trouxe alguma paz de espírito, fiz melhor o luto. Ainda guardo muita revolta, mas canalizo-a para trabalhar afincadamente no centro de acolhimento para crianças vítimas de maus tratos que a Associação [dos Familiares das Vítimas] abriu. É uma forma de o homenagear. 
Manuel Gonçalves, barbeiro e membro da Associação de Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-Os-Rios

Augusto Ezequiel

O almirante que se lembra da força das águas a arrancar máscaras aos mergulhadores

“Só soube do acidente nos noticiários da manhã de segunda-feira. Na altura estava colocado no Instituto Hidrográfico, mas não fazia a mínima ideia que iria parar a Castelo Paiva naquele mesmo dia. Entretanto recebi uma mensagem a informar-me que seria necessário mobilizar recursos para localizar o autocarro e os carros que tinham caído ao rio.

A primeira equipa seguiu de Castelo de Paiva de helicóptero para ser mais rápido, mas também me pus a caminho para coordenador as equipas de mergulhadores. Normalmente, em situações destas, utiliza-se uma espécie de sonar que faz um varrimento e consegue detetar obstruções. Isso não seria possível, por isso tivemos de utilizar embarcações.

Mergulhar era extraordinariamente difícil. O rio estava muitíssimo forte, por isso, na tentativa de reduzir as correntes, tínhamos de fazer uma coordenação de abertura de barragens que se iniciava desde a primeira, a espanhola, até Crestuma. No dia anterior a fazermos buscas tínhamos de pedir a Espanha para começar a fechar, mas não podia demorar muito tempo para não provocar cheias.

Durante essa janela temporal conseguíamos controlar a velocidade das correntes. Mesmo assim, o rio estava cheio de lixo, a água estava muito escura por causa da terra e os primeiros mergulhos não foram bem sucedidos. A corrente continuava tão forte que, quando os mergulhadores desciam em profundidade, ela conseguia arrancar os capacetes que usavam.

O rio estava cheio de lixo, a água estava muito escura por causa da terra e os primeiros mergulhos não foram bem sucedidos. A corrente continuava tão forte que, quando os mergulhadores desciam em profundidade, ela conseguia arrancar os capacetes que usavam.
Augusto Ezequiel, coordenador das equipas hidrográficas, incluindo os mergulhadores da Marinha Portuguesa

Mas isto não foi só um desafio técnico suportado pela equipa toda. Isto também teve um impacto pessoal: crescemos um pouco naqueles dias que estivemos em Entre-os-Rios. Fomos confrontados com este lado feio da vida e isso é algo que nos torna mais adultos.”

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