Cresci numa casa onde sempre se bendisse o 25 de Abril. A coragem dos que o fizeram, o regime democrático que daí nasceu, a liberdade, a beleza literária do dia, as canções que serviram de senha, os cravos metidos nas espingardas que (quase) não dispararam, Salgueiro Maia, os capitães, o povo nas ruas. Uma casa, enfim, onde sempre se ouviu Zeca Afonso, mas também, pontualmente e sem contradição, que “também nem tudo era mau antes do 25 de Abril”. Cresci a achar esta ideia razoável, equilibrada, sensata, “normal” – até ser um jovem a estudar longe de casa e descobrir que, afinal, quem se atrevesse a achar que, alguma vez, tivesse havido alguma coisa boa de Vilar Formoso para cá anterior a esse “dia inicial inteiro e limpo”, era fascista. Fim de discussão.

Mais anos passaram e aprendi mais sobre o 25 de Abril e o que veio depois, a admirar muita gente e muitos nomes que o tinham feito e de que não tinha ouvido falar em casa, mas também a gostar menos, cada vez menos, de simplismos maniqueístas. O tempo trouxe-nos ao dia de hoje, aos 50 anos dessa madrugada que Sophia e tantos mais tanto esperavam (até nós, os que ainda não tinham nascido), e tenho poucas dúvidas de que os que chamaram fascistas aos que apenas diziam “também nem tudo era mau antes”, contribuíram muito para fazer dos moderados cada vez mais revoltados e cada vez menos moderados. Quanto mais nos afastávamos da data, mais ela parecia ter donos, os únicos autorizados a falar dele, os únicos autorizados a descer a Avenida, os únicos autorizados a usar cravo na lapela, os que tentaram à força expulsar quem não queriam para depois poderem apontar o dedo e dizer: “estão a ver? Eles não estão aqui.”

Sucede que o 25 de Abril não tem donos e toda a beleza do dia residir nisso. Tem, quando muito, uns porteiros de discoteca que acham que podem seleccionar a entrada, não percebendo que, nesta festa, se pode passar por trás, pelo lado, por cima, por baixo, saltar o muro, até ir para outro lado fazê-la onde se quiser. Geralmente, são os mesmos que nunca quiseram que houvesse eleições e um regime pluripartidário em Portugal e que, por isso, maldizem o 25 de Novembro, levando hoje atrás um coro cada vez maior de gente que não conseguiria escrever três linhas sobre o que aconteceu nesse dia nem que se esforçassem muito – mas quem precisa de conhecimento quando tem uma opinião?

50 anos depois, vivemos num país onde comentadores políticos de canais de notícias transitam directamente para candidatos partidários e ex-primeiros-ministros viajam directamente da residência oficial para um lugar de comentadores nos tablóides – mas muita gente só parece indignar-se com os primeiros. Um país onde se distinguem terroristas bons de terroristas maus. Um país onde um artista, aproveitando todas as oportunidades de comunicação, vai depositar uma caixa de comprimidos a dizer “Liberdade” em cima da campa do ditador morto e enterrado, não percebendo que, com isso, só faz um favor aos que gostam de recordar que esse ditador, ao contrário dos “outros”, não repousa em paz num mausoléu, mas em campa rasa, igual à do anónimo do lado – com toda a suposta virtude que se queira ver nisso. Um país onde uma Câmara autorizar e colaborar com centenas de eventos comemorativos do 25 de Abril, mas não poder ceder o palco e as tendas que um só se lembrou de solicitar a 9 de Abril por já estarem atribuídos a outros, se transforma em feeds inundados de apelos à revolta porque “o Moedas proibiu as comemorações do 25 de Abril!”. Um país onde muita gente acha estranho um liberal festejar o 25 de Abril, como se, no 25 de Abril, não se comemorasse a coisa mais bonita do mundo para o liberalismo: a liberdade. Liberdade política, liberdade económica, liberdade social, liberdade-de-todas-as-formas, que é a única forma que existe de ser livre.

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Porque a liberdade vem com isto: o maravilhoso incómodo de ter de aturar as opiniões dos outros.

Festejemos, portanto, todas as contradições, todas as incompreensões, toda a possibilidade de todos dizerem o maior disparate possível. Festejemos podermos mudar de opinião, e de trabalho, e até de trincheira. Festejamos o Bugalho, e o Costa – enquanto houver lugar para todos, está tudo certo. Festejemos os estudos que saíram por estes dias e que dizem que 87% dos portugueses preferem a democracia a “qualquer outro regime”, e que entre os jovens esse número sobe para 96%, e que estamos hoje mais satisfeitos com a democracia do que há 10 ou 20 anos, apesar dos seus “muitos defeitos”.

Festejemos, portanto, também os defeitos. E as mudanças de partido da Joana Amaral Dias. E a irritação do Rui Moreira. Uma democracia que, bem ou mal, já sobreviveu a três intervenções do FMI, um Sócrates, ministros patrocinados por bancos e muitos erros da justiça. Festejemos poder dizer bem do 25 de Abril e até o poder dizer mal do 25 de Abril, porque nada diz tão bem dele como isso. Festejemos, acima de tudo, os duzentos e tantos capitães que, há 50 anos, tiveram a coragem de liderar uma conspiração e sair, naquela madrugada, à frente dos seus homens, sem saber se algum dia voltariam. Se não seriam mortos, feridos, presos, torturados, deportados, se voltariam a ver a família, a ter um trabalho. Num país onde tantos gostam tanto de falar, mas tão poucos se chegam à frente, nunca lhes poderemos agradecer de mais.

Num mundo onde os EUA podem entrar em guerra civil, a França virar fascista, a Ucrânia perder a guerra, a Rússia ameaçar toda a gente de levar com uma bomba, o Médio Oriente desaparecer numa explosão, cresce a extrema-direita na Alemanha, o antissemitismo nas universidades americanas, onde enfim quase tudo parece à beira da loucura – a liberdade faz 50 anos em Portugal. E, apesar de todas as notícias, ainda não se está a passar por aqui. Ainda.