Os últimos dias têm servido para compreendermos em que estado se encontra a sociedade portuguesa e a necessidade de refletirmos qual o caminho de futuro pretendemos percorrer. Os perpetradores iniciam as suas atitudes de vitimização, transformando os verdadeiros moderados em radicais e sacudindo a sua responsabilidade de representação política do capote. E aqueles que incorrem nas lutas pela dignidade humana são vistos como fastidiosos, ideológicos ou inimigos das liberdades.

Vamos por partes. André Ventura, líder do Chega, acusou Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República (PR), de traição à pátria. Porquê? Pelo facto de Marcelo ter emitido uma opinião – da qual, como em todas, podemos concordar ou discordar – sobre as ex-colónias e a restituição (sob forma a decidir) que porventura merecerão de Portugal. Ventura viu estas declarações como um crime de deslealdade com o país e tentou que o PR sofresse as consequências penais deste alegado crime. De maneira esperada, o Chega avançou isolado neste ousado (ou abusado) empreendimento, não havendo espaço no Parlamento para confirmação da sua razão. Subsequentemente, Ventura, num debate sobre o novo aeroporto de Lisboa, comparando o povo turco ao português, afirmou que o primeiro “não é conhecido por ser o mais trabalhador”, frase que despertou de modo imediato contestação por parte de vários partidos e, em contrapartida, uma defesa de José Aguiar-Branco, Presidente da Assembleia da República, de toda a liberdade de expressão dos deputados, admitindo ser possível a qualquer um daqueles representantes proferir expressões sobre a indignidade, a preguiça ou a burrice de qualquer grupo étnico.

Ora, perante o sucedido, e sem analisar profundamente a hipocrisia que é o líder do Chega ficar indignado por não poder emitir juízos de valor culturais após ter acusado o PR de traição devido apenas a uma opinião que este teve, tentemos analisar e debater um pouco os limites da liberdade de expressão. Até onde pode ela chegar? O que pode abarcar? Existem restrições que devemos impor a este direito constitucional?

Para tentar responder a estas questões irei munir-me da minha formação de base, a Sociologia. Quem estuda conhecimentos produzidos nesta área científica percebe que um dos pilares que nos leva a compreender a configuração atual dos sistemas e relações sociais é concluirmos que tudo o que diz respeito às sociedades é uma construção humana. Nada na forma como nos relacionamos ou arquitetamos a nossa maneira de viver advém do vácuo, sendo antes um fruto de decisões culturais. Por isso mesmo, não era natural que as mulheres tivessem menos direitos do que os homens; ou que existisse uma única orientação sexual no ser humano; ou que a escravatura fosse razoável devido a uma suposta superioridade de uma “raça” branca. Nada disto é ou foi natural. Nunca foi. Simbolizou, sim, uma visão do mundo fabricada socialmente que, pela conveniência do privilégio que atribuía a algumas classes da sociedade, foi reproduzida ao longo do tempo.

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Existe um ponto positivo nas desigualdades artificiais: é que se elas são elaboradas pelas mãos e pensamentos dos sujeitos humanos, não sendo uma vontade divina nem um determinismo da natureza, quer dizer que esses mesmos sujeitos podem desconstruí-las, conduzindo a um sistema social mais justo, igualitário, tolerante, pacífico e livre. A verdadeira liberdade advém, precisamente, de todos terem a oportunidade de opinarem sobre qualquer tema – desde que não alienando qualquer individualidade.

Irei, agora, tentar rebater os principais argumentos que já li e ouvi sobre a temática da liberdade de expressão sempre que a mesma surge em divergências no espaço público ou privado.

1) A liberdade de expressão deve ser total. Ninguém tem o direito de limitar a expressão de ninguém, por mais insensata que seja.
Esta posição, a meu ver, padece de pelo menos dois pressupostos baseados na ilusão – ou, pelo menos, em crenças pouco pragmáticas. Primeiramente, absolutiza a liberdade de expressão, como se fosse o formato de liberdade que merece uma abertura total e pode ser usada sem balizas discursivas. Perante esta visão, eu pergunto-me: mas por que razão é que esta deve ser a única liberdade à qual se permite tudo? Porque não tornar absolutas as outras liberdades? Existe alguma razão em específico que conduza a uma limitação de qualquer ação humana exceto aquelas que são relativas àquilo que dizemos ou escrevemos? Não vejo nenhum motivo lógico aparente para acreditarmos neste desfasamento.

Se admitirmos que possa haver quem avalie um povo, por exemplo, pela sua putativa ignorância, então, abrimos a possibilidade de que essas pessoas recebam como resposta um outro insulto. E se concedemos esta liberdade de expressão uma vez concedemo-la duas vezes, e três, e quatro, e cinco, infinitas vezes. O que desembocará em debates sem quaisquer conteúdos e que se poderão limitar a calúnias várias das partes envolvidas. É este o debate que queremos, pejado de palavras ofensivas e sem propostas que possam permitir o desenvolvimento e o progresso? É sequer prático que estas discussões aconteçam nestes moldes? Parece-me que não.

Sei bem, novamente a partir do repertório sociológico, que existe sempre uma dose de arbitrariedade nas escolhas humanas. Porque podemos fazer uma dada coisa e não outra é sempre uma decisão, em parte justificada pela razão, mas por outro lado motivada pelo acaso. No entanto, chegarmos a uma sociedade respeitadora da igualdade entre todos significa que consensualizamos ser esse o modo mais harmonioso de coabitarmos. O resultado desse consenso, e pensando, neste caso, no povo português, foi a elaboração e legitimação de uma Constituição que serve como guia e referência a todas as pessoas que vivem no território português. A Constituição é um documento jurídico e, simultaneamente, uma produção de cidadania. Num Estado-nação, é através deste conjunto de normas que são expressas as vontades dos seus cidadãos, abarcando não somente os interesses da maioria, mas também os interesses de minorias em viverem de forma digna. Violar a Constituição é ferir a vontade de um povo. E é nesta mesma Constituição que é dito que nem a liberdade de expressão nem o direito à não discriminação são direitos absolutos, devendo, antes, articular-se. É por essa Constituição que qualquer um de nós se deve reger – designadamente, e sobretudo, quem nos representa.

Todavia, os defensores mais bondosos do argumento do ponto 1) geralmente também acreditam fortemente num dos preceitos mais duvidosos da esfera pública habermasiana. Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão, advogava que a esfera pública é o lugar onde os argumentos seriam apresentados de forma justa e os interlocutores poderiam escolher o melhor argumento. Ou seja, o argumento escolhido seria o mais racional, aquele cuja lógica e validade seriam as maiores. Contudo, observemos de forma breve a história que a humanidade já percorreu e o perfil de quem ainda hoje acredita existirem culturas superiores ou inferiores a outras. A ciência produz os melhores argumentos, pois estes são erigidos sob a alçada do rigor e do escrutínio; e as sociedades que valorizam a ciência validam os seus resultados através de leis e na política. Logo, podemos mesmo acreditar que, ante tantos estudos e provas de que o conceito de raça é aplicado erradamente em seres humanos e de que o etnocentrismo não tem validade científica, os defensores destas posições discriminatórias irão redimir-se apenas pela racionalidade daquelas evidências? É demasiado ingénuo crer que tais pessoas mudem de perspetiva, agindo estas apenas de má-fé na crença de que elas mesmas são dotadas de um condão de superioridade. Sem fronteiras mínimas a estes discursos errados e, acima de tudo, preconceituosos, não conseguiremos travar bolsas de ódio e injustiça que, infelizmente, ainda subsistem na contemporaneidade.

2) A referência à Constituição não impede que eu possa expressar-me da forma que me apetecer.
De certo modo esta questão já foi acima respondida. Se, como cidadãos moderados e sensatos, honrarmos e valorizarmos a nossa Constituição, então, devemos, de facto, encontrar nela plasmado e defender o artigo 37.º – Liberdade de expressão e informação – e os seus pontos 1 e 2:

“1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.”

Este foi o direito que Aguiar-Branco quis respeitar, ampliando-o, a meu ver, de maneira exagerada. Porque a Constituição é muito mais do que somente o artigo 37.º, implicando articulação de igualdades e liberdades. Aliás, antes dele, surgem artigos como o 13.º – Princípio da igualdade – em que se afirma, no ponto 2., que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Ora, retomando ao caso de Ventura e das afirmações sobre o povo turco, para além de os apelidar de preguiçosos ser ofensivo, é óbvio que se está a contribuir para gerar uma representação coletiva pejorativa acerca de um grupo cultural. Se uma dada empresa ou instituição quiser contratar ou convocar um novo trabalhador, e tiver como opção uma pessoa turca e outra de uma nacionalidade alegadamente considerada “mais trabalhadora”, poderá muito bem optar pela segunda, aplicando uma generalização apressada à primeira derivada de uma característica inata, igualmente imputada incorretamente. O artigo 13.º fica, assim, violado, indignificando a individualidade de uma pessoa com base em estereótipos acerca da sua cultura.

E é claro que a empresa, em repetidas situações deste tipo, irá sempre afirmar que escolheu o “melhor candidato”. A discriminação é muito difícil de provar quando existem mecanismos e lógicas de poder que contribuem para a sua ocultação, mas muito fácil de aplicar sobre alguém numa posição social inferior. Por isso, ou praticamos um combate preventivo e criamos leis que impeçam alguém de não poder trabalhar ou de ser desfavorecido numa oportunidade devido a um preconceito étnico, ou não criamos essas leis e aceitamos que as empresas escolhem sempre “os melhores” que, por acaso, nunca serão aqueles sobre os quais têm algum estereótipo.

3) Fala-se  muito de direitos (das minorias), mas ninguém fala dos (seus) deveres.
Este é um argumento que tem um quê de whataboutism, visto que ninguém no seu perfeito juízo, debatendo direitos, não é capaz de discutir também deveres. No entanto, quem defende esta posição também se esquece que, na verdade, direitos e deveres são duas faces da mesma moeda. Da mesma forma que, como defendem Stephen Stoer, António Magalhães e David Rodrigues na sua obra Os lugares da exclusão social: Um dispositivo de diferenciação pedagógica (2004), inclusão e exclusão se conjugam, pois quando uma pessoa diz que faz parte de determinados grupos está automaticamente excluído de outros (por exemplo, quem se encontra num partido político não pertence a outras forças partidárias em simultâneo), também ao falarmos de direitos estamos, necessariamente, a falar de deveres.

Repare-se, eu só tenho direito a uma cidade limpa se as outras pessoas cumprirem com os seus deveres de não a poluírem, e vice-versa; do mesmo modo que eu só terei um dia direito a uma reforma de trabalho se cumprir com o dever de pagar os meus impostos, permitindo a outras pessoas as suas reformas. O usufruto de um direito depende da efetivação dos deveres. Isto é viver numa democracia, num Estado de direito e num Estado de solidariedade social, onde para uns receberem outros precisam de dar, e para estes darem precisam também de receber. E, pasmem-se, ainda é o sistema que melhor funciona – nas palavras de Churchill, a democracia ainda é “o pior dos regimes, à excepção de todos os outros”.

4) Mas o que André Ventura disse pode ser comprovado.
Curioso aqueles que não abandonam o etnocentrismo pretenderem, agora, voltar-se para a ciência. Mas, claro, venham eles e venha ela. No século XX, o filósofo Karl Popper propôs o conceito de falsificabilidade das teorias científicas. Segundo o autor, uma dada teoria, para sair da zona da conspiração e passar a ser científica, precisa de se sujeitar a um teste de falsificação. Se se provar verdadeira, deve ser aceite; mas caso seja provada como falsa, deve ser alterada ou mesmo abandonada.

Destarte, o que Ventura disse pode, sim, ser comprovado. Ou melhor… pode ser falsificado, em ambos os sentidos. Por um lado, é uma afirmação passível de ser avaliada sob o ponto de vista científico, bastando, para tal, comparar as horas de trabalho médias dos cidadãos turcos com outros povos, nomeadamente os portugueses. Por outro lado, como será fácil de demonstrar, Ventura proferiu uma frase caluniosa. Os dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), da qual tanto a Turquia como Portugal fazem parte, e que o Jornal de Notícias consultou e partilhou, “mostram que os trabalhadores da Turquia surgem no 13.º lugar da lista dos 38 países da OCDE que trabalham mais horas anuais: 1732 horas por trabalhador (número de 2021). Além de figurar na primeira metade da lista que mais horas trabalha, a Turquia surge antes de Portugal, que, no ranking encabeçado pela Colômbia (2405 horas), aparece sete lugares depois, na 20.ª posição, com 1635 horas anuais (número de 2022).”

Assim, seguindo a proposta popperiana de falsificação das teorias, esta afirmação de Ventura não pode ser considerada comprovada cientificamente, sendo, portanto, falsa, contribuindo exclusivamente para a desinformação e a hostilidade contra o povo turco (podendo minar, inclusive, as relações diplomáticas entre os dois países, algo que, como apontou Rui Tavares, porta-voz do Livre, pode, isto sim, ser percecionado como um prejuízo para a pátria).

Uma conclusão…

A postura tomada por Aguiar-Branco parece ser de uma alegada neutralidade; porém, a neutralidade é também uma escolha, e o silêncio, quando o assunto em causa é a defesa dos direitos humanos, não deixa de ser uma compactuação tácita com as ofensas do agressor. A liberdade de expressão vale tanto como os outros direitos, liberdades e garantias da Constituição, mas sem fronteiras que a orientem e a responsabilizem não vale nada, visto que do outro lado existe o extremo da anarquia, onde ninguém se irá respeitar. As democracias não se autorregulam – daí necessitarem de Constituições, poderes separados e tribunais para, legitimamente, reporem as injustiças que diariamente vão acontecendo na nossa convivência comum. Portanto, é necessário praticarmos uma auto e heterovigilância dos nossos comportamentos e discursos, não despótica, mas antes saudável, sob pena de regressarmos a um tempo onde uma grande porção da população nada poderia dizer sobre os seus próprios destinos.

Aguiar-Branco, talvez num receio de ser um novo Augusto Santos Silva, que, com as suas repreensões em excesso, acabou por promover mais o Chega e ser visto como um censor, não quer interpelar nenhum deputado, mas olvida que é a 2.ª figura do Estado e quem tem o poder de pelo menos chamar a atenção quando o Parlamento não enobrece o povo que está a representar. Deveria, por isso mesmo, retratar-se, assegurando que está do lado dos que pugnam por uma sociedade que não regresse ao mundo das trevas.

No final das contas, deixou de discutir-se as implicações da próxima construção aeroportuária, obra adiada há dezenas de anos e condenada a, no máximo, anúncios políticos variados, sem concretização prática. Acontece, contudo, que debater os limites da liberdade de expressão e as consequências dos discursos discriminatórios não é menos importante do que a edificação de uma grande obra pública. Porque, em último caso, se não acertarmos definitivamente as bases da igualdade e do respeito humanos, estaremos a propor serviços públicos que sempre deixarão de fora alguma fração da população, transformando-os em privilégios ao invés de garantias e direitos.