A saúde dos portugueses atingiu um estado lastimável. E a culpa não é nem da pandemia, nem das insuficiências do sistema de saúde.

Neste artigo desenvolve-se a ideia de que o atual modelo de civilização e a significativa modificação e devastação dos ecossistemas em que vive o ser humano estão na base de sérios problemas de saúde, que em Portugal, e no mundo, se procuram mitigar com um forte investimento na medicalização e nos serviços de saúde.

Este, no entanto, é um caminho de doença e medicodependência, que conduz à transumanização e, possivelmente, à extinção do Homo Sapiens.

Para promover a saúde, em vez de intervir sobre a biologia do corpo e da mente, será mais sábio alterar os padrões de consumo e estilo de vida, regenerar os ecossistemas, e acordar para um conjunto de ações que harmonizam as pessoas consigo próprias, com as outras e com a natureza, numa experiência real da existência humana.

Saúde em Portugal: uma história de aparente sucesso

A saúde das pessoas em Portugal, um pequeno país com dez milhões de habitantes (dois centésimos da população europeia, um milésimo da população mundial), é contada como uma história de sucesso. A partir da era industrial, e especialmente no último século, seguindo a evolução das condições de vida da população ocidental, também os portugueses melhoraram as habitações, acesso a água potável, saneamento, eletricidade, segurança alimentar, educação, condições de trabalho e proteção social, o que proporcionou grandes ganhos de saúde. Relevantes descobertas médicas, como a penicilina e os antibióticos, foram eficazes no combate às infeções e, juntamente com a anestesia e analgesia, permitiram o desenvolvimento da cirurgia, a insulina tratou a diabetes, os raios X iniciaram o diagnóstico por imagem e muitos outros progressos científicos se sucederam a uma velocidade alucinante; há 40 anos foi criado o Serviço Nacional de Saúde e chega-se aos dias de hoje contabilizando um grande êxito no combate às doenças, no aumento da longevidade dos portugueses, na modernização dos serviços de saúde e ampliação do seu acesso à generalidade dos cidadãos, na disponibilização alargada de vacinas e medicamentos, na investigação, na implementação de novas e sofisticadas tecnologias.

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Em suma, a par da melhoria das condições de vida, houve uma extraordinária intervenção da medicina e das organizações de saúde no combate às doenças que vitimam os portugueses e os seres humanos em geral, mudando o perfil das principais causas de mortalidade que deixaram de ser infecciosas, passando a ser doenças crónicas.

Estas conquistas são extensíveis a todos os grupos etários e a ambos os sexos. O SNS português tem bandeiras como a diminuição da taxa de mortalidade infantil (que em 1913 era de 160 por mil, em 1950 reduziu para 88 por mil e, atualmente, é inferior a 3 por mil), a redução da mortalidade por doenças cardiovasculares (entre 2000 e 2017, menos 42 % de mortes por enfarte de miocárdio e doença coronária), a nova cura da hepatite C (20 mil doentes tratados e na sua maioria curados nos últimos 5 anos), o impressivo aumento da esperança média de vida à nascença (que cresceu nos últimos 100 anos de 36 para 78 anos nos homens e de 40 para 84 anos nas mulheres), sendo atualmente a média de ambos os sexos  de 81,5 anos, ligeiramente acima da média da União Europeia (81,0 anos).

Sem dúvida, há um poderoso sistema montado para ajudar as pessoas a lidar com os problemas de saúde e a viver mais.

Esta história de sucesso é vital para manter os intervenientes da saúde em ação, um sector competitivo que se agiganta de dia para dia. Ganham os profissionais de saúde, as instituições de saúde públicas e privadas e os seus fornecedores, a indústria farmacêutica e de dispositivos médicos, as seguradoras, as escolas da saúde, as entidades de investigação, crescem a economia, os impostos, os empregos, ganham os cidadãos mais confiança no sistema de saúde e recebem votos os governos muito empenhados na saúde dos cidadãos.

