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Miguel Fragata (Créditos: Formiga Atómica)
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Miguel Fragata (Créditos: Formiga Atómica)

Carlos Fernandes/The Wall

Miguel Fragata (Créditos: Formiga Atómica)

Carlos Fernandes/The Wall

O teatro para a infância que não quer infantilizar as crianças

Não é mais um teatro menor. Há muitos (e talentosos) criadores a fazê-lo. O que não se deve é infantilizar mais ainda este público de palmo e meio. E todos os assuntos são tratáveis no palco.

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Miguel Fragata e Inês Barahona: com o faz-de-conta se tratam no teatro as coisas sérias

Não é um muro em betão, como o que separou Berlim em dois, a Alemanha em dois. Nem como o que separa palestinianos de israelitas, muçulmanos de judeus. Não é um muro de arame como o que hoje veda aos refugiados a Europa desejada. É um muro de cartão, este. Teatral. É um muro que coloca à distância de uns metros pais e filhos, mas que, afinal, o que quer é aproximar crianças e adultos. É um muro que se ergue em palco. De um dos lados sentam-se os de palmo e meio. Do outro, os graúdos. Entre uns e outros, os atores.

O que se diz de um e de outro lado é diferente. São dois espetáculos num só. Mas cada um só vê o seu. E não vale espreitar para o lado de lá.

A conversa fez-se no Teatro Maria Matos, horas antes de estrearem em Lisboa (a estreia propriamente dita foi em maio, na cidade de Viseu) o espetáculo The Wall. Miguel Fragata e Inês Barahona são marido e mulher. E têm uma produtora de teatro: a Formiga Atómica. Durante a entrevista não foram dois, mas três sentados no bar do Teatro – Inês está por estes dias à espera de Pilar, a segunda filha de ambos.

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São dramaturgos. E ele, Miguel, também é ator. Os dois criam teatro para a infância. Miguel não crê que fazê-lo seja um trabalho teatral menor, que se menospreze. É tão trabalhoso criar para crianças como para adultos. É tão trabalhoso, que mal os distingue.

“Podia ser perfeitamente um trabalho só para adultos. E o ponto de partida é esse. Sempre. Não olhar para o trabalho que fazemos como trabalho para as crianças. Ou um trabalho infantil. O trabalho nunca é ‘infantil’. Custa-me diferenciar quando estou a fazer um trabalho para público adulto, enquanto ator, ou quando estou a fazê-lo para público de crianças ou público familiar. Há uma maneira de estar em palco que eu acho que é muito semelhante. Não há propriamente diferenças, seja na própria estrutura da peça, seja na seriedade com que o trabalho é feito”, explica Miguel Fragata.

“Custa-me diferenciar quando estou a fazer um trabalho para adultos ou quando estou a fazê-lo para crianças. É claro que se eu estou a construir um espetáculo para crianças de oito anos tem que haver preocupações diferentes daquelas que tenho se estiver a construir um espetáculo para adultos. No 'The Wall' temos uma hora de espetáculo. É o tempo ideal nestas idades. Há que ter em conta a forma como a cena se altera constantemente. Também há diferenças na linguagem, que tem que ser clara e direta.”
Miguel Fragata

Mas criar para crianças ou para adultos, apesar de tudo, apesar da disposição do ator, apesar do texto, não é igual. Não pode ser. Para se começar a criar um espetáculo infantil, há que saber o que se quer. Por onde se quer ir.

“Se calhar, para um teatro dito de entretenimento, a preocupação de quem cria está na forma, está nas ‘purpurinas’, na maneira como se vai ‘encher o olho’ ao público. Para mim, para nós, o ponto de partida está muito longe disso. Está, realmente, no pensamento, no tema, na forma como queremos tocar e transformar o nosso público. Depois, sim, tem que haver também o recurso ao outro lado. Que é este outro lado, não necessariamente de ‘encher o olho’, mas de conseguir conquistar o público que temos à nossa frente. É claro que se eu estou a construir um espetáculo de raiz para crianças de oito anos, em que eu sei que o meu público-alvo vai ser esse, tem que haver preocupações que serão necessariamente diferentes daquelas que eu tenho se estiver a construir um espetáculo apenas para adultos. E aí, sim, há recursos que nós sabemos que são recursos importante e a ter em conta.”

Recursos como a linguagem, o ritmo, o tempo. “O tempo é essencial!”, exclama Miguel. É que a atenção de uma criança é mais reduzida que a de um adulto. Não há volta a dar. “Aqui, no The Wall, temos uma hora de espetáculo, que eu acho que é o tempo ideal nestas idades — ou seja, a partir dos oito anos e até aos 12, mais ou menos. Há que ter isso em conta. Há que ter em conta a forma como a cena se altera constantemente, como conseguimos surpreender o público. Há diferenças na linguagem, também, porque o que dizemos tem que chegar a elas, crianças, tem que ser claro, direto.”

Um jogo na cena que se construiu com jogos (fora dela)


Mas regressemos ao muro que Miguel e Inês ergueram em palco.

Que espetáculo é este? “Na Caminhada dos Elefantes [o espetáculo que produziram e trouxeram à cena anteriormente] nós tínhamos um público misturado de adultos e crianças e queríamos um texto e um espetáculo que atravessassem várias camadas e que pudessem chegar a todos. Neste caso, nós propositadamente separámos as plateias. É provocatório, obviamente. Mas obrigou-nos a criar dois espetáculos com duas estratégias dramatúrgicas, de texto e tudo o mais, muito diferentes. São ambos jogos, apresentam-se como jogos, como desafios, mas são de naturezas realmente diferentes. Na Caminhada dos Elefantes o nosso foco era o tema da morte. Especificamente. Neste caso o foco era mais difuso. Era tentar perceber o que é que havia de diferente e de semelhante entre as crianças e os adultos, até que ponto eles partilham ou não o mesmo ‘mundo’, onde é que começam os seus problemas e, eventualmente, onde é que se pode dar a volta a alguns desses problemas que se vão levantando. Problemas de relacionamento”, conta Inês Barahona.

Os três atores que partilham a cena com Miguel Fragata em "The Wall": João de Brito, Joana Bárcia e Manuela Pedroso (Créditos: Formiga Atómica)

Formiga Atómica

Até chegarem aqui, o trabalho de pesquisa foi longo. Árduo. Não foram só semanas de escrita; foram na verdade cerca de três meses de pesquisa pelo país até chegarem à fase da escrita, até se “enclausurarem”, como os próprios dizem, em teatros e em residências artísticas, para trabalhar sobre o material que recolheram na pesquisa. O texto que escrevinharam de início, deitaram-no fora. “E não foi só uma vez”, garante Inês.

Miguel explica esta insatisfação: “Nós tínhamos optado por conduzir o espetáculo por um caminho mais narrativo. Nesse primeiro texto, existiam umas brechas, pequeníssimas brechas, e era nessas brechas, nesse espaço, que entravam as citações dos adultos, das crianças e todas as ideias que tinham surgido — e que nós achávamos muito interessantes — no trabalho de pesquisa. Mas, depois, pareceu-nos muito pouco. Pareceu-nos que estava tudo ancorado numa história, uma história que não tinha vindo dessa pesquisa, e decidimos deitar tudo fora! O espetáculo do lado dos adultos não tem uma única palavra que não tenha sido dita pelos adultos com quem nos cruzámos. Está lá tudo.”

“Queríamos explorar junto das crianças a ideia de poder. Porque é algo que lhes está sempre vedado. O poder de decisão. Depois, com as famílias, interessava-nos testar o seu grau de conhecimento. Perceber até que ponto é que elas se conhecem e, também, que tipo de valores é que partilham, ou o que é que é muito diferente entre si”, explica Miguel Fragata. 

