O concerto fechou o palco principal do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em Pernambuco, no sábado dia 21 de julho de 2018 mas só agora, quase quatro anos depois, é que se tornou viral — e sob falsos pretextos.

Há quase quatro anos, no palco Mestre Dominguinhos, a meio da sua atuação, a cantora Daniela Mercury insurgiu-se contra a censura da peça “O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, protagonizada pela atriz e mulher transsexual Renata Carvalho, cuja encenação tinha sido recentemente retirada da programação do festival por ordem do Governo de Pernambuco.

“Censurar uma peça de teatro por convicções religiosas é um absurdo. Isso não pode ser permitido, a nossa Constituição não deixa isso, a nossa Constituição não é a Bíblia”, começou por dizer a cantora baiana, hoje com 56 anos, visivelmente transtornada.

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Logo a seguir, juntou “Jesus Cristo” e “gay” na mesma frase, sim, mas não na formulação agora apresentada nas redes sociais, num vídeo editado de forma grosseira em que até o som ambiente destoa e permite identificar três momentos de corte.

Eis o que se ouve no vídeo de 15 segundos, que tem sido amplamente divulgado no Brasil, e que, só no TikTok, já foi visto mais de dois milhões de vezes: “Era Jesus Cristo, sim, era gay, muito gay, muito bicha, muito viado, sim!”. E, agora, o que Daniela Mercury disse de facto pode ser comprovado através do vídeo desse excerto do concerto, disponível desde 23 de julho de 2018 no YouTube: “Ela é Jesus Cristo, sim! Jesus Cristo, eu estou aqui, eu sou gay, eu sou lésbica, e daí?!”.

Foi na sequência dessa intervenção no concerto, com o instrumental do êxito “Nobre Vagabundo” ainda em fundo, que, depois de lamentar o estado do país, evocar a “alma de Raul Seixas” e reclamar a presença de “gente que não é careta” junto de si, a cantora pediu à banda que a acompanha para soltar os primeiros acordes de “Tempo Perdido” dos Legião Urbana e lembrou o amigo Renato Russo, vocalista da banda, falecido em 1996, aos 36 anos, com sida.

E aí, sim, Daniela Mercury proferiu as palavras que agora permitiram fazer corta e cola para construir a frase que lhe é falsamente imputada: “Meu amigo Renato Russo era gay, gay, muito bicha, muito viado, sim!”.

Segundo o que a Folha de São Paulo explicou na altura, foi depois de a prefeitura local ter pedido o cancelamento da peça, em que Jesus surge como transexual, e de o próprio autarca se ter recusado a disponibilizar o Centro de Cultural de Garanhuns para a encenação do espetáculo, que o Governo cedeu, “devido à pressão de parceiros, que ameaçaram boicotar o evento”.

Em comunicado citado pelo jornal, o governo do Estado  garantiu ainda que “o Festival de Inverno de Garanhuns foi criado para unir e divulgar nossas expressões culturais e não para dividir e estimular a cultura do ódio e do preconceito”, argumento que muito irritou não apenas Daniela Mercury mas todo um movimento de artistas que entretanto se juntaram para defender Renata Carvalho — e em apenas dois dias conseguiram angariar fundos para patrocinar a encenação da peça num local alternativo e à margem do FIG, cujo tema nesse ano era “Viva a Liberdade”.

Não foi a primeira vez que a intérprete brasileira da peça, um original da escocesa Jo Clifford, também ela mulher transsexual e católica praticante, foi alvo de censura: além de ter sido proibida por ordem judicial várias vezes, “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu” chegou a ser encenado com a polícia na sala, para manter à distância os manifestantes que queriam agredir Renata Carvalho.

Depois disso, e até 2020, pelo menos, o espetáculo continuou em digressão pelo país. E Daniela Mercury também.

Agora, surpreendida pelo vídeo falso que se tornou viral, a cantora já reagiu a uma partilha em particular, feita via Twitter pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente brasileiro. Apesar de o político ter entretanto apagado a publicação, Daniela Mercury garante que tem tudo guardado e que vai processá-lo por crime contra a honra.

Conclusão

A cantora brasileira não disse em pleno concerto que “Jesus é gay”. O vídeo que entretanto se tornou viral no Brasil em que supostamente surge a fazer essa declaração é uma montagem grosseira de um concerto que Daniela Mercury deu em 2018. Nesse espetáculo, irritada com a censura de uma peça de teatro, em que Jesus era retratado como uma mulher transsexual, a cantora assumiu a sua própria homossexualidade e, enquanto cantava uma música dos Legião Perdida, recordou a homossexualidade do vocalista da banda, seu amigo, falecido em 1996.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO 

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook

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