A imagem de um carro de porta aberta visivelmente danificada, alegadamente por um incêndio, está a circular nas redes sociais em tom de alerta para o que pode acontecer caso deixe alguma embalagem de álcool em gel dentro de um carro exposto ao sol. Desde logo, com as temperaturas que se tinham verificado em Portugal até ao final de abril (quando a fotografia começou a circular), era muito pouco provável que tivesse sido essa a origem do incêndio visível nas imagens.

Além disso vários especialistas dizem que um frasco de álcool-gel — sem uma fonte de ignição e apenas com as temperaturas que se verificam dentro de um carro ao sol, por mais elevadas que sejam — não incendeia. É portanto falso que tenha sido apenas o sol e o álcool gel a provocar o pequeno incêndio que danificou a porta.

Numa altura em que os portugueses andam com frascos similares no seu dia a dia, todo o cuidado é pouco, por isso, vamos por partes.

Exemplo de uma das publicações no Facebook que alerta para perigo de deixar álcool gel no dentro de um carro ao sol.

Em primeiro lugar, um aviso: se puder não deixar o álcool em gel dentro de veículos fechados sob um sol intenso, é melhor. Conforme pode confirmar pelo rótulo das embalagens que tem na sua posse, todas alertam para o facto de ser um líquido inflamável. No mínimo 70% é álcool, mas está misturado com glicerina e outros componentes.

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Agora vamos a factos: Segundo a investigadora na REQUIMTE (Rede de Química e Tecnologia), La Salete Balula ouvida pelo Observador é “praticamente impossível” que uma pequena quantidade de álcool gel possa ter provocado um incêndio que tenha danificado a porta do carro conforme as publicações no Facebook querem induzir.

“Só se estivermos a falar de um barril de 5 ou 10 litros, a 40º por exemplo, agora meio litro ou um quarto de litro não acredito que seja verdade. Para a comunidade científica, acho que não é verdade”, afirmou a investigadora comparando ainda as embalagens de álcool em gel mais comuns — e que é possível guardar na porta de um carro — com uma garrafa de whisky. “Uma garrafa de wishky, tem 50 ou 55% álcool, um bocadinho menos, mas é mais fácil de entrar em ebulição do que álcool gel porque o álcool gel está diluído em glicerina”, nota a especialista acrescentando que “não há notícia de qualquer incêndio causado por uma garrafa“.

Também o Estadão ouviu o especialista Reinaldo Bazito, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, que deu como certo que o “álcool em gel não entra em combustão sozinho”. Segundo o especialista, para que o álcool gel entrassem em combustão espontânea seria preciso que atingisse uma temperatura de 363ºC, algo impossível mesmo para um carro estacionado ao sol.

Já ao Polígrafo, Júlia Alves, coordenadora do Gabinete de Segurança, Saúde e Sustentabilidade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, garantiu que  “o ponto de auto-ignição do etanol, o componente mais inflamável do álcool gel, é de 455ºC“, sendo necessário que o líquido dentro das viaturas atingisse essa temperatura para provocar um incêndio.

Ainda que a temperatura possa variar consoante os vários componentes que compõem o álcool gel, todos os especialistas ouvidos são perentórios a afirmar que uma pequena embalagem de álcool gel seria incapaz de provocar um incêndio que destruísse a porta de um carro, conforme mostram as imagens. Ainda assim, há o outro lado, o da prudência, para que todos alertam: ainda que seja praticamente impossível, tratando-se de um líquido que contém componentes inflamáveis não deve ser deixado debaixo de uma forte exposição solar.

Outro dos especialistas ouvido pelo Observador foi mais cauteloso ao apelar para que não se deixem embalagens de álcool gel no carro, especialmente com o aproximar do verão. Ainda que, caso alguma vez se esqueça, não represente um perigo muito grande, o mais correto será mesmo não optar por esse local para guardar as embalagens de gel desinfetante que passaram a fazer parte do seu dia a dia.