Pesquisa para aqui, mais pesquisa para acolá. É uma palavra que os criadores, não só os da Formiga Atómica, usam. E usam-na muito. Mas como é que se fez essa pesquisa, afinal? Miguel e Inês conversaram (ou escutaram as conversas) com adultos e crianças. Ora conjuntamente, ora separadamente. Não só pais e filhos, como tios, sobrinhos, avós, netos. Famílias inteiras. E até com quem não era da família — educadores, por exemplo — eles conversaram.

“Havia temas que nos interessavam explorar à partida. Por exemplo, queríamos explorar junto das crianças a ideia de poder. Porque é algo que lhes está sempre vedado. O poder de decisão. Uma ideia de política era algo que nos interessava muito explorar. Também uma ideia também de organização social. Depois, com as famílias, interessava-nos testar o seu grau de conhecimento. Nós queríamos perceber até que ponto é que elas se conhecem e, também, que tipo de valores é que partilham — ou o que é que é muito diferente entre si. E aí fizemos, por exemplo, um quiz entre famílias, em que cada um tinha que responder a várias perguntas sobre os seus interesses pessoais e, depois, a mesma coisa relativamente aos seus filhos ou relativamente aos seus pais.” O resultado foi, no mínimo, curioso. Ou revelador. “Sim. Muito. É que na maior parte dos casos o que acontecia era um fenómeno de projeção: as crianças pensavam em si quando estavam a falar dos pais. E os pais faziam o exercício ao contrário”, lembra Miguel.

Inês Barahona acredita que as crianças com quem trabalharam são infantis. Ou melhor, são “infantilizadas”. E são-no pelos pais e pela própria sociedade em que habitam. E isso depreende-se nas respostas que recolheram delas. “O que acontece é que elas vivem num mundo fabricado para as crianças muito tempo. Demasiado. E são infantilizadas até muito tarde. E, de repente, são despejadas num ‘mundo’ dos adultos sem terem tido sequer a oportunidade de experimentar e sem se terem confrontado com esse ‘mundo’. Então, não têm as ferramentas para o dominar, para lidar com tudo o que lhes surge. Que é novidade, que nem sempre é fácil, nem cor-de-rosa, nem redondinho, sem arestas.”

“As crianças são infantilizadas até muito tarde. E, quando são despejadas no mundo dos adultos, não têm ferramentas para lidar com tudo o que lhes surge. Um mundo que nem sempre é fácil, nem cor-de-rosa, nem redondinho, sem arestas.” 
Inês Barahona

O espetáculo The Wall, ainda que por somente uma hora, dá-lhes a oportunidade de experimentar o que é ser-se adulto. E decidir. É aqui que o jogo começa para elas. O jogo teatral.

“A possibilidade delas se verem sozinhas, num espaço que normalmente ocupam com adultos — sejam os professores, sejam os pais ou avós, que as acompanham nas idas ao teatro –, também nos dava a possibilidade de experimentar a relação direta delas com o objeto teatral. E, então, o que quisemos foi utilizar isso, esse distanciamento que o muro dá, até ao limite. Ou seja, lançar-lhes um desafio, com um jogo, que tem um herói, um herói com o qual elas rapidamente se identificam, um rapazinho, que tem que atravessar uma série de provas e superar uma série de dificuldades e de obstáculos para poder, finalmente, começar a mandar. O principal objetivo do jogo é chegar ao fim, destruindo aquele muro e mandando. E para cumprir essas provas, para ultrapassar esses obstáculos, o herói não está sozinho. Tem os espectadores, as crianças, que lhe são cúmplices, para o ajudar a ultrapassar as várias provas. E são provas que têm a ver, de facto, com fases de crescimento e com questões, profundas, que se colocam às crianças à medida que elas vão crescendo e tendo que habitar um ‘mundo’ que cada vez lhes é dado cada vez mais tarde. E neste espetáculo há, de facto, decisões difíceis que é preciso tomar e que têm consequências. Algumas fazem ganhar pontos e avançar no jogo. Outras fazem perder pontos e recuar. E o ónus está todo sobre elas. São elas que, em conjunto, têm que tomar essas decisões. E elas ficam implicadas nas decisões. Mesmo”, descreve Inês.

Miguel Fragata é o herói do jogo que se propõe às crianças em "The Wall" (Créditos: Formiga Atómica)

Formiga Atómica

As crianças que crescem em meios rurais são mais “adultas” que as citadinas. E politizadas, será que as crianças são?

Não é uma generalização que se faz. As crianças são mesmo infantilizadas até tarde. Mas mesmo essa infantilização é diferente pelo país. Miguel e Inês percorreram-no de norte a sul, do litoral ao interior. E as diferenças são evidentes num e noutro lugar. “Muito mesmo. A diferença, eu diria que é mais Norte-Sul”, garante Inês Barahona.

“À partida, eu acho que a escala das cidades tem uma influencia enorme nisso. Os grandes centros urbanos têm, de facto, crianças que vivem num mundo muito massificado. São crianças que são transportadas para todo o lado, que não vão sozinhas, que não fazem habitualmente tarefas. São crianças que cabem mais, se calhar, naquele cliché que nós todos temos sobre o que é que são as crianças de hoje. Curiosamente, crianças de meios mais pequenos, ou rurais, têm normalmente vivências mais próximas em termos de relações e de núcleo familiar. Não há tanto distanciamento entre o que é uma criança e o que é um adulto. E isso dá-lhes também outras ferramentas”, garante Inês, depois interrompida por Miguel, que conclui: “Nos meios rurais a relação adulto-criança é muito diferente. Há um foco muito menor na própria criança. Portanto, acaba por haver uma relação muito mais próxima, igualitária, na relação adulto-criança. Isso também nos foi bastante notório.”

Mais infantis ou menos, a verdade é que, hoje como nunca, as crianças estão realmente despertas para a realidade dos adultos. Infantis ou não, querem mandar. Ter poder.

Miguel recorda-nos um jogo, que se fez durante a pesquisa para o The Wall, e que é disso revelador. “Nós dávamos uma carta a cada criança. A carta tinha uma característica escrita por detrás — o homem mais qualquer coisa: mais rico, mais trabalhador, mais honesto e por aí fora. E do outro lado via-se a cara desse homem. O que lhe era pedido era que colocassem essa cara numa pirâmide, numa hierarquia, apontando para que ponto é que esta pessoa, com esta característica, se situa na nossa sociedade.” O homem mais rico foi imediatamente colocado no topo. E a decisão foi consensual.

Inês recorda que “o homem mais feliz também foi colocado no topo”. E Miguel lembra-a que aí não houve consenso: “Houve quem dissesse, uma criança, que se ele era o mais feliz, de certeza que não trabalhava. E, portanto, se ele não trabalhava, ele não podia estar no topo. O trabalho, o valor que o trabalho tem, está muito, muito presente nelas. Isto aconteceu-nos em Guimarães. Sentíamos as crianças com imensa preocupação relativamente ao trabalho. Ora porque há pais desempregados, ora porque há também uma pressão enorme, na escola, para que elas tenham bons resultados a nível de trabalho.”

“Nós ouvimos sair da boca das crianças uma série de preocupações que sabemos que vêm dos adultos. Preocupações que nós habitualmente não atribuirmos às crianças: o desemprego, os impostos, os empréstimos. A questão do dinheiro está mesmo muito presente nelas. São preocupações que elas apanham no ar, mastigam-nas um bocadinho à sua maneira, e depois replicam-nas como os pais as enunciam”, relembra Inês Barahona. 

Também a politização das crianças é um reflexo do que experienciam em casa. Mas estarão as crianças politizadas? “Há alguma consciência política, sim. Há posicionamentos políticos muito claros”, assume Miguel.

Inês acrescenta: “Nós fizemos um exercício que permitia às crianças pensar que, se fossem elas a mandar no país ou no mundo, se mandavam como os líderes ou se mandavam de outra maneira. E, pensando que podiam mandar de outra maneira, como é que é que elas gostavam de mandar. O que aconteceu foi que nós ouvimos a sair da boca das crianças uma série de preocupações que nós sabemos que vêm da casa delas, dos adultos que estão à sua volta. Preocupações muito claras e especificas em relação a figuras políticas, mas também preocupações que nós habitualmente não atribuirmos às crianças: o desemprego, os impostos, por exemplo. Os impostos surgiram-nos imenso. Os empréstimos, também. A questão do dinheiro está mesmo muito presente nelas. O problema é que depois, se nós queremos esmiuçar isso, não há lá nada.”