Tão consensual é esta narrativa de imprescindibilidade e sucesso dos sistemas de saúde, que o próprio Presidente da República, ainda antes da ameaça pandémica, apelou a um Pacto para a Saúde em Portugal, um equilíbrio virtuoso entre público, privado e social. E o Ministério da Saúde terminou o seu “Retrato da Saúde 2018”, o mais recente relatório disponível, que de forma sucinta mas abrangente se debruça sobre a saúde em Portugal, declarando “com resultados reconhecidos internacionalmente, a Saúde em Portugal, em 2018, é motivo de orgulho para todos. O caminho está longe de terminar. Mas é com foco na excelência dos cuidados de saúde e na equidade do acesso que vamos continuar a percorrê-lo.”

A Covid-19 descobre a fragilidade da população

Havendo um fluxo de pensamento dominante sobre a saúde, fortemente apoiado pelo grande desenvolvimento económico, tecnológico e científico, narrativas alternativas não são aceites, e, ou se adaptam e integram no sistema vigente, ou são destruídas por ele.

No entanto, a inesperada pandemia de Covid-19 veio destapar realidades que as pessoas não pareciam ver.

O maior choque foi com o deplorável estado de saúde das pessoas idosas (21% da população). Ainda que os portugueses que chegam aos 65 anos tenham uma enorme esperança média de vida (22 anos para as mulheres e 18 anos para os homens), apresentam, contudo, uma curta esperança de vida saudável (em média 5 anos para as mulheres e 7 para os homens), entre as piores da União Europeia. Apenas 14% dos idosos considera a sua saúde como boa ou muito boa, 62% têm algum tipo de limitação, que é severa em 20%. 70% dos idosos têm duas ou mais das seguintes doenças crónicas: acidente vascular cerebral, enfarte de miocárdio, angina de peito, hipertensão arterial, artroses, diabetes, alergias, cirrose hepática, incontinência urinária, doença renal ou depressão. 13% dos idosos residentes em lares desenvolvem feridas de pressão e 46% contraem infeções com origem na instituição. Ainda que haja aumento da longevidade, a maior parte desses anos extra no fim da vida são penosos por doença, perda de autonomia e fragilidade, que tornaram os idosos vítimas mortais do novo coronavírus em larga escala.

Nas entrelinhas da narrativa foi-se também constatando que as pessoas com doenças crónicas como diabetes, hipertensão arterial, obesidade e cancro, que afetam mais de metade dos adultos, têm um pior prognóstico quando contraem a Covid-19. E é duro admitir que em Portugal, e no mundo, a maior parte das pessoas são doentes e por isso tão debilitadas perante um vírus que, embora sendo muito contagioso, é pouco mortífero na população jovem e/ou saudável.

Finalmente, durante a pandemia conseguiram escapar aos filtros instalados para o controlo das chamadas fake news e teorias da conspiração, muitas vozes dos que ligam fenómenos como a destruição das florestas, as práticas de agricultura agroquímica e extensiva, a exploração intensiva de animais para consumo humano, as radiações eletromagnéticas, as emissões de carbono, a poluição química (compostos orgânicos, plásticos, metais pesados, lixo nuclear), o aquecimento global, as alterações climáticas, a diminuição da biodiversidade, em suma, as doenças do planeta, à fraca saúde das populações e ao aparecimento de pandemias.

A Covid-19 veio também mostrar que os seres humanos podem mudar em pouco tempo os seus comportamentos perante uma ameaça global. Mas, curiosamente, as pessoas manifestam muito mais receio de uma pandemia que tem uma mortalidade de cerca de 3,5% da população afetada, do que da devastação dos seus próprios ecossistemas que poderão levar à extinção do Homo Sapiens. Já foram ultrapassados os limites do equilíbrio estável em que o planeta se encontrava desde há cerca de 10 mil anos, com consequências irreversíveis e nefastas para a saúde e a sobrevivência de muitos seres vivos, onde se inclui o homem.

