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Não havia psicoterapia na época e Elvis fez da sua guitarra o seu sofá de Freud: todos os problemas, todos os desejos eram canalizados para aquela guitarra que, em vez de devolver interpretações psicanalíticas, devolvia canções. Grandes canções

Redferns

Não havia psicoterapia na época e Elvis fez da sua guitarra o seu sofá de Freud: todos os problemas, todos os desejos eram canalizados para aquela guitarra que, em vez de devolver interpretações psicanalíticas, devolvia canções. Grandes canções

Redferns

Todos temos demónios: os de Elvis Presley eram apenas muito mais talentosos que os dos outros

Há 50 anos, Elvis entrava nos estúdios da RCA em Nashville e voltava a ser o Rei, sem artifícios, sem exageros. O rock'n'roller sonhador que quase esquecemos e que agora podemos (re)descobrir.

A tragédia de Elvis Aaron Presley começou a 8 de janeiro de 1935, em Tupelo, Memphis, no estado do Tennessee – um momento tão definidor na sua vida e na mitologia do rock’n’roll que foi descrito de forma mais ou menos literal em canções de Scott Walker e de Nick Cave: 8 de janeiro de 1935 é a data de nascimento de Elvis e devia ser, também, a data de nascimento do seu irmão gémeo, que saiu morto da barriga da mãe.

Não podia haver melhor símbolo para o que é o rock: tanto o simples praticante como a estrela de maior sucesso são seres marcados pela sua própria incompletude, gente que anda uma vida inteira à procura de algo que os faça sentir inteiros, que lhe dê segurança na sua identidade. Mas, e esta é a tragédia do rock’n’roll, nem todas as vendas de discos do mundo, nem todas as plateias cheias por este globo imperfeito fora, tornam completa uma mesa que nasceu manca.

A infância de Elvis Presley foi, como outras dessa época, acidentada: o pai foi preso por falsificar cheques, Elvis e a mãe foram viver com parentes e, daí para a frente, o rapaz tornou-se um solitário, tanto em moço como em homem – tal como todas as estrelas de rock antes e depois dele. Supostamente, Elvis era próximo da mãe; supostamente a mãe era ainda mais próxima do filho perdido.

[ouça aqui “From Elvis in Nasville” na íntegra através do YouTube:]

Em 1946, Elvis recebeu a sua primeira guitarra e a solidão deixou de ser um problema – o rapaz começou a levar a sua guitarra para a escola, o povo começou a notá-lo e em menos de nada o garoto descobria o seu flex. A história podia ter acabado aqui – o rapaz integrava-se no seu meio social, acabava o liceu, arranjava um emprego, às sextas à noite tocava com a sua banda num bar de Tupelo.

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Só que Elvis queria mais – na realidade, Elvis queria o irmão de volta, a mãe tal como era antes da perda de um filho, o pai com que nascera. Não havia psicoterapia na época e Elvis fez da sua guitarra o seu sofá de Freud: todos os problemas, todos os desejos eram canalizados para aquela guitarra que, em vez de devolver interpretações psicanalíticas, devolvia canções. Grandes canções. Extraordinárias canções, coisa que se parece ter esquecido, como se as tais grandes canções nunca tivessem existido.

Pensando bem, isto explica-se. Esqueceu-se porque Elvis morreu com apenas 42 anos, sucumbindo a si próprio – ao seu apetite voraz por comida, álcool e drogas – e tornando-se um mito. Como todos os mitos, o de Elvis passa ao lado do mais importante para o reduzir a epítetos sem sentido: foi “o rei do rock”, o “cantor mais amado da América”. Graceland, a sua casa em Memphis, foi transformada num museu. Episodicamente, a indústria lança uma caixa de compilações de CDs de Elvis que vendem bem entre os boomers deste mundo e que promete “dar a conhecer o verdadeiro Elvis”.

Elvis sempre foi melhor do que Elvis; do que Elvis despido das orquestrações que começaram a encher as canções que escreveu, que Elvis só com uma banda atrás era, simplesmente, extraordinário.

O problema é que há muito Elvis (em disco e em cinema), mas nenhum obrigatoriamente o verdadeiro: entre 1954 e 1956, Elvis gravou os seus primeiros discos para a Sun Records, a editora do genial Sam Philips, e a partir daí foi para a RCA e nunca mais foi o homem do rock’n’roll puro das primeiras gravações para a Sun (que se encontram em Elvis at Sun) ou do álbum homónimo de 1956 para a RCA. A partir daí, gradualmente, Elvis tornou-se uma marioneta da sua entourage, que o encaminhou cada vez mais para o mainstream, o fez dar concertos a um ritmo alucinante, o colocou em casinos de Las Vegas (onde a criatividade dos artistas vai morrer) e o convenceu a seguir uma carreira cinematográfica em que, invariavelmente, fazia de canastrão engatatão. A energia vital, sexual e caótica de Elvis foi desaparecendo e em seu lugar ficou um boneco de popa no cabelo, cada vez mais incapaz de mexer as ancas ou de inovar.

O capitalismo tem muitos defeitos mas por vezes alguns deles dão jeito – há demasiadas compilações de Elvis, mas uma recente, From Elvis In Nashville, composta de 74 canções, mostra-nos que Elvis sempre foi melhor do que Elvis; do que Elvis despido das orquestrações que começaram a encher as canções que escreveu, que Elvis só com uma banda atrás era, simplesmente, extraordinário.