Nada? “Não. Nada. São preocupações que elas apanham no ar, mastigam-nas um bocadinho à sua maneira, e depois replicam-nas como os pais as enunciam. Tal e qual. Mas não deixam de estar presentes, essas preocupações.”

Mas se não houver quem as acompanhe nesse “mastigar” das preocupações, como lhe chama Inês, a vida dos adultos é-lhes, às crianças, “assustadora”. E tanto é assustadora, que não querem ser adultas. Nunca. Que se dane o mandar. “ Quando nós lhes perguntávamos: mas vocês querem continuar a ser crianças ou querem tornar-se adultos? Havia muitos que diziam: ‘Não, não, eu prefiro continuar a ser criança. A vida dos adultos é muito difícil, é muito dura, tem que se trabalhar. Está bem, pode-se mandar, e eu quero mandar!, mas ao mesmo tempo é uma chatice, tem-se contas para pagar, impostos e essas coisas todas!…’”

Tabus? Há. E por isso é que devem ser trazidos ao teatro

No anterior espetáculo que criaram, A Caminhada dos Elefantes – que, tal como The Wall, continuará a percorrer o pais em digressão –, Miguel e Inês tratavam no palco a temática da morte. Agora, tratam o poder, a política, a crise. Tudo o que as crianças não tratam em casa.

Mas porquê fazê-lo no teatro? Miguel Fragata explica: “São temas que estão tão presentes, na vida e na nossa condição, que é inevitável tocá-los e trabalhar sobre eles. E é isso também que nos interessa. Quando quisemos fazer a Caminhada dos Elefantes, para falar sobre a morte, foi precisamente isso: foi perceber que é um tema tão presente na vida, a um ponto tão extremo, e há de fato um comportamento social que é tão bipolar, esquizofrénico, relativamente a esse tema, que era estruturante ter que trabalhar sobre isso. A mesma coisa agora. A morte era um dos temas tabus. Mas na relação adulto-criança eles são muito mais. Existem muito mais questões a resolver e a, enfim, trazer para o debate e para o pensamento. Aquilo que para nós faz sentido é ir, de facto, aos temas que são problemáticos e que podem abrir um espaço para o diálogo, para a conversa, para a reflexão. Obrigá-los, às crianças e aos adultos, a pôr o dedo na ferida. Para que deixe de ser uma ferida.”

“A morte é um dos temas tabu. Mas na relação adulto-criança eles são muito mais. Aquilo que para nós faz sentido é ir aos temas que são problemáticos e que podem abrir um espaço para o diálogo, para a conversa, para a reflexão. Obrigá-los, às crianças e aos adultos, a pôr o dedo na ferida”, explica Miguel Fragata.

Em cena fala-se do que é tabu. Mas a conversa, ou a escuta, não termina nas tábuas do palco. Segue no carro, à mesa de jantar e até na hora de ir para a cama. E segue durante dias.

“Na Caminhada dos Elefantes havia muitos pais que vinham ter connosco no final do espetáculo. Diziam-se mais aliviados. Eles traziam os filhos ao espetáculo, tensos, preocupados, porque era o tema da morte. Achando que deveriam fazê-lo, mas com receio. E, depois, chegavam ao fim do espetáculo e vinham muito mais descontraídos ter connosco. E diziam-nos que era possível falar sobre o tema. Sobre a morte. E até diziam a palavra ‘morte’. Que é uma coisa que os adultos não dizem em frente dos filhos”, conta Inês Barahona.

Este novo espetáculo cria quase uma rebelião de palmo e meio. Não em cena. Em casa. “No caso do The Wall, porque ele põe a tónica sobre uma ideia de poder, de política, de lugar, as crianças que saem do espetáculo, saem cheias de perguntas sobre porque é que elas, de facto, não têm um lugar que elas acham que merecem ter na escala do poder, na tal pirâmide do poder. E questionam-se muito: ‘Afinal, nesta pirâmide, onde é que nós estamos? Até que ponto é que nós podemos mandar?’”, graceja Inês.

Ela, que agora carrega Pilar na barriga, tem outra filha, Vitória, de seis anos. E também Vitória quis mandar lá em casa. Apesar da tenra idade. “Ela chegou a casa, quando viu o The Wall, a questionar-se porque é que não era ela a mandar na nossa vez. Queria saber se um dia experimentaria fazer isso. Porque tinha essa vontade, esse desejo. O que lhe respondi? Que sim. Um dia… [Inês desvia o olhar para Miguel e ri-se] Ela questionava-nos muito as decisões. ‘Mas porque é que é assim? Porque é que não é assado? E que espaço é que eu tenho para dar também a minha opinião?’”

Há teatro de sobra para a infância. Bom e mau. Mas há que educar o público para o teatro. E deixá-lo escolher o que quer ver

“Eu acho que há muito mais. Isso, à partida, eu diria que é bom. Acho que há muito mais do que é mau. O que é mau. E acho que há muito mais do que é bom. O que é bom.” É assim que Inês Barahona descreve o atual estado do teatro para a infância no país.

Há um par de gerações, talvez mais, o teatro para a infância era inexistente. Ou quase. As crianças, a partir de uma determinada idade, ou iam ao teatro acompanhadas dos pais, ver espetáculos para adultos, ou iam uma horda delas, amontoadas nas camionetas da escola, assistir às adaptações teatrais de obras de Gil Vicente ou de Luís de Sttau Monteiro, autores que lhes eram apresentados em aula e a quem o teatro dava corpo e voz. A produção era pouca. Muita dela má. Com custos mínimos. Nova dramaturgia? Não, nem vê-la. Hoje sim, há. Os teatros, sobretudo na capital, têm produção de sobra e o ano todo. E pelo restante país também vai havendo. Nem que seja em digressão.

Mas se nem toda a produção é boa, como distingui-lo, então? “A criação para a infância é, antes de mais, uma criação. E se não responde a um questionamento verdadeiro, não chega a lado nenhum. Esvai-se. Esboroa-se. Portanto, eu acho que há cada vez mais redes de circulação para esse trabalho, que eu considero que é um trabalho de uma qualidade superior, o trabalho para a infância. Ao mesmo tempo, também há uma oferta muito grande e muito massificada de outro tipo de trabalho destinado à infância. Em que a qualidade não é tão superior. Eu acho que, depois, o que é importante é o trabalho de sensibilização dos públicos, para que eles possam, usufruindo daquilo que está disponível no pais, escolher e decidir como espectadores. Às vezes fala-se dos públicos como se fossem uns seres quase incapazes. Eu acho que se tem que ter muito respeito pelo público. E acho que quando se faz um bom trabalho, o publico reconhece isso e vai atrás disso. É muito importante haver muita oferta. Mesmo de coisas muito más. O público, confrontado com um objeto interessante, com potencial, que o questione, que mexa com ele, que o faça viver qualquer coisa de sério e profundo – e eu acho que é o que as arte deve oferecer-lhes –, esse público vai voltar, vai aprofundar, vai procurar. E são os artistas, com as suas propostas, com a ajuda das redes de programação e dos teatros que temos no pais, que fazem esse trabalho de criação de públicos”, explica Inês.

“Há espetáculos que são vistos por crianças de cinco anos de forma tão ou mais rica do que por crianças com o dobro da idade. Mas há crianças de cinco anos que não estão exatamente no mesmo grau de desenvolvimento que outras crianças que também têm cinco. Eu acho que são os pais que têm que procurar aquilo que pode inquietá-los ou desinquietá-los [aos filhos] da forma mais produtiva, mais positiva de entre o que há na oferta”, sugere Inês Barahona. 