Era uma vez um mercado

O começo da narrativa oficial da pandemia com “Era uma vez um mercado em Wuhan…”, sustenta a teoria de que os seres humanos são vítimas da natureza selvagem e que só a medicina os pode salvar. As pessoas ganham uma nova adição: os números diários de casos, hospitalizações e mortes. Os profissionais de saúde e forças de socorro são elevados à escala de heróis. A comunicação social reforça o seu protagonismo como instrumento de combate à pandemia, os serviços de saúde demonstram a sua fulcral importância identificando e salvando os infetados, doentes e os seus contactos, os governantes assumem o seu papel de proteção das populações e da economia. Depois da sequenciação do genoma do novo coronavírus e distribuição de kits de diagnóstico em tempo recorde, começa a maior corrida mundial de sempre para a descoberta de um tratamento ou vacina, onde aparecem mais bem posicionados os estudos das vacina que apresentam menos regulamentação de segurança e eficácia e um maior mercado potencial de consumidores. As pessoas em casa seguem atentamente os episódios da série de grande audiência a que se poderia chamar confinamento assistido pelas autoridades de saúde, a mais moderna forma de proteger a saúde.

Enquanto nos primeiros cinco meses da pandemia morreram em Portugal, por Covid-19, uma média diária de 12 doentes, nunca se ultrapassando as 37 mortes num só dia, anteriormente, no alheamento da opinião pública, a média de mortes diárias era superior a 300, entre as quais 100 por doenças cardiovasculares, 70 por tumores malignos, 35 por doenças respiratórias. O redirecionamento dos serviços de saúde para a resposta à pandemia, deixou por tratar os doentes crónicos que são a maioria das pessoas em Portugal. Esta é a causa apontada como mais provável para também a mortalidade não atribuída à Covid-19 ter subido durante a pandemia, acrescentando, só nas primeiras seis semanas de desconfinamento (meses de maio e junho) mais 12 mortes por dia. A interrupção não planeada da assistência médica à população faz prever que, para além do impacto imediato, também, mais tardiamente, doenças que não foram diagnosticadas e tratadas atempadamente, como por exemplo as neoplasias e doenças cardiovasculares, ou o aumento das listas de espera para consultas e cirurgias, venham a causar um crescimento diferido na mortalidade global não Covid-19.

Na narrativa dominante, este é mais um sinal do valor fundamental de um sistema de saúde forte e da necessidade de mais investimento.

E é esta a autoestrada que se tem trilhado: a um número crescente de doentes, e de padecimentos, mais do que conhecer e atuar sobre as causas, a resposta é o aumento do investimento para combater as doenças, a extraordinária medicalização do ser humano, onde se incluem vacinas, medicamentos, próteses, cirurgias, transplantes, dispositivos, serviços de saúde e, mais recentemente, o uso generalizado de máscara, desinfeção frequente das mãos e distanciamento social.

Os dados comprovam: os portugueses estão doentes

As principais causas de morte em Portugal, que atingiram mais de 113 mil pessoas em 2018 foram: cerca de 33 mil por doenças do sistema circulatório (maioritariamente acidentes vasculares cerebrais e doenças do coração), 28 mil por tumores malignos (em primeiro lugar nas vias respiratórias), 13 mil por doenças respiratórias (das quais 5700 por pneumonia, 250 por gripe), 4200 por diabetes.

No mundo, as doenças cardiovasculares são as que mais matam, seguidas das doenças respiratórias (doença pulmonar obstrutiva crónica e pneumonias) e dos tumores malignos com origem nas vias respiratórias.

Estas doenças, na sua maioria crónicas, que antes de levarem à morte cursam com um caminho de significativo sofrimento, estão solidamente relacionadas com diversos  fatores de risco, por ordem decrescente de  importância a nível mundial (dados de 2016): tabagismo, hipertensão arterial, prematuridade e baixo peso ao nascer, consumo de álcool, diabetes e pré-diabetes, excesso de peso e obesidade, poluição do ar, colesterol elevado.

