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O Tribunal Constitucional esteve 25 horas sem presidente, o que “nunca tinha acontecido”. Só depois de 157 rondas de votação e 17 horas de discussão é que se chegou ao nome que o PS já reivindicava para o cargo há pelo menos dois anos: José João Abrantes, 68 anos, juiz-conselheiro desde 2020.
O novo impasse, apurou o Observador junto de fontes próximas do processo, teve origem na mesma ala política: a escolha era entre dois nomes indicados pelo PS, mas Mariana Canotilho não terá abdicado como a maioria dos juízes esperava. Acabaria por ceder, apesar da diferença de um voto e de já existirem vozes públicas entre os socialistas a defender que fosse ela a presidir ao TC.
Nas primeiras quatro votações (obrigatórias pelo regimento), nenhum juiz obteve os nove votos necessários e avançaram para uma segunda fase: escolher entre os dois mais votados, com a necessidade de “apenas” oito votos para a eleição. Seguiram-se então 157 rondas eleitorais sucessivas, sempre com o mesmo resultados: José João Abrantes a vencer por 7-6.
O regimento obriga a que a votação seja feita numa sessão contínua, mas às 7 da manhã desta quarta-feira, depois de 15 horas fechados, os juízes interromperam a sessão — o que até pode vir a levar a problemas legais ou impugnações.
Mariana Canotilho foi vítima de si própria ou de misoginia?
Uma fonte conhecedora do funcionamento do Tribunal Constitucional e de todo o seu historial diz que “uma situação destas nunca aconteceu“. Que houve, por exemplo, “duas situações em que não se conseguiram eleger os juízes cooptados: uma que durou três anos, entre 1995 e 1998, e, noutra ocasião, logo nos primeiros seis meses após a criação do tribunal”. Mas com a eleição do presidente é inédito.
Outra fonte próxima do processo culpa Mariana Canotilho pelo impasse: “Devia ter abdicado logo a favor do mais votado e não quis. Ela já é juíza há quatro anos, o novo presidente (da área PS) vai ocupar o cargo nos próximos dois e depois nos quatro anos e meio seguintes será um da área do PSD. Passam os nove anos de limite a quem direito. Ou seja: era a última oportunidade para ser”.
Tal como o Observador tinha avançado, existia a expetativa de que Mariana Canotilho viesse a ceder o seu voto a José João Abrantes. Existe o precedente histórico de que o candidato menos votado entregue o seu voto ao candidato mais votado para desbloquear a eleição e permita a eleição do novo presidente do TC.
Foi precisamente isso que aconteceu em julho de 2016 quando Pedro Machete, que tinha precisamente o mesmo número de votos que Mariana Canotilho obteve nas 156 voltas de votações, cedeu o seu voto a Costa Andrade e viabilizou a sua eleição.
Caupers queixou-se de “campanha inacreditável” de “calúnias e difamações”
O presidente do TC cessante, João Caupers, lamentou, ao sair do cargo na terça-feira, ter sido alvo de uma “campanha absolutamente inacreditável” de “calúnias e difamações”. A mensagem era para fora, mas também para dentro do próprio TC.
Caupers não terá perdoado aos juízes mais progressistas a fuga da informação de que o juiz António Manuel Almeida Costa era um dos juizes escolhidos para o lugar dos cooptados por indicação da ala direita e que acabou por ser rejeitado em maio de 2022 depois de uma polémica à boleia da fuga de informação sobre uma posição nos anos 80 contra a interrupção voluntária da gravidez.
Ala direita deve bloquear novos juízes para o Tribunal Constitucional até 2023
O antigo presidente do TC era crítico de uma ala dos juízes-conselheiros — aparentemente mais partidários de uma escolha como a de Mariana Canotilho — a quem também terá atribuído o facto de terem sido noticiadas declarações que o rotularam como homofóbico, quando no passado disse ser membro de uma “maioria heterossexual”.
Aliás, Caupers foi indicado e aprovado em fevereiro de 2014 para substituir Maria João Antunes — uma conhecida jurista da Faculdade de Direito de Coimbra (uma academia também importante no TC, como a congénere de Lisboa) — que tinha sido igualmente cooptada por indicação da ala esquerda e que exerceu funções entre 2004 e 2013.
Mais tarde, quando foi indicado para substituir Manuel Costa Andrade (indicado pelo PSD) na liderança do Tribunal Constitucional, Caupers acabou por ser renegado pela ala esquerda do TC (e do PS) devido aos tais textos polémicos que foram recuperados pelo DN.