Miguel Fragata crê que é esse o lugar do teatro para infância. Criar público. Público que quase não há. E o que há, é cada vez menos. E há que criá-lo desde tenra idade.

As crianças não são somente o público do futuro. Também criam, quase sem saber, o público do presente. É que são muitas vezes elas que exigem que os pais as tragam ao teatro. “Este trabalho para a infância, em particular, está muito ligado a uma ideia de educação. Chame-se-lhe o que se quiser: educação artística, educação pela arte. Mas é educação. Este público será, no futuro, daqui a uma, duas gerações, um publico muito presente. Porque, de facto, o trabalho está a ser feito e há esse lastro que fica. Esperemos.”

Uma dificuldade que muitas vezes se põe aos pais é a da idade. Quando um espetáculo é para crianças de cinco, seis, oito anos, até aos 10, 12, o espetro é tão amplo, que temem que os filhos, quando mais novos, se percam na história, e quando mais velhos, se desinteressem dela.

“Há espetáculos que são vistos por crianças de cinco anos de uma forma tão ou mais rica do que por crianças com o dobro da idade. Mas há crianças de cinco anos que não estão exatamente no mesmo grau de desenvolvimento de outras crianças da mesma idade. Eu acho que os pais, que conhecem melhor do que ninguém os seus filhos, sabem procurar aquilo que, no fundo, pode inquietá-los ou desinquietá-los da forma mais produtiva, mais positiva de entre o que há na oferta. Às vezes há textos muito densos e muito complexos, que para uma criança, por exemplo, de três anos, têm uma sonoridade muito interessante, e que elas apanham como se de uma canção se tratasse, em que há uma palavra que lhes é estranha, mas que lhes fica no ouvido e eles saem do espetáculo a matutar nela. Por outro lado, há crianças de nove anos, por exemplo, que têm muito mais dificuldades em entrar no espetáculo, porque estão a tentar compreender o texto. E o texto é muito difícil para elas. Portanto, a maneira como cada criança, em diferentes fases da vida, se aproxima de um objeto, por exemplo, como um texto, é muito diferente. É mesmo muito diferente”, explica Inês.

Carruagem: o apeadeiro deste projeto é na escola. O que fazem? Teatro portátil para a criançada

Nasceram os três na década de noventa. Sara e Diana são atrizes. André é designer. Há pouco mais de um ano resolveram-se a criar uma produtora teatral: a Carruagem.

Não é tão comum assim que três “vintões”, por tanto que queiram fazer teatro seu – e os três, mais elas que ele, fazem-no noutras “carruagens” que não a sua; e vê-mo-las também na TV, no cinema –, se aventurem a criar uma produtora, sem subsídios, sem amparos, sem nada.

Então, porquê fazê-lo? “A Carruagem somos nós os três. Somos diferentes, vimos de sítios diferentes, temos backgrounds diferentes, mas vemos o teatro, a criação de um espetáculo, do mesmíssimo modo. Ou quase. Nós queríamos ter um sítio para fazer teatro. Assinar. Fazer o que nos desse na gana. Não queríamos ter que esperar pelos subsídios, que não vêm, pelas condições, que não há. Nunca. E foi por isso que criámos a Carruagem. E queríamos que, atrelada à carruagem-mãe, viesse outra carruagem , que fosse uma espécie de serviço educativo, como o que há nos teatros”, recorda Sara Barros Leitão, que é também co-diretora artística do projeto.

Curiosamente, acabou por ser esse trabalho para a infância o seu primeiro trabalho. O que o Carruagem Vai à Escola– foi assim que batizaram o seu serviço educativo – quis foi descentralizar. Viajar. Fazer teatro que fosse totalmente portátil, que não dependesse de um palco, com tábuas e cortina e tudo o mais, não dependesse de uma plateia num auditório, recostada confortavelmente nas cadeiras, fazer um teatro que chegasse onde o teatro nem sempre chega.

“Essa viagem, a nossa primeira viagem, com a peça Pega-Monstros, ensinou-nos tanto, que hoje nos foi mais fácil criar não só um espetáculo para adultos, As Coisas Pelos Nomes, como criar um espetáculo novo, também para crianças, que estreará em breve. Outros virão”, conta Sara Barros Leitão.

Mas conversemos sobre o que é ser-se portátil no teatro para a infância. Ao contrário de Miguel Fragata e Inês Barahona , cujo espetáculo The Wall se impõe em cena, pelo muro, pela projeção de vídeo, pelo punhado de atores – em Pega-Monstros são só Sara e Diana Barnabé em cena –, a Carruagem é sobretudo isso: portátil. E escolar.

Mas Diana Barnabé, também atriz, também diretora artística, “maquinista” do projeto desde o começo, recorda que não foi fácil – e continua a não sê-lo – chegar às escolas. Culpe-se a tradição. “A tradição é que nos lixa. A tradição é um ator, com o seu traje todo janota, ir à escola, cobrar um euro e meio por cada criança, trazer de volta meia dúzia de trocos – que lhe dão para comprar uns rissóis para o almoço do dia seguinte e pouco mais – e as criancinhas têm o seu teatrinho. É assim que vai o teatro para a infância nas escolas”, lamenta Diana.

Diana Barnabé é Camila em "Pega-Monstros" (Créditos: Carruagem - Tráfego de Ideias)

Carruagem - Tráfego de Ideias

A Carruagem quer diferenciar-se disso. Sobretudo disso. “Nós não vamos às escolas para encher balões. É algo que é claro para nós e que tem que ser claro para que nos contratar e vai ver. Isto é um espetáculo de teatro. O que nos é difícil é explicar às escolas que, tal como elas compram um computador para uma sala, uma maçaneta de uma porta que emperrou, também têm que pagar por um espetáculo de teatro. A cultura é algo que se adquire.” Sara interrompe-a.

— Oh, Diana, recorda-nos lá aquela história, a da diretora!…

E Diana lá continua, mas só depois de deitar a mão à testa, entre uma gargalhada e outra, que a história, tão insólita, só se recorda gesticulando assim: “Vou chamar-lhe insólita para não ter que lhe chamar algo bem pior. Conversei ao telefone, durante horas, com a diretora de um agrupamento de escolas. Não importa qual – é que não é caso isolado. Ela dizia que era tudo fantástico – e ainda nem tinha visto o espetáculo, atenção! –, que queria que nós fossemos lá logo que pudéssemos, que as crianças iam gostar tanto, tanto. Ótimo, pensei eu. Até que ela me diz: ‘Ohhh, Diana, mas agora é que eu estou a entender melhor… você está a falar de custos, não é? Mas é pago?’ Como está bom de ver, passei-me com ela. E respondi-lhe: ‘Pois é, estou a falar-lhe de custos, diretora. A senhora não trabalha de graça, pois não!?’”

Mas lá conseguiram chegar a uma escola. Depois outra e mais uma. Um agrupamento aqui, outro acolá. Mas a custo. Sempre a custo.

“Não, não nos foi fácil chegar às escolas. Nada. Primeiro, ninguém sabia quem nós éramos. E isso é um entrave, claro. E depois nós estamos a competir, chamemos-lhe assim, com as ‘Cinderelas’, os ‘Quebra-Nozes’, os musicais de Natal, no gelo, produções megalómanas e muitas delas completamente misóginas. São espetáculos que já nem se deviam fazer, a meu ver. Mais do que infantilizar, deseducam.” Como assim, Sara? “É que estão a ensinar-lhes, sobretudo às raparigas, que se a pobrezinha da Cinderela fizer as tarefas domésticas, se for uma dona de casa caladinha e boa, casará com um príncipe. É essa a moral da história, se se atentar bem. É ou não é? Mas a verdade é que é nesses espetáculos que as escolas mais investem. Não investem na nova criação portuguesa da Carruagem e de outras companhias tão boas que por aí há. Companhias que fazem isto há bem mais tempo do que nós”, lembra Sara, desiludida.