No seu conjunto, em 2017, também a nível global, os fatores de risco nutricionais foram responsáveis pela morte de cerca de 11 milhões de pessoas (22% das mortes na idade adulta).

Em geral, as pessoas acabam por adoecer e morrer em consequência da desadequada alimentação (excessos, deficiências e/ou má qualidade, substâncias tóxicas), pela fraca qualidade do ar, consumo de tabaco e outras substâncias tóxicas que inalam e pela inatividade física.

Em Portugal, há uma elevada prevalência de fatores de risco modificáveis: excesso de peso/obesidade (68%, entre as mais elevadas da Europa), colesterol elevado (55%), inatividade física (43%), hipertensão arterial (42%), tabagismo (17%), consumo de álcool (10,7 l per capita/ano, sendo que 8% das mulheres e 26% dos homens consome álcool em níveis considerados elevados ou excessivos), diabetes (10%, entre as mais elevadas da OCDE; 30% com pré-diabetes ) e uma alimentação desadequada (excesso de sal, de carnes vermelhas, de más gorduras, de açúcar, deficiência de cereais integrais, frutas e hortícolas, entre outros). A mortalidade anual atribuída à poluição do ar em Portugal foi de 28 por 100 mil habitantes (inferior à média da OCDE que é de 40, mas superior à de países como os Estados Unidos da América).

Para controlar estes fatores de risco, consomem-se, diariamente, em Portugal 25 doses/100 habitantes de medicamentos para a tensão arterial, 11 doses/100 habitantes para o colesterol, 7 doses/100 habitantes para a diabetes.

Além do mais, à atividade médica estão inerentes os riscos de iatrogenia, ou seja, a possibilidade de causar danos à saúde, sendo os mais relevantes aqueles relacionados com o uso dos milhares de medicamentos disponíveis, suas interações e reações adversas, e também o risco de infeções hospitalares. Estima-se que nos Estados Unidos da América a iatrogenia seja a  terceira causa de morte (10% das mortes) e, no mundo, a quinta causa de morte. Em Portugal, ao longo dos últimos 20 anos, a Autoridade Nacional do Medicamento recebeu um crescente número de notificações de reações adversas de medicamentos, tendo, a partir de 2018, ultrapassado as 10 mil notificações por ano, sendo cerca de dois terços consideradas graves. As reações adversas medicamentosas em internamento hospitalar entre 2004-2013 causaram mais de 10 mil óbitos. 80% das infeções adquiridas em ambiente hospitalar são resistentes aos antibióticos (pior desempenho da OCDE em 2015-2017) e as infeções hospitalares matam mais de mil pessoas por ano.

Há ainda muitos outros fatores de risco, com evidência científica que se vai acumulando, cuja exposição contribui para a morbilidade e mortalidade, tais como diversos poluentes (ar, água, solos), ruído, processamento e conservação de produtos alimentares, condições ligadas ao trabalho, radiações eletromagnéticas, aquecimento global e alterações climáticas. Também as condições socio-económicas, a escolaridade, o apoio da família e comunidade, são factores com peso na saúde das pessoas.

Para além das doenças já citadas, que afetam mais gravemente a saúde dos portugueses, acabando por poder conduzir à sua morte, há outras situações muito frequentes com impacto negativo na qualidade de vida. Em Portugal, as cinco principais causas de mal-estar a partir dos 15 anos de idade referem-se a dores na coluna vertebral (lombar e cervical), doenças da pele (mais nos jovens como acne, dermatite, psoríase), depressão, enxaquecas (mais nas mulheres) e as doenças dos órgãos dos sentidos (sobretudo a partir dos 50 anos).

Portugal está entre os países da Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população adulta: em 2016, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica e quase metade já teve uma destas perturbações durante a vida. As perturbações depressivas têm uma expressão nos registos dos doentes inscritos nos cuidados de saúde primários que ronda os 10% e as perturbações de ansiedade, os 6,5%. São consumidas em cada dia 10 doses/100 habitantes de medicamentos para a depressão (muito acima da média da OCDE).