Ao Observador, o investigador do Centro de Física e Investigação Tecnológica do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa, Filipe Ferreira da Silva, explica que seria preciso uma “temperatura muito alta” para que o álcool gel atingisse o “flash point” ou seja, o ponto de ignição, a partir do qual podia ter início o incêndio.

Considerando que todos os álcool gel desinfetantes, que agora passaram a fazer parte do dia a dia dos portugueses, têm na sua composição álcool a 70% e acetona, por exemplo, dois líquidos altamente inflamáveis há sempre algum risco envolvido. O investigador explica ainda que os rótulos dos produtos estão identificados com os sinais de perigo que indicam que no interior da embalagem há “líquido e vapor facilmente inflamáveis”, devendo os utilizadores prestar sempre atenção às recomendações que as embalagens ou fichas técnicas contêm, como neste exemplo.

Ficha técnica de uma dos vários tipos de gel desinfetante

No exemplo, fica claro na ficha técnica do álcool gel que este deve ser “armazenado em local bem ventilado” e conservado “em ambiente fresco“, sendo que não deve ainda ser aproximado de nenhuma fonte de ignição — chama ou faísca, por exemplo. Quanto à hipótese de uma embalagem de álcool guardada na porta de um carro se ter incendiado e danificado parte do carro, Filipe Ferreira da Silva diz que “não deverá acontecer, nomeadamente com as temperaturas que temos tido”.

Segundo um estudo científico publicado na revista Temperature, a temperatura média de um carro ao fim de uma hora, a absorver sol diretamente, é de 46,6ºC, longe dos 363ºC ou 455ºC dados como necessários por alguns especialistas para o ponto de combustão. O mesmo estudo aponta também para que um carro estacionado ao sol possa atingir os 69ºC na zona do painel do carro (imediatamente abaixo do vidro da frente, se este for deixado sem qualquer proteção), com uma média de temperatura de 46ºC em todo o carro.

Mas, apesar de para já, as temperaturas não permitirem que o carro chegue a temperaturas tão elevadas, o investigador deixa o alerta para o perigo que é deixar uma embalagem de álcool gel num carro, por exemplo, durante o verão. “É de precaução que não se deixe dentro do carro, nomeadamente porque vamos entrar no verão. É pouco provável [que um incêndio aconteça], mas pode acontecer, não deixa de ser um líquido que está nas classes de líquidos inflamáveis”, alerta o professor da Universidade Nova de Lisboa.

Não é possível perceber onde a fotografia foi tirada, mas está a ser partilhada como se o momento tivesse sido registado em Portugal, algo que não deverá ser verdade, atendendo às temperaturas amenas que as primeiras semanas de primavera trouxeram ao país. Também não é possível provar, através da imagem, que o incêndio em causa foi causado por uma embalagem de álcool gel, podendo ter tido na sua origem qualquer outra fonte de calor.

Conclusão

Apesar de a fotografia apontar para a hipótese de este incêndio num carro (devido a uma embalagem de álcool gel) ter acontecido já em Portugal, é pouco provável que corresponda à verdade, porque uma pequena quantidade de álcool gel precisaria de temperaturas altíssimas para entrar em combustão sem outra fonte de ignição. Os investigadores são unânimes em referir a quase “impossibilidade” de os danos visíveis na fotografia terem sido causados por uma embalagem de álcool gel deixada ao sol, mas alertam também para o “bom senso” de não se deixar dentro de carros produtos que são inflamáveis expostos longas horas ao sol direto.

Segundo um estudo científico publicado na revista Temperature, a temperatura média de um carro ao fim de uma hora com sol direto é de 46,6ºC, longe dos mais de 300ºC apontados pelos especialistas como necessários para o ponto de combustão. Por tudo isto, é enganador induzir as pessoas a pensar que este tipo de incêndio já aconteceu em Portugal — quando as temperaturas máximas na altura da publicação em análise rondavam 20ºC em todo o país—, mas continua a ser recomendado que não se deixe álcool gel dentro de um carro fechado sob o sol intenso, nomeadamente durante o verão.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts / DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.

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