“A tradição é que nos lixa. A tradição é um ator, com o seu traje todo janota, ir à escola, cobrar um euro e meio por cada criança, trazer de volta meia dúzia de trocos e as criancinhas têm o seu teatrinho. É assim que vai o teatro para a infância nas escolas”, lamenta Diana Barnabé.

E como é que a Carruagem se fez ‘encarrilar’ no apeadeiro das escolas, a todo o vapor? Com dramaturgia, claro. Criou um espetáculo com tudo aquilo que não se ensina às crianças num teatro dito comercial, “que nada faz para educá-las; entretém-nas ali uma horinha, só isso”, explica Diana. Às aventuras e desventuras de Mel e Camila, as personagens (também elas crianças de tenra idade) que Sara e Diana interpretam em cena, a Carruagem acrescentou-lhe conteúdos programáticos do primeiro ciclo, ou seja, as crianças divertem-se com aquilo que às vezes, no caderno, no quadro da sala de aula, lhes dá a ideia de ser um bicho-de-sete-cabeças.

“A introdução dos conteúdos programáticos no Pega-Monstros não foi só uma escolha, foi também uma necessidade. E foi-o por duas razões. A primeira é simples: é verdade que não temos a pretensão de educar as crianças na vez dos professores, não vamos tomar-lhes o lugar na sala de aula, mas estes conteúdos são algo com que as crianças se identificam, independentemente da idade. Mas por outro lado, precisávamos de nos projetar no panorama escolar. Como é que vamos vender este espetáculo às escolas se não há nada de escolar nele? Não cabem lá todos os conteúdos, de todos os anos — se não o espetáculo teria três horas ou mais –, mas cabe a Matemática aplicada às questões do dia-a-dia, cabe o Estudo do Meio, quando abordamos o corpo humano. É possível entreter, educando”, explica Diana.

Afinal, como é que constrói um espetáculo portátil e “não-infantilóide” para a infância?

“Nós chegámos à conclusão que, se vamos construir um espetáculo para a infância da estaca zero, vamos fazê-lo como sendo um espetáculo que nós gostaríamos de ter visto em crianças. E não vimos. Não vimos porque não havia nada quando tínhamos a idade delas. Nós tínhamos que nos rever no Pega-Monstros. Não queríamos que fosse um espetáculo infantilóide como muito do teatro para a infância que hoje se faz”, explica Diana Barnabé.

Mas as crianças não são mais como Diana, Sara e André o foram na década de noventa. São mais voltadas às tecnologias, menos de brincadeiras na rua, às escondidas, à apanhada, e mais de se “esconderem” por trás de um ecrã a destruir uns mostrengos num videojogo. Então como se vão identificar com aquilo que a Carruagem queria ter visto e não viu?

Talvez não sejam tão diferentes assim. Nem tão diferentes dos pais, sequer. Diana explica-nos: “Os dramas das crianças de hoje, as vontades delas, as suas curiosidades, não são tão diferentes assim das nossas. As crianças são crianças. Sempre se questionaram, são espertalhonas como tudo, sempre tiveram medos. A diferença da nossa infância para a delas é mais temporal do que outra coisa qualquer. Mas também a infância dos pais delas não foi tão diferente assim. Isso percebe-se quando o espetáculo é trazido a pais e filhos em simultâneo. Os pais, com o avançar do espetáculo, não estão tão preocupados – a espreitar de esgueira – se os filhos se estão a rir ou não, se se estão a divertir ou não; são eles próprios que se estão a rir e a divertir. Há uma identificação. É um espetáculo para crianças e para quem já o foi.”

As duas atrizes do Pega-Monstros conheceram-se no Teatrando. Era Diana Barnabé quem organizava aquele Encontro Internacional de Teatro Escolar. Sara deu um workshop lá. Foi sobretudo aí, no Teatrando, que ambas começaram a contactar com crianças, “atores” por um dia, com palmo e meio de altura.

"Um dos problemas que encontro hoje no teatro para a infância é que quem cria, cria um imaginário que é dos adultos, infantilizando-o. Está errado. O que nós fazemos é utilizar o imaginário das crianças, utilizar aquilo que elas nos contaram, e transportá-lo para o palco. As crianças têm que se rever no espetáculo. Não faz sentido ser de outra forma."
Sara Barros Leitão

E foi aí, ainda a Carruagem não era mais do que uma conversa entre elas, um esboço num caderno com ideias e ideais de teatro, que começaram a recolher, quase inconscientemente, material que lhes seria muito útil na hora de escrever o Pega-Monstros.

“Quando se constrói um espetáculo, seja ele qual for, a primeira coisa a ter em consideração é o público. O teatro exige que haja público. Só acontece teatro se o público estiver lá. Portanto, o que nós pensámos quando construímos o Pega-Monstros foi: quem é que nos vai ver? Isto não significa que tu só faças aquilo que o público que ver. Não é isso. Mas tens que pensar nele. Mais a mais sendo um público, o do Pega-Monstros, composto essencialmente por crianças. O que nos deu uma ajuda e tanto foi o facto de não estarmos a trabalhar no escuro, digamos assim. Se nós tivéssemos que criar um espetáculo sobre dança, seria um problema, porque nem eu, nem a Diana ou o André somos bailarinos. Mas é sobre crianças. É para elas. E tanto eu como a Diana trabalhámos com crianças, vamos às escolas dar aulas de teatro aos alunos, a Diana também organiza o Teatrando, e esse background ajudou-nos, claro. É preciso conhecer-se o público para quem se cria. Mais a mais sendo esse público de crianças. Um dos problemas que encontro hoje no teatro para a infância é que quem cria, cria um imaginário que é dos adultos, infantilizando-o. Está errado. O que nós fazemos é utilizar o imaginário das crianças, utilizar aquilo que elas nos contaram, e transportá-lo para o palco. As crianças têm que se rever no espetáculo. Não faz sentido ser de outra forma”, explica Sara Barros Leitão.

O tempo. Sempre o tempo. O teatro para a infância deve ser curto mas não veloz. Deve “respirar-se”. E atenção: os olhos também comem

Na Carruagem sabe-se que – tal como no teatro da Formiga Atómica de Miguel Fragata e Inês Barahona e tal como em quase todo o bom teatro para a infância que se faz em Portugal –que as crianças são o mais exigente dos “passageiros”. Ou o espetáculo os capta, ou dispersam-se.

“Quando nós estreámos, o Pega-Monstros tinha uma hora e 15 minutos. Hoje tem 50 minutos. Era essencial encurtar o espetáculo se queríamos que as crianças não dispersassem a meio. Mas é difícil. É quase como se nos pedissem para escolher de qual dos filhos nós gostamos mais. A Diana é quem mais sofre. Eu sou o ‘lápis azul’”, recorda Sara.

E Diana, com um esgar de dor ao recordar-se do “censor” que Sara é, acrescenta que não é só a duração que capta a criança para a cena: “Se o espetáculo era cansativo para nós, que chegávamos ao final completamente de rastos, para as crianças, mesmo que só a assistir, também o seria. Mas não é só na duração que está um dos segredos quando se cria para a infância. Está também no ritmo. Essa teoria de que ‘Ahhh, temos que estar sempre a concentrá-las, a chamá-las à atenção!’ não é verdade. Às vezes não é na velocidade com que se diz o texto que está o segredo para concentrá-las. Às vezes está no silêncio. As crianças, no dia-a-dia, estão habituadas a que tudo seja rápido, rápido, rápido. Não tem que ser. Às vezes há que acalmar o espetáculo, dar-lhes o tempo de que precisam para parar, contemplar, respirar. Eles não vão correr a maratona. E nós também não. O teatro tem que ser respirado.”

"Nós estamos a lutar contra um sistema de ensino que quer que elas sejam as mais rápidas, as melhores, as mais isto, as mais aqueloutro. E nós queremos contrariá-lo. Este sistema de ensino está a educá-las para o capitalismo. Nós estamos só a querer que sejam o que são: crianças. E o nosso espetáculo também as ensina a brincar."
Sara Barros Leitão

Sara Barros Leitão fala de “utopia” quando se fala de dar às crianças tempo.