E há muito mais doenças a afetar o ser humano, algumas com uma subida de ocorrências preocupante e que seria exaustivo enumerar.  A título de exemplo, citam-se as doenças autoimunes, as demências, a insuficiência renal ou a insuficiência cardíaca.

Apenas cerca de metade dos portugueses adultos considera o seu estado de saúde bom ou muito bom, sendo esta auto-apreciação mais frequente nos homens e no grupo etário dos 25 aos 34 anos.

Nascer e crescer utente

O uso generalizado de métodos anticoncepcionais,  os métodos de reprodução assistida, o acesso à interrupção voluntária da gravidez medicamente assistida que termina com a vida de 16 mil a 20 mil embriões/fetos em cada ano, a vigilância da gravidez com meios de diagnóstico, a utilização de medicamentos pelas grávidas, os partos distócicos (em Portugal só metade dos partos são normais, sendo um terço por cesariana e os restantes com procedimentos como fórceps ou ventosa), a utilização de potentes fármacos para indução dos partos, anestesia ou analgesia mesmo nos considerados partos normais, faz com que, mesmo ainda antes de nascer, o ser humano já tenha tido um amplo relacionamento com a medicina. Também o primeiro contacto com o  mundo exterior dos 86 mil recém-nascidos em Portugal é num hospital, e aí, no âmbito de projetos como Nascer Utente têm inscrição imediata no Registo Nacional de Utentes do SNS e atribuição de médico de família.

Em Portugal, 8,9% dos bebés nascem com baixo peso (menos de 2500kg), um fraco desempenho comparativamente com a média de 6,5% nos países da OCDE. O baixo peso ao nascer pode ter consequências negativas para a saúde no período perinatal e mais tarde na vida. Genericamente, as causas do baixo peso dos recém-nascidos estão relacionadas com fatores como consumo pela grávida de tabaco ou álcool, desnutrição, tratamento de fertilização in vitro e gravidezes gemelares, magreza ou idade mais avançada (em Portugal a idade média da grávida é de 31 anos, ligeiramente acima da média europeia) e baixo nível socioeconómico.

Em Portugal, só pouco mais de metade dos bebés (56%) têm direito a aleitamento materno exclusivo até aos três meses de vida, sendo os restantes precocemente expostos a leites artificiais; cerca de 20% das crianças sofrem de problemas de visão com erros refrativos significativos; 10 a 20% sofrem de um ou mais problemas de saúde mental, onde se inclui a perturbação de hiperatividade com défice de atenção, que leva a um consumo anual de mais de 5 milhões de doses de medicamentos para esse fim; 25% das crianças até aos 10 anos têm excesso de peso ou obesidade, que aumenta nos grupos etários dos 10 aos 17 para 37% nos rapazes e 28% nas raparigas. Aproximadamente 25% das nossas crianças sofrem de doenças crónicas onde se incluem, entre outras, as da pele e vias respiratórias (como a rinite ou asma); até aos 9 anos de idade, as doenças respiratórias causam mais de sete mil internamentos hospitalares em cada ano. Também em cada ano ocorrem 700 internamentos de crianças por cancro. São diagnosticados anualmente cerca de 1500 novos casos de diabetes tipo 1 em idade pediátrica. Cada vez mais crianças tomam diariamente medicamentos.

O plano de vacinação que começa logo no recém-nascido, inclui até aos dez anos de idade 23 doses de vacinas (24 nas raparigas).

Muitas crianças e adolescentes, para além da exposição à poluição urbana do ar, frequentam escolas onde a qualidade do ar nas salas de aulas não é cuidado (falta de ventilação e arejamentos adequados, pó de giz, detergentes e materiais de construção), nem devidamente monitorizado, apresentando níveis excessivos de dióxido de carbono e compostos orgânicos voláteis, formaldeído e de partículas inaláveis (PM10 e PM2,5), para além de micro-organismos.

