A partir do momento em que a escola se tem vindo a transformar no “trabalho infantil” do século XXI, temos cada vez mais famílias a fazer com que os seus filhos entrem nela mais tarde – aos 7 – para que tenham direito a mais um ano de infância(!). Ou seja, no século XXI a infância parece terminar aos 6! Se, dantes, a escola se caracterizava como “O” indicador mais inequívoco das crianças com direito à infância, hoje, até porque todas elas vão (felizmente!) à escola, aquilo que distingue as crianças que têm infância daquelas que não a “têm” é o brincar. O tempo e a qualidade do brincar diários que os pais reservam para os filhos.
Como as crianças têm menos tempo de infância, menos irmãos e famílias menos alargadas, menos actividade física, menos recreio, menos convívio e menos relação com o ar livre, receio que tenhamos crianças cada vez mais quietas, mais apáticas e mais caladas. Crianças que não crescem aprendendo com o corpo mas contra o corpo. Crianças que convivem com famílias muito pequenas. Que não brincam tanto como deviam. Que vivem espartilhadas em compromissos escolares e confinadas a espaços reduzidos. Que, muitas vezes, mandam muito mais nos pais do que deviam. Que, por isso, se vão transformando em “novos chefes de família”. E que são tratadas como adultos de tamanho “S”. Restam-lhe os amigos. E os jogos! Até porque (já repararam?) as lojas de brinquedos vão morrendo, aos bocadinhos. Por outras palavras, a solidão no crescimento das crianças começa a ser assustadora. Se continuarmos por aqui, e se não as cultivarmos mais para o brincar, para a palavra, para a fantasia e para as histórias – de forma a minimizarmos a relação (cada vez mais hegemónica) que elas têm com as novas tecnologias – por mais que falemos das crianças como nunca o fizemos, a infância pode estar “à beira da extinção”.
É, portanto, urgente que se deixe de entender o brincar como um actividade de lazer. Ou como uma distracção. Ou quase como um proforme que entendemos conceder às crianças sempre que falamos da infância. Brincar é desconstruir mistérios. É intuir e analisar inúmeras hipóteses. É formular problemas. É discorrer sobre eles e resolvê-los. Brincar é, depois de entrar nelas, “desmanchar” as histórias. E entendê-las naquilo que elas nos querem dizer. E reconstruí-las de forma sempre mais simples, mais esquemática e mais sábia. Brincar é recolher imagens e, ao recombiná-las, cultivar e expandir a imaginação. Brincar não serve para distrair; serve para lavrar a atenção. (Aliás, não há nada que incentive mais a atenção do que o brincar!) Brincar é aprender. Brincar é melhor que fazer trabalhos de casa. Brincar educa para a intuição e para a interpretação. Brincar “puxa pela cabeça”, pelo corpo e pela “alma”. Brincar é “trabalhar”. E é pensar!
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