“Querer dar-lhes momentos num espetáculo em que elas podem fazer tão simplesmente isso, respirar, em que podem ser somente crianças, é quase uma utopia, sim. Nós estamos a lutar contra um sistema de ensino que quer que elas sejam as mais rápidas, as melhores, as mais isto, as mais aqueloutro. E nós queremos contrariá-lo. Nós aceitamo-las como são. ‘Se é assim que tu compreendes o texto, está certo. Se te queres rir aqui e não onde o teu coleguinha do lado se riu, ri.’ Este sistema de ensino está a educá-las para o capitalismo. Nós estamos só a querer que sejam o que são: crianças. Mas não deixa de ser um contrassenso que, por um lado, as escolas escolham espetáculos de teatro que infantilizam as crianças, mas, por outro lado, querem fazê-las adultas, dê lá por onde der, sem terem sequer tido tempo para brincar. As crianças sabem cada vez menos como é que se brinca. E o nosso espetáculo também as ensina a isso: a brincar.”

Mas as crianças não se captam para o teatro só com o texto. Não se captam só com os ritmos e as respirações com que as atrizes o dizem. São necessários adereços. Cenografia.

E isso é com André Santos – que durante a conversa a três acenou afirmativamente a tudo quanto Sara e Diana diziam, mas que, chegada a hora de falar de cenografia, chega-se à frente. “Quando penso na cenografia, nos adereços, penso-os com materiais com os quais as crianças de identifiquem. No espetáculo Pega-Monstros utilizei cartão, utilizei papel kraft, e utilizei-os para fazer um adereço, um ‘livro mágico’, tridimensional. A cor destes materiais, crua, dá um aspeto antigo ao livro, quase gasto, com histórias dentro, e isso é algo que despertas as crianças para o objeto em si. Fosse um livro ou fosse o que fosse.”

Quando se constrói um adereço de cena, para uma cena que é para crianças, há que construí-lo com simplicidade. O mais possível. “Não sendo naturalmente simples, este é um livrinho que, em casa, com os pais, ou na escola, com o supervisão dos professores, as crianças até podem fazer à sua escala. Não tão elaborado, mas tridimensional, sim”, conta André, que mesmo antes de testar o adereço em cena, testa-o em casa, com os seus “putos”.

Ele explica: “Mesmo antes do espetáculo estrear, e logo durante a fase de construção dos adereços, testo-os com crianças, testo a reação deles àquilo. Nem é tanto uma necessidade minha, mas como tenho sempre a casa cheia de putos, sobretudo ao fim-de-semana, eles veem o adereço, querem tocar-lhe, perguntam-se como se faz aquilo, espantam-se, e a reação é logo tão fixe, que certamente também o será em cena, com mais crianças a assistir.”

"Carruagem vai à Escola" é o serviço educativo da companhia "Carruagem". "Pega-Monstros" foi o primeiro espetáculo. E continua em itinerância pelas escolas (Créditos: Carruagem - Tráfego de Ideias)

Carruagem - Tráfego de Ideias

Sara recorda que “quando nós abrimos o livro em cena, em qualquer escola, colégio, com pais, com professores, em qualquer local do país, ouvimos em uníssono – sempre, sempre: ‘Uuuaaaaauu!’” Uma onomatopeia que não acontece pelas melhores razões.

“Isso é engraçado, sim. Mas creio que só acontece porque as crianças, hoje, têm cada vez menos contacto com livros que não são de estudo, com o simples manuseio de um livro. E nem tão pouco estão habituadas a ter, a ver, um livro pop-up. Foi uma tradição que se perdeu. Eu sempre tive, em casa, na escola, livros pop-up. A Diana e o André também. Mas o fascínio delas com a possibilidade de um livro não ter que ser um calhamaço que se tem lá por casa na estante, em que não se toca porque se é criança, um livro a três dimensões, com que se brinca, faz-me crer que nenhuma (ou quase nenhuma) daquelas crianças algum dia contactou com aquele objeto”, conclui.

As crianças são crianças. Na cidade ou na aldeia. Mas são poucas (num e noutro lado) as que vão ao teatro. E menos ainda aquelas a quem o teatro vai a si

“O que é politicamente correto é dizer-se que as crianças são todas iguais. Mas não são. E também não o são quando vão assistir a um espetáculo de teatro. Não são porque os contextos sociais, económicos, culturais, variam de região em região, de cidade em cidade e de escola em escola. Até de família para família”, garante Diana.

Sara Barros Leitão interpreta Mel em "Pega-Monstros" (Créditos: Carruagem - Tráfego de Ideias)

Carruagem - Tráfego de Ideias

Mas só são diferentes até Mel, ou melhor, Sara Barros Leitão , entrar em cena – é ela a primeira a fazê-lo. “O que eu sinto é que, mal o Pega-Monstros começa, não há antagonismos absolutamente nenhuns: a predisposição deles, a postura, é igual seja lá onde for, norte ou sul, colégios privados ou escolas públicas, mais ricos ou menos, com mais acesso à cultura ou com menos. É igual.”

— Sabes o que nos reconforta? Qual é o nosso triunfo, verdadeiramente?” — pergunta Sara.

Qual? “É vê-los no final, boquiabertos, às vezes com um bocado de baba a escorrer no canto da boca [Risos], porque se esqueceram de fechá-la. Esse é o triunfo. Não é fácil consegui-lo, na Era da Internet, em que as crianças têm acesso a tudo a toda a hora, na Era dos videojogos, em que tudo é veloz, tudo se faz numa correria que só visto, não é fácil tê-los despertos para o que nós dizemos. É um triunfo consegui-lo.”

"Para muitas crianças esta é a primeira experiência de teatro que têm. Em Vimioso, por exemplo, em mais de oitenta crianças, só trinta delas é que já tinha ido ao teatro. Uma só vez. E em Espanha! Às tantas nem sabiam muito bem como se comportar", recorda Sara. 

A Carruagem de Sara, Diana e André quer, com o serviço educativo Carruagem Vai à Escola, trazer teatro a todos e, sobretudo, onde não há teatro. Mas também quer criar públicos de teatro. “Nós descobrimos que para muitas crianças esta é a primeira experiência de teatro que têm. E não sabem tão pouco o que é o teatro. Uma coisa que nós fazemos sempre é, mal o espetáculo termina, nós estamos com elas, conversamos com elas, respondemos-lhes a tudinho o que quiserem saber. Mas como Sara e como Diana. Não como a Mel e a Camila, que são os nossos personagens. Não há sequer o figurino vestido. Porquê? Conversar com eles como se aquelas personagens existissem, é infantilizá-los, é tomá-los como tontinhos, que não são nem queremos que sejam”, explica Sara.

E acrescenta: “Em Vimioso, por exemplo, foi-nos muito, muito especial ir lá, e fizemos um espetáculo para mais de oitenta crianças. E a verdade é que só perto de trinta delas é que já tinha ido – e uma só vez – ao teatro. E só foram ao teatro porque foram a Espanha, imagine-se!… Às tantas as crianças nem sabiam muito bem como se comportar. Tudo aquilo era uma novidade para elas. É disso que falamos, quando falamos em criar públicos de teatro.”

Mas não são só públicos de crianças que se criam. É que para muitos pais também é a primeira experiência de teatro que têm quando vão “arrastados” pelos filhos ver o Pega-Monstros. Fica-lhes o prazer de ver teatro entranhado e regressam. Sozinhos.

