No outro dia, era domingo, ia a caminhar rumo ao supermercado – um estabelecimento que se grava no nosso quotidiano – e passei pelo cemitério que se localiza perto da minha casa. Nesse momento, por alguma razão, talvez pelas pessoas que observei a passarem com alguma agitação para comprarem e tratarem de flores, velas e toda a ornamentação das campas dos seus entes queridos que ascenderam, coloquei-me a seguinte questão: será que eu serei uma destas pessoas?

O que eu queria obter com esta pergunta inquietou-me. Na verdade, pretendia saber se, caso alguma pessoa que me é próxima falecesse, eu iria freneticamente todos os domingos tratar do local onde tal amigo ou familiar estaria em repouso eternamente. E a resposta foi quase um súbito “claro que não”.

Sou uma pessoa altamente profana. Para mim é o sagrado que me dá comichão, com todos seus determinismos filosóficos e absolutizações da realidade. E é este meu secularismo que me permite acreditar naquilo que verdadeiramente importa ao desenvolvimento do ser humano, das sociedades e do mundo: a ciência, a arte, a política e todas as outras formas de criação e expressão dos sujeitos.

A tradição portuguesa, como todos sabem, é deveras melancólica. O luto é para todos efeitos negro e, em muitos casos, torna-se crónico. Mas a razão desta cronicidade parece tantas vezes estar mais ligada à aparência do sofrimento do que com a realidade do mesmo. Como se existisse uma dívida divina no momento em que a pessoa decide avançar com a sua vida e deixar de se representar num estado de inglória permanente.

Desta forma, por mais que adore quem comigo percorre caminhos belos e desafiantes, não consigo deixar de pensar que não vou ser aquilo que se espera de um tradicional enlutado. A sensação de obrigação da ida frequente ao cemitério é-nos incutida socialmente num país em que a morte sempre foi encarada como uma desgraça justificada pela vontade de Deus. Quase nunca há um lado bonito da morte (por mais sofredora que ela seja, evidentemente), e quando o há é sempre da forma como a sociedade quer, e não como o indivíduo gostaria verdadeiramente. O gasto com os materiais de decoração das campas é como umas amarras que teimam em não ser destruídas.

Peço desculpa a todas as pessoas que têm este hábito, que não deixa de ser venerável, de acompanhar frequentemente os seus finados. Contudo, nunca deixo de pensar que a maneira mais autêntica de mostrar que aquele ser humano continua vivo é através da valorização dos seus feitos e da passagem à descendência dos seus valores, educação e cultura – sem o dramatismo da perda, e sim com a convicção da permanência espiritual. Espiritualmente profana, portanto, intrinsecamente humana.

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