Apesar da fragilidade dos seus cérebros, utilizam telemóveis, vivem e estão expostas em permanência a radiações eletromagnéticas que não estão devidamente regulamentadas. A maioria consome regularmente (três ou mais vezes por semana) produtos processados e com excesso de açúcares, como pizzas, folhados, pipocas e outros. Um terço dos jovens com 18 anos já consumiu substâncias ilícitas.

A máquina da saúde

Para assegurar uma resposta à elevada necessidade de cuidados médicos, em Portugal há 230 hospitais (mais de 300 camas por 100 mil habitantes), 55 mil médicos (o terceiro país da União Europeia com mais médicos por habitante), mais de 70 mil enfermeiros, 10 mil dentistas, 54 mil técnicos de diagnóstico e terapêutica, perto de três mil farmácias, uma rede nacional de cuidados continuados que disponibiliza 14 mil camas/lugares, fazem-se 30 milhões de consultas médicas de cuidados primários por ano, cerca de 20 milhões de consultas hospitalares, atendem-se 1,4 milhões de episódios de urgência, executam-se quase dois milhões de tomografias axiais computorizadas (TAC) por ano, consomem-se anualmente 165 milhões de embalagens de medicamentos (mais 28 milhões do que há 10 anos atrás), os cuidados de saúde custam anualmente 9,1% do PIB.

A caminho da transumanidade

Até quando esta escalada da medicalização, que temos vindo a assistir nas últimas décadas, poderá sustentar a saúde das pessoas que se deteriora num país e num planeta cada vez mais transformado pela civilização humana?

Os cientistas ambientais descrevem a saúde do planeta como a capacidade de um sistema complexo manter uma estabilidade entre limites relativamente estreitos. A saúde e sobrevivência dos humanos e de muitos outros seres vivos está ligada a este equilíbrio.

Os seres humanos partilham um património genético aparentemente estável, com uma capacidade de adaptação naturalmente limitada. A improbabilidade de ocorrerem alterações genéticas naturais para fazer face, em pouco tempo, às substanciais mudanças civilizacionais e ambientais, exige uma postura de precaução e uma investigação independente de onde se situa esse perigoso limite de adaptação a cada novo desenvolvimento.

Infelizmente a investigação científica é morosa, e não pode fazer esperar a economia; e é cara, pelo que o seu foco é muito condicionado pelas fontes de financiamento, ou seja, para onde estão dirigidos os seus potentes holofotes. No atual sistema, as perguntas vão recorrentemente na mesma direção, como combater as doenças que cada vez mais afetam os seres humanos de uma forma economicamente rentável, e o resultado é uma acentuação do estado de medicalização.

Graças aos desenvolvimentos tecno-científicos existe a possibilidade de “melhorar” o ser humano, quer geneticamente, quer por tecnologias, que o ligam, por exemplo, à inteligência artificial. O limite do aparecimento desses “transumanos” é de natureza ética, mas perante a pressão das questões sanitárias, como pandemias, ou de exaustão dos sistemas de adaptação às mudanças ambientais e civilizacionais, esses limites éticos vão sendo sucessivamente levantados. Muito em breve, todos os humanos terão um chip ou outras tecnologias no seu corpo e cérebro.

Este panorama é assustador.

Foi ultrapassado o perigoso limiar da saúde do planeta e do ser humano, que ficou dependente da medicina para a própria sobrevivência, ou seja tornou-se fortemente médicodependente e um alvo fácil de manipulação por interesses que lhe são alheios.

Perante esta  realidade, com o número de pessoas que vivem com doenças crónicas durante décadas a aumentar em todo o mundo, a definição de saúde da Organização Mundial da Saúde, “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença”, parece ficção.

Uma narrativa diferente e regenerativa

A maioria dos seres humanos, seres sociais que na luta para a sua sobrevivência e melhoria das condições de vida, residem e trabalham em complexos e antinaturais sistemas urbanísticos, de transportes, de produção agrícola, industriais, económicos, laborais, educativos, de defesa e outros, estão dependentes dos sistemas de saúde para lidar com as doenças associadas à própria civilização e à destruição dos ecossistemas, causadoras de novas e múltiplas formas de sofrimento.