“Nós conhecemos casos de crianças que são elas que arrastam literalmente os pais para o nosso espetáculo. Nem elas nem os pais tinham a tradição de ir ao teatro. Sobretudo em locais mais deslocalizados da Grande Lisboa ou do Grande Porto — é sobretudo esse o nosso circuito com o Pega-Monstros. E são essas crianças que criam um público (que antes não havia) lá em casa. O Pega-Monstros foi o nosso primeiro espetáculo. E esses pais iam acompanhar os filhos. O espetáculo era para a infância, portanto. Hoje, que temos um espetáculo [As Coisas Pelos Nomes] que é para um público mais de adultos – ou pelo menos para maiores de 12 anos, que é um espetáculo mais sério, que mergulha na memória, esses pais, que habitualmente não iam ao teatro, arranjam maneira de deixar as crianças com um babysitter, ou com os avós, e vão eles, sozinhos, a este espetáculo”, conta Sara.

Susana Menezes: a programadora de teatro para “os meninos” que chegou à programação por acaso. “Um feliz acaso”

A mesma voz grave, radiofónica, encorpada, com que Susana Menezes conversa, adoça-se quando se refere aos meninos, assim mesmo, “os meninos”, para quem programa o teatro – e não só – no Maria Matos, em Lisboa.

Susana Menezes é quem coordena o Programa para Crianças e Jovens do Maria Matos Teatro Municipal (Créditos: José Frade/Maria Matos Teatro Municipal)

José Frade/Maria Matos Teatro Municipal

É portuense. E foi precisamente no Porto, onde fez dobragens para desenhos animados durante anos a fio, onde foi professora de Educação Visual e se tornou designer de profissão, que começou, em 2001 e até 2006, no Teatro do Campo Alegre, a escolher o que as crianças veem. Susana conta-nos o “feliz acaso” do convite: “Certo dia convidaram-me para fazer um recital de poesia com um grupo de amigos no Teatro do Campo Alegre. Nós tínhamos um projeto poético chamado Forças Amadas, que, mais tarde, se chamaria Caixa Geral de Despojos. Na altura o Guilherme Figueiredo, que era o diretor do Teatro, conversou comigo, conhecia o meu currículo, e convidou-me para criar o departamento infanto-juvenil. À época mal existiam teatros municipais, quanto mais serviços educativos.”

Estávamos em 2001. Mas Susana hesitou na hora de dar o “sim”. Não sabia o que era programar para a infância. Poucos o sabiam no país.

“Eu respondi-lhe que ia pensar um bocadinho. Estive um mês a pensar sobre o que é que conseguiria fazer. E aceitei. O Teatro do Campo Alegre foi, durante muito tempo, a par do CCB, um dos poucos espaços culturais do país a ter um serviço educativo. Eu não tinha sequer 30 anos quando comecei a programar para a infância. Mas como eu já trabalhava desde os 17 anos, na altura comecei a fazer dobragens para desenhos animados, conhecia muitos dos atores portuenses, muita da cena cultural na cidade. E pensei: o que eu posso fazer num teatro, que é muito, muito recente, que nem sequer está no centro da cidade, que não era o Rivoli nem o Teatro Nacional São João, não era Serralves, e com um orçamento de quatro mil contos? O que é que eu gostaria de ver se fosse um menino? Como eu conhecia muita daquela gente das artes no Porto, pensei que o que devíamos era fazer uma visita guiada ao Teatro. Mas não uma visita normal; uma visita que fossem os atores a fazê-la. E foi aí que falei com a Joana Providência, que tinha – e tem – um trabalho que eu admiro, e pedi-lhe que pensasse num espetáculo que trouxesse os meninos aos meandros do teatro, que lhes mostrasse o que eles não veem para além do palco. Um espetáculo que os fizesse entrar na cena, atravessá-la. Aquilo foi o que mais tarde se viria a chamar de ‘visitas encenadas’. Foi o início do programa para a infância no Teatro do Campo Alegre. O meu início como programadora.”

Do Campo Alegre para o Maria Matos. Do Porto para Lisboa. O que trouxe Susana na bagagem? A ingenuidade

Desde 2006 até à data, Susana Menezes coordena o Programa para Crianças e Jovens do Teatro Maria Matos. Diz-se “ingénua” hoje como no começo, em 2001. A melhor das ingenuidades que um programador pode ter. “Era tão novinha, ainda me sentia tão próxima do que é ser-se público de teatro, que, quando programava no Porto, me questionava sobre o que é que quereria ver se fosse público, se fosse um menino daquela idade. Era uma ingenuidade boa. Certamente que falhei algumas vezes nas escolhas que fiz, sim. Mas vai-se falhando cada vez menos. Se se perde essa ingenuidade? Não. Nós não somos feitos de ferro. A ingenuidade mantém-se. Faz falta.”

Um programador pode ser ingénuo. O que não deve é enclausurar-se só no teatro para a infância. Isso infantilizaria a programação. Para programar é preciso sair. Descobrir para, depois, dar a descobrir. “Um programador tem que ver muitas, muitas coisas. Não é só teatro para crianças. Não é só teatro para adultos. É dança. São exposições: de arquitetura, de fotografia, de pintura. É poesia. É performance. É nesses lugares que se vão descobrindo coisas maravilhosas, que vamos convocando para os projetos que depois trazemos aos meninos.”

"Aquilo que eu, como programadora, me questiono é não tanto o que é que os meninos querem ou não ver, mas o que é que é importante mostrar-lhes. Como é que conseguimos trazer-lhes experiências novas. É essa frescura que é necessária procurar. Uma maneira diferente de olhar para o mundo. Uma maneira de mostrar um mundo, mais plural, mais rico, aos meninos”, afirma Susana Menezes. 

O Teatro Maria Matos é um teatro à parte. E é-o não só porque faz finca-pé da aposta na nova criação, na nova dramaturgia, nos novos formatos, com dança, com performance, tudo o que nem sempre há na programação para infância. É-o também porque, mais do que entreter, quer educar (sem pretensiosismo) as crianças.

“Aquilo que eu, como programadora do Maria Matos, me questiono é, não tanto o que é que os meninos querem ou não ver, mas o que é que é importante mostrar-lhes. Como é conseguimos trazer-lhes experiências novas. Experiências que são diferentes daquelas que eles têm noutros espaços da cidade de Lisboa – e não só. Por exemplo, quando há quatro anos começámos, com o Bernardo Carvalho, a fazer projetos com ilustradores, essa era uma matéria muito, muito recente. Não só em Portugal. Mas é essa frescura, chamemos-lhes assim, que é necessária procurar como programadora. É uma maneira diferente de olhar para o mundo. Uma maneira de mostrar um mundo, mais plural, mais rico, aos meninos”, afirma a programadora do Maria Matos.

No teatro, os temas (mais ou menos difíceis) tratam-se como em casa. E tratam-se desproblematizando-os

Susana Menezes não impõe restrições, nem a si nem aos criadores, quanto a temas.

Tudo é tratável. E trata-se no teatro como se trataria em casa. “Se há temas que não são trazidos à cena? Não. Isto é tão simples como explicar a uma criança de cinco anos como é que nascem os bebés. A resposta deve ser-lhes ajustada. A minha filha, quanto tinha uns cinco anos, perguntou-me: ‘Mãe, eu quando for crescida não quero ter bebés. Como é que eu faço?’ Eu até podia responder-lhe: ‘Ah, minha filha, usas um contracetivo.’ Mas não se lhes pode explicar isto. Não assim. Cruamente. Ela não teria ferramentas para descodificar o que lhe estava a dizer. Em vez de a ajudar a resolver um problema, eu ia complexificar um problema. O que se deve é responder-lhe até onde ela compreende naquele momento. E descansá-la. O que lhe respondi foi: ‘Não tens.’ E ela perguntou: ‘Mas como é que eu faço para não ter?!’ E aí disse-lhe: ‘Matilde, hoje tu tens uma franja, não é? E tens porque a mamã decide que tu tens. É exatamente igual ao corte de cabelo. Quando tu fores grande, és tu que vais decidir se tens franja ou não, se tens bebés ou não.’ E ela compreendeu.”