O “episódio Almeida Costa” também teve consequências para a ala direita do TC, já que os conselheiros José Teles Pereira, Benedita Urbano, José Figueiredo Dias, Gonçalo Almeida Ribeiro e Afonso Patrão acordaram que só iriam concordar com novo processo de cooptação em março de 2023, após João Caupers cessar o seu mandato — como efetivamente veio a acontecer.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre as divisões no Tribunal Constitucional
Pressão sobre Canotilho acabou por resultar
Regressando à votação desta quarta-feira. A pressão das últimas horas sobre Mariana Canotilho para viabilizar a eleição de José João Abrantes terá dado os seus frutos. “Não imaginam o ambiente que ficou entre os juízes, está de cortar à faca”, confessa ao Observador uma fonte conhecedora do processo.
O antigo assessor do gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional, Miguel Prata Roque, dizia poucas horas antes do impasse ser resolvido ao Observador que é “lamentável que os atuais juízes-conselheiros desprestigiem” a instituição desta forma.
“É lamentável que os atuais juízes conselheiros do TC se desprestigiem”
O antigo secretário de Estado do PS explicava que “não há nenhuma norma, nem na Constituição, nem no regimento, que consiga desempatar este regime”. Há, no entanto, outros tribunais superiores que prevêem situações destas, explicava o antigo assessor do TC. “Por exemplo, no Supremo Tribunal de Justiça existe uma norma no regimento que determina que, se houver sucessivos empates, é designado o juiz mais antigo”, diz Miguel Prata Roque.
Miguel Prata Roque defendia que neste caso se devia seguir o exemplo do Supremo Tribunal de Justiça e ser escolhida “a juíza mais antiga, Mariana Canotilho, que é a juíza que está a exercer funções há mais tempo no tribunal.” O antigo assessor dos juízes do TC sugeria até misoginia na composição do próprio Tribunal Constitucional: “Já a cooptação da semana passada demonstrou que há uma certa incapacidade do TC de aceitar a abertura do tribunal à participação de mulheres. Porque os três cooptados foram homens. Neste momento há apenas quatro juízas-conselheiras em 13.”
Escolha de Abrantes e o equilíbrio entre cidades
O presidente do Tribunal Constitucional normalmente oscila entre PS e PSD, por acordo de cavalheiros entre os dois maiores partidos. Como Manuel Costa Andrade (indicado pelo PSD) fez quatro anos e meio de mandato (2016-2021) e José João Abrantes vai completar o mandato de Caupers para perfazer os mesmos quatro anos e meio como indicados pelo PS, a escolha corresponde a este critério (com Mariana Canotilho seria igual).
O equilíbrio mantém-se também ao nível do vice-presidente: Pedro Machete (indicado pelo PSD) foi substituído por Gonçalo Almeida Ribeiro (também indicado pelo PSD) — que foi eleito esta quarta-feira à primeira tentativa e com uma maioria mais reforçada do que a de Abrantes.
Em segundo lugar há um equilíbrio entre Lisboa e Coimbra. Se Costa Andrade era catedrático de Coimbra, João Caupers era catedrático da Universidade Nova, tal como José João Abrantes. O equilíbrio de cidades/universidade fica assim garantido, algo a que Mariana Canotilho, de Coimbra, não conseguiria corresponder se esse fosse o critério. Aliás, entre pares, no Tribunal Constitucional, era frequentemente lembrado que — ao contrário dos outros — Mariana Canotilho não era catedrática e era frequentemente desvalorizado o seu doutoramento por ter sido tirado na Universidade de Granada. Os seus críticos dentro do TC destacavam assim que o seu currículo era inferior ao do ser principal adversário nesta corrida ao TC.
O novo presidente do TC, José João Abrantes tem 68 anos e é professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. O juiz-conselheiro é mestre pela Faculdade de Direito de Lisboa, onde foi assistente entre 1981 e 1992. No currículo tem outras passagens de relevo como ter sido, entre 1985 e 2009, consultor jurídico da Caixa Geral de Depósitos.
Há especialistas que dizem que a eleição de José João Abrantes pode ainda ser contestada por a votação não ter ocorrido, como estabelece o regimento, sem interrupções. “Podem até impugnar”, diz um especialista que não se quis identificar. Já Miguel Prata Roque desvaloriza, com uma graça, apelando ao bom-senso: “Esta norma tem de ser interpretada à luz da convenção de Viena, relativamente aos prisioneiros de guerra. Seria estranho que os juízes-conselheiros fossem forçados a estar no Tribunal Constitucional durante um dia, dois dias [sem interrupções]”.