Muitos destes homens e mulheres nascidos e educados na narrativa civilizacional dominante consomem muito mais do que precisam, onde se incluem rações regulares de açúcares, tabaco, álcool, drogas, medicamentos, desporto, redes sociais, televisão, telemóveis, comodidades e outros vícios legais, a que têm acesso a baixo custo e que têm em comum um apaziguador e rápido poder aditivo. Assim, nesta anestesia da consciência, vão conseguindo levar uma vida formatada, que não corresponde ao seu propósito profundo.

Existem, felizmente, narrativas diferentes e regenerativas sobre a saúde que desvelam outras formas de viver e a possibilidade de acesso à sabedoria interior inerente a todos os seres humanos, que os religam profundamente à natureza de que fazem parte integrante e lhes devolvem a autonomia para mudar o rumo.

São narrativas que promovem por todos os meios uma boa saúde física e mental, com um sistema imunitário íntegro, a melhor defesa contra as doenças no geral e contra as infeções em particular.

Olham para saúde dos humanos como um valioso indicador do equilíbrio do ecossistema e para a doença como um tardio sinal de alerta.

Nesta perspetiva, a pandemia é uma bandeira vermelha para que as sociedades tomem consciência da sua fragilidade e procurem ter saúde em vez de se conformarem a viver com as doenças, depositando uma filial confiança cega nos sistemas de saúde e intervenções medicalizadas que, no atual paradigma, serão sempre insuficientes, desiguais e economicamente centradas.

Nestas outras narrativas existe um imperativo de ser saudável, que ajuda e incentiva novos estilos de vida, para que as pessoas tomem consciência do seu corpo, reduzam os medicamentos, façam exercício, trabalhem próximo de suas casas, optem por viver fora dos grandes centros urbanos, estejam em contacto com a natureza, baixem significativamente a exposição a radiações eletromagnéticas deletérias e recusem tecnologias antes de devidamente  testadas (como a rede 5G), consumam e desperdicem menos, utilizem energias renováveis, travem a poluição e a danificação dos ecossistemas.

Há um foco na boa alimentação, nomeadamente nas frutas e hortícolas consumidos na época e na proximidade dos seus locais de produção; no consumo de frutos secos e sementes;  na redução dos produtos de origem da exploração animal que direta e indiretamente prejudicam a saúde; na melhoria da qualidade dos cereais e derivados, começando pela biodiversidade das suas sementes, mais integrais, com elevado valor nutricional, alto conteúdo em fibra e menor exposição dos humanos ao glúten; na redução do processamento e na recusa dos alimentos geneticamente modificados e com uso de agroquímicos e pesticidas prejudiciais aos seres vivos e ambiente.

Perspetivas que recuperam a riqueza e contribuições de outros pontos de vista, onde se incluem a sabedoria local e ancestral (considerada obsoleta no sistema dominante), ou as medicinas alternativas que são muito mais do que “meros placebos”.

Narrativas que promovem a ética, a saúde, a colaboração e a paz como objetivos do desenvolvimento económico e social, que reconhecem o importante lugar das ciências e tecnologias como instrumentos ao serviço do conhecimento e da compreensão dos ecossistemas (onde se inclui o homem) e que podem favorecer profundamente a maneira como os seres humanos evoluem.

Nestas narrativas, que não são novas e que estão dentro de todos e de cada um, as pessoas sabem que a maior parte das doenças pode ser evitada e tratada de forma natural e que para isso é fundamental cuidar de si e da casa comum. E sabem como viver em harmonia, fazendo parte do planeta. E que é possível uma vida ética, com sentido, saudável e sem dependências externas quando se ligam através do silêncio, oração ou meditação à sua fonte interior e inesgotável de sabedoria.