Com os espetáculos é a mesma coisa, garante. “Nós queremos lançar-lhes temas, que lhes trazem interrogações, mas que são interrogações com as quais eles conseguem lidar, interrogações às quais conseguem responder, com as suas ferramentas, e voltam para casa descansados. Eles e os pais. O problema não é, por exemplo, falar-se-lhes da morte. Na história do ‘Capuchinho Vermelho’ fala-se da morte, por exemplo. E é uma história que não deixa de se ler às crianças. O que se deve é, no mesmo espetáculo, lançar-se-lhes um problema e resolvê-lo logo ali.”

Até Shakespeare se pode dar às crianças. É tudo uma questão de elas se relacionarem com a obra. Qualquer obra

Não é a duração do espetáculo que é fundamental no teatro para a infância: é o texto. “Um menino de três anos provavelmente não suporta um espetáculo de hora e meia. Mas um espetáculo mais curto, sim, ele vê facilmente. Mas não é só o tempo que trabalha o interesse do menino. Há que ter isso em conta, sim. E eu tenho-o, como programadora, quando escolho o que vou apresentar no Maria Matos. Mas a própria dramaturgia do espetáculo, a sua construção, o ritmo que tem, também é fundamental. Outra questão que é fundamental ter em consideração é usar-se uma linguagem que menino compreenda. Se ele não compreender, não se vai relacionar com o espetáculo”, explica Susana.

Mas não é lá por se usar uma linguagem simples, que não se lhes deve dar teatro mais denso. No Maria Matos dá-se.

“A linguagem não é literal. O que é literal é que haja qualidade. Também não é literal dizer-se que os meninos de hoje querem mais uma coisa do que outra. Se calhar eles relacionam-se mais facilmente com o que é mainstream. Se calhar. Mas a nós cabe-nos encontrar o formato certo que se sobreponha a esse mainstream. O Hamlet, por exemplo. É extremamente atual. Mas é um clássico. E é denso. Em meados de 2007 eu convidei os Teatro Praga a recriá-lo para os meninos, uma recriação contemporânea. E eles aceitaram o desafio. Estamos a falar de Shakespeare. É muito, muito denso – até para os adultos. Mas eles encontraram um formato que faz com que os meninos se relacionassem com a obra. Eficazmente. Um formato que os traz para o interior da trama. Nada me dá mais prazer de ver num espetáculo para a infância, quer seja programado por mim ou não, do que ver os meninos verdadeiramente vidrados àquilo”, lembra a programadora.

A problemática das idades que não é um problema, afinal

Muitas vezes os pais não sabem ao certo a que espetáculos levar os filhos. E é muitas vezes a classificação etária dos espetáculos que os atemoriza. Se têm um filho com cinco anos e a classificação é para crianças dos cinco aos 12, não o levam porque acham que é um espetáculo demasiado difícil. E quando o filho tem 12, não o levam porque acham que é demasiado infantil. “A idade é muito, muito importante. Há meninos que são trazidos para experiências teatrais cedo demais. Ou que não são ajustadas à sua idade. E eles criam um certo medo do teatro”, explica Susana Menezes.

"Um espetáculo para meninos de três tem que ser mais acessível no que se diz, mais curto na duração, do que seria para um menino de nove, que pensa: ‘Que chatice! Isto é para meninos pequeninos!’ Nós não pegamos num livro denso, sem ilustrações, para ler a um menino de três anos à noite. Mas um menino de nove anos já consegue imaginar o que se diz quando se lê um livro sem ilustrações. No teatro é igual."
Susana Menezes

A questão da classificação etária dos espetáculos (que é regulada pelo IGAP, o Instituto de Gestão e Administração Pública) é “delicada”, descreve-a assim Susana.

“Eu não lhe chamaria de classificação, mas de sugestão. Vamos tomar o exemplo do espetáculo Hamlet, a adaptação dos Teatro Praga. Se é um espetáculo mais orientado para meninos a partir dos nove anos, mas que é visto por um menino que só tenha três, esse menino vai achar estranho que no final todos morram, não é? Há outros espetáculos mais direcionados para meninos dessa idade. Mas um menino de nove, tal como o espetáculo lhes é apresentado, como fala descomplexadamente de todo aquele drama shakespeariano, vai sentir-se perfeitamente confortável com aquilo. E até vai querer uma cópia do texto para levar para casa, como eu cheguei a assistir. Por outro lado, um espetáculo para meninos de três tem que ser mais acessível no que se diz, mais curto na duração, do que o seria para um menino de nove, que pensa: ‘Que chatice! Isto é para meninos pequeninos!’ Só isto já nos ajuda a balizar as idades. A reação deles ajuda-nos. É importante que nos coloquemos no lugar deles — os mais novinhos e os mais velhos. Por exemplo, nós não pegamos num livro denso, sem ilustrações, para ler a um menino de três anos à noite. Mas um menino de nove anos já consegue imaginar o que se diz quando se lê um livro sem ilustrações.”

… E há ainda um teatro mais “delicado” (para um programador) do que o da infância: o teatro para bebés

“O teatro para bebés é delicado, muito delicado de se construir”, relembra Susana. E é-o porque “não há documentação muito consistente” sobre até onde é que os bebés assimilam a informação que lhes é trazida. Há alguns estudos, sobretudo ao nível da perceção dos espetáculos, de teatro, de música, mas a verdade é que “eles são muito pequeninos.”

“São bebés com menos de ano e meio. Muitos deles só começam a andar depois dessa idade. É verdade que eles ficam atentos ao som, ao movimento, às luzes. Mas será que compreendem o que veem? A verdade é que se colocar-mos um menino de seis meses em frente da televisão, e ele assistir a um anúncio a um champô, eles vai ficar atento, sim, mas compreenderá que é um champô ou sequer que se trata de um líquido. Nós não sabemos se eles compreendem ou não o que se faz no espetáculo”, explica.

Mas sabem a que estímulos eles reagem. “É isso que lhes trazemos. Estímulos. Por outro lado, também é uma experiência para os pais, que vão ao teatro sem a preocupação dos choros, dos cocós, das fraldinhas. É um espetáculo de partilha, também. Todos aqueles pais estão na mesma condição.”

O que se faz de bom e de mau para a infância. Ao programador cabe-lhe escolher. E elevar a fasquia

A pergunta impõe-se: e como vai o estado do teatro para a infância em Portugal? Susana hesita, pensa demoradamente, mas responde por fim. Ele que sabe o que se faz em Portugal de traz para a frente. Mas só traz para o Maria Matos o que está realmente avant-garde.

“A oferta é hoje muito maior. E quando se cria um bom espetáculo para a infância, ele não se esgota na estreia, não se esgota naquele primeiro teatro onde estreia, mas prolonga-se no tempo, é apresentado em mais sítios e até lá fora.” E isso era algo que não acontecia há uns anos, sabe-o Susana, que coordena o Programa para Crianças e Jovens do Teatro Maria Matos desde 2006, mas que já faz programação para a infância há mais de uma década.

"Eu só convido para o Maria Matos os criadores que acho certos. É preciso ter um pé no futuro. Ter connosco aqueles que têm provas dadas e aqueles que têm potêncial de crescimento”, explica Susana Menezes.

O teatro para a infância não é mais um teatro menor. Há muitos (e talentosos) criadores a fazê-lo. E com um retorno que muitas vezes o teatro dito adulto não lhes dá.

“Hoje quem faz um bom trabalho, não só tem reconhecimento, como visibilidade. Às vezes uma criação para adultos não lhes dá esse retorno. Por outro lado, se os programadores forem mais exigentes, se só trouxerem para os seus teatros o que há de bom, isso vai aumentar, necessariamente, a qualidade geral. Vai fazer com os artistas também sejam mais exigentes consigo. Eu só convido para o Maria Matos os criadores que acho certos. É preciso ter um pé no futuro. Ter connosco aqueles que têm provas dadas e aqueles que têm potencial de crescimento”, explica Susana.

Reportagem, texto e locução: Tiago Palma
Vídeo e edição: Miguel Soares

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