Sendo um rapaz de Memphis, Elvis passava imenso tempo fora da sua terra natal, fosse em concertos ou a gravar discos a um ritmo alucinante. Em junho de 1970, ele parou em Nashville para uma série de gravações que duraram cinco dias e providenciaram material suficiente para três discos That’s The Way It Is, Elvis Country (I’m 10,000 Years Old) e Love Letters from Elvis. Os discos originais são fortes, a voz de Elvis está ótima e cada disco tem três ou quatro pérolas.

Elvis Presley (ao centro) com os músicos que o acompanharam nas sessões de gravação de 1970 nos estúdio RCA Victor em Nashville

Mas são discos cheios de overdubs, sopros, metais, cordas. O que encontramos em From Elvis In Nashville é outra coisa: as canções completas, mas antes de serem orquestradas, as demos, os takes falhados, enfim, Elvis como ele gostava de estar: num estúdio, rodeado de grandes músicos, relaxado e feliz, a dizer palavrões e a experimentar o que bem lhe apetecia.

Uma história dessas sessões exemplifica o que era a vida de Elvis: como as sessões se desenrolavam noite dentro (já que Elvis dormia durante o dia), havia travessas e travessas de comida a serem entregues no estúdio durante a noite. Mas quando um músico se aproximava de determinada travessa, um dos membros da entourage de Elvis dizia: “Isso são os pickles do senhor Elvis”. E ninguém mexia nos pickles, mesmo que o próprio Elvis se estivesse a marimbar para quem lhe comia o pickle.

Havia, no entanto, um lugar sagrado no qual a entourage não entrava: a sala de gravações. E é aí que encontramos aquele que mais se aproxima do Elvis miúdo que se apaixonou por música. Seja a cantar “Bridge Over Troubled Water” (dando 1000 a 0 ao original), a rockar largo, a usar a palavra “motherfucker” na letra de uma canção que não continha a palavra “motherfucker”, em cada uma destas canções Elvis canta como um deus maior, ora com uma vulnerabilidade imensa ora com a confiança e a intensidade sexual dos eleitos.

O que aqui temos, em From Elvis in Nashville, é o "gato dos gatos", um sobredotado que amava estar em estúdio com os melhores gatos, a experimentar, a falhar, a tentar outra vez. O que aqui temos é o Elvis que nos foi retirado e, acima de tudo, o Elvis que foi retirado a si próprio.

Os dois primeiros CDs incluem as versões que seriam usadas nos três discos acima mencionados – as versões sobre as quais seriam depois colocados arranjos opulentos, de modo a que as canções chegassem às massas. São, musicalmente, as canções mais conseguidas e são melhores do que as versões finais, completas e arranjadas. É como se com Elvis “menos” fosse igual a “mais” – uma bateria, uma guitarra, um baixo, um piano, isto era tudo o que a voz do Rei precisava para transmitir uma quantidade infernal de emoção, para fazer uma quantidade de faísca maior do que uma caixa de alumínio colocada dentro de um micro-ondas. (Destaque para “I Was Born About Then Thousand Years Ago”, um espanto de rock’n’roll nashvillesco.)

Nos dois últimos CDs estão os outtakes, as canções falhadas, aquelas em que Presley erra, alguém entra fora do tempo – e é lá que está encerrado o Elvis que não pôde existir, o Elvis que o público não queria, mas também é lá que está o Elvis gato dos gatos. Isto não é uma apreciação estética sobre o aspeto de Elvis: “cat” é como os músicos designam um músico de talento. Elvis era um “cat’s cat”, o típico músico que os músicos adoram, porque é tão instintivo, tão capaz de, do nada, canalizar a mais ínfima variação de uma emoção humana, que consegue transformar uma boa canção num espanto. Claro que para isso é preciso trabalhar e errar e tentar outra vez, porque um gato precisa de cair muitas vezes até aprender a cair nas quatro patas.

E o que aqui temos, em From Elvis in Nashville, é o “gato dos gatos”, um sobredotado que amava estar em estúdio com os melhores gatos, a experimentar, a falhar, a tentar outra vez. O que aqui temos é o Elvis que nos foi retirado e, acima de tudo, o Elvis que foi retirado a si próprio. À medida que Elvis foi sucumbindo ao seu próprio mito (que lhe era sussurrado ao ouvido pela sua própria entourage) o estúdio, ou melhor, os outtakes do estúdio, acabaram por ser o lugar onde Elvis mais se revia, onde reencontrava aquela coisa do rock’n’roll de tentar e falhar e de repente encontrar.

[um mini documentário sobre a produção de “From Elvis in Nashville”:]

Há duas visões sobre Elvis que prevalecem: os críticos dizem que ele foi meia dúzia de singles para a Sun e dois discos para a RCA; os historiadores afiançam que foi uma manobra da indústria branca para capitalizar numa música de negros (o R&B, que se transformava então em rock). Ambas as teorias têm uma ponta de razão – mas falta a terceira: Elvis era o gato dos gatos, o que caía e se levantava de novo – e que em estúdio voltava a ser o miúdo que sentia saudades do irmão que não conheceu, que precisava da atenção da mãe, que tinha o pai preso e não tinha qualquer outra companhia senão o som sujo de uma guitarra que usava como se fosse o divã do senhor Freud.

E do lado de lá da guitarra saíam canções absolutamente extraordinárias. Todos os gatos têm demónios – os do senhor Presley eram só mais talentosos que os demónios dos outros. Muito mais talentosos.

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