Engenharia Aeroespacial e Engenharia Física Tecnológica voltam a ser os cursos do ensino universitário estatal com as médias de acesso mais elevadas, desta feita com as absurdas classificações mínimas de 18.95 e 18.88, respetivamente.

Como dizia um ex-primeiro-ministro, com um título de engenheiro, “deixe-me ser absolutamente honesto nesta matéria”: não vou ser eu o sujeito que vai dizer que os miúdos portugueses não devem ir para Física, seja lá o nome estrambólico que lhe derem para atrair miúdos. Para ser honesto, até acho que deviam ir TODOS para Física e depois escolher um mestrado que fosse mais adequado às necessidades do país, podendo os mais fracos ir para Direito (Estou a brincar! Não vá já a correr à caixa de comentários!…). Mas estas notas revelam várias deficiências na oferta do ensino universitário estatal e da sua adequabilidade que gostava de explanar nos parágrafos que se seguem para reflexão, não tendo eu uma solução milagrosa.

A primeira reflexão prende-se com o objetivo de ter ensino universitário estatal. É relativamente óbvio para toda a gente que o ensino universitário estatal não é público, não é para quem quer, é para quem pode. E estas notas são a prova última disso. Deve vir da nossa tradição católica-marxista acharmos que selecionarmos as pessoas pela capacidade económica é pecado, mas se as selecionarmos por outra dimensão qualquer da vida humana é virtuoso, independentemente da correlação que essa dimensão tenha com a capacidade económica, às vezes gritante. Vou apostar, sem ter dados nenhuns, que dos 161 alunos que entraram nestes dois cursos não haverá mais de 5 que se enquadrem economicamente abaixo da média quando fisicamente se esperaria a proporção contrária.  Ora, se o ensino estatal está a contribuir para a segregação social, é o próprio papel do estado que está em causa, sendo que isto não nos deve deixar calmos. Como diz alguém da política que já não me lembro, deve ser averiguado.

A segunda reflexão prende-se com a natural estupefação que as pessoas que não lidam com recrutamento têm quando olham para o nome dos cursos e para as suas médias. Como o caro leitor sabe, a indústria aeroespacial nacional não estará assim tão pujante como estas notas parecem revelar, ou assim tão necessitada do “crème de la crème” da nossa descendência. Isto para não falar do curso de Engenharia Física Tecnológica em que todo o nome é estranho, já que resulta de uma má tradução, provavelmente propositada. O curso não é de Engenharia Física porque isso não existe, é de Física de Engenharia (em inglês, Engineering Physics), um tema de nobreza científica superlativa, muitos degraus de sofisticação acima daquilo que o nome “Engenharia Física” poderá sugerir e que pretende criar a engenharia que ainda não existe. Mais uma vez, o leitor estará a pensar porque carga de água está o país tão necessitado de criar aquilo que ainda não existe, quando aquilo que existe ainda tem tanto por fazer.

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O facto é que qualquer um destes 161 jovens é a elite dos estudantes portugueses. Ainda que o Instituto Superior Técnico fosse uma escola péssima (que obviamente não é, pelo contrário), dificilmente conseguiria estragar aquilo que já é tão melhor que os outros. E os empregadores, onde me incluo, sabem disto perfeitamente. Claro que fora da indústria aeroespacial ou longe dos aceleradores de partículas, ninguém está preocupado em reutilizar esse conhecimento específico, mas está toda a gente à espera de poder usar a capacidade de abstração destes miúdos que já era muito elevada à partida e que com uma boa escola vai sendo alavancada.

A questão é, então, porquê encontrar estes subterfúgios se aquilo que se pretende é ter bons miúdos a impulsionarem-se em boas escolas? Estamos a dar a liberdade que o Instituto Superior Técnico precisa para responder a isso ou estamos a cortar vagas para que o Politécnico de Berjenjas tenha alunos? O problema é que a resposta a esta última pergunta é a segunda alternativa, não é a primeira. Se pensarmos bem, se estes cursos têm tanta procura porque é que não têm mais vagas? Sei, porque frequento o meio, que não há falta de professores para isso. E um aluno que entrasse com 15 seria assim tão pior que estes pequenos super-homens que entraram com 19? E isto leva-me á terceira reflexão.

A terceira reflexão prende-se com o custo de oportunidade do sistema de numerus clausus em que se vive no ensino estatal português. Há um par de semanas, um partido político (o CDS, penso) sugeria que os alunos que não entrassem pudessem pagar a sua entrada. A ideia era tão parva que a esmagadora maioria das pessoas achou por bem esquecer, talvez até o proponente. Mas a sugestão devia-nos ter alertado para o facto de que se um sistema é mau ao ponto de alguém levantar uma sugestão destas, então a primeira reação deveria ter sido “o sistema é assim tão mau?”.  A verdade é que se olharmos para estas notas — e olhem para elas apenas como exemplo –, dizemos que estes miúdos são sensacionais, desejamos-lhes boa sorte e também à escola que os está a educar, e ninguém faz a pergunta “então, quanto vamos perder com aqueles que não entraram?”.

E o montante deve ser inimaginável. Pensem num curso com uma tal procura que apenas se entra se se conseguir ser extraordinário em todos os pontos necessários. Todos, não se pode ser apenas muito bom num deles. Alguma razão devem os miúdos ter para irem à procura de algo que tem a ver com o futuro deles. Mas esse futuro é o nosso proveito, é a nossa economia. Todos os muito bons que não conseguirem entrar corresponderão a perdas económicas concretas.

O sistema de numerus clausus é um absurdo sem qualquer justificação em termos económicos. Quem deveria decidir sobre o quê, quanto, quando e porquê deveriam ser aqueles que estão no percentil 99 da inteligência nacional, e esses estão nas universidades, seja o estado o dono da universidade, ou não. Mas todas as decisões estão naqueles que, por um qualquer mistério cósmico, foram parar a um ministério e que, por razões que alguém saberá, aplicam a mesmíssima fórmula hoje que foi aplicada em 1977 quando não havia universidades suficientes para os alunos que tínhamos. Se mais nada pudesse indiciar o absurdo disto, o facto de ser aplicado o mesmo sistema aos alunos independentemente da capacidade de oferta fechava a questão. E se me perguntarem quão absurdo é isto, de 0 a 20, eu diria que seria, mais ou menos, 18.95.

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)

Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador