Neste Dia Internacional da Mulher gostaria de vos convidar a uma reflexão: devem as políticas de asilo em Portugal contemplar programas e respostas dirigidos às necessidades específicas das mulheres requerentes de asilo e refugiadas?

Segundo o Relatório das Nações Unidas sobre Migração Internacional, 52% da população migrante que veio para a Europa em 2017 eram mulheres. Juntamente com as crianças, as mulheres e as meninas são o segundo grupo mais exposto a todos os tipos de abuso, como sendo o tráfico, o casamento forçado e a exploração sexual.

Apesar da Convenção de Genebra de 1951, tal como outras leis e convenções internacionais de direitos humanos posteriores, não ter contemplado os interesses específicos da população feminina, a ACNUR veio, na última década, sustentar a necessidade de uma política de proteção direcionada às mulheres refugiadas, considerando as mulheres e meninas como um dos grupos mais vulneráveis, com problemas e necessidades particulares de proteção e de assistência. Ao fugirem dos seus países de origem em busca de segurança, as mulheres e raparigas acabam por enfrentar vários tipos de violência, quer no seu país de origem, quer no seu percurso até à Europa, ou mesmo já neste continente.

Muito embora alguns Estados-membros da UE tenham as suas próprias políticas de acolhimento e proteção especificamente direcionadas para as mulheres, este não deixa de ser um tema igualmente abordado no Parlamento Europeu. Em 2016, o relatório preparado pela eurodeputada britânica Mary Honeyball (S&D) sublinha a necessidade de adotar medidas de género como parte das reformas mais amplas das políticas de asilo e migração da União Europeia. A Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Género do Parlamento Europeu defende que “as formas de violência e discriminação baseadas no género devem ser motivo válido para requerer asilo na UE”. Urge, por isso, que os Estados-membros adotem diretrizes europeias de género que sejam vinculativas e comuns a todos os Estados-membros.

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Os únicos países da Europa que adotaram uma regulamentação específica sobre esta matéria do asilo às questões de género foram a Suécia e o Reino Unido, à data membro da UE; deste modo, a integração de uma perspetiva de género nas políticas de asilo é ainda muito reduzida e pouco valorizada. No caso português, a política de asilo ainda não tem na sua redação espelhadas as especificidades das questões relacionadas com o género. Em 23 de novembro de 2020 foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2020, que estabelece um sistema único de acolhimento e integração de requerentes e beneficiários de proteção internacional em Portugal. Esta Resolução procura responder à tendência crescente de mobilidade internacional da última década, em que se registou um crescimento exponencial do número de pedidos de asilo em Portugal, afirmando a necessidade de se encontrarem formas expeditas e inovadoras de resposta, preferencialmente descentralizadas no território. Considero que este deve ser um tempo em que o debate sobre as questões das mulheres refugiadas não deve esmorecer. No entanto, não nos podemos alhear da heterogeneidade que caracteriza a mulher refugiada. Ser-se mulher requerente de asilo ou refugiada não é uma condição homogénea, para ela conflui a heterogeneidade de uma série de fatores, tais como: o país de origem, a cultura, o passado político, a idade, a classe social, a religião, a situação familiar, as competências profissionais, a duração da estadia e o estatuto jurídico.

Em Portugal, as requerentes de asilo espontâneas do género feminino representaram, no ano de 2020, cerca um quinto do total de pedidos, ou seja, 20%.

E que problemas enfrentam as mulheres? Estou em crer que enfrentam inúmeras e específicas dificuldades.

As mulheres deparam-se com dificuldades não só em relação a fugirem do país de origem em busca de proteção internacional, mas também ao longo do trajeto e entrada no país de acolhimento. As rotas da imigração são muito violentas e para uma mulher mais ainda. Por outro lado, são as mulheres as principais cuidadoras dos seus filhos nos países de origem; ora, a saída implica uma decisão que põe também os seus filhos numa situação de vulnerabilidade ao longo do percurso que irão enfrentar até à Europa. Em suma, ou se sujeitam às “violências” da vida nos seus países de origem ou sujeitam os seus filhos à dura trajetória das rotas de imigração, sendo que a alternativa é partirem e abandonarem os seus filhos. Estou em crer que, em qualquer das decisões, a violência da opção é derradeiramente cruel e dilacerante para a mulher.

Uma outra questão é o próprio processo no âmbito da diretiva do procedimento: como nos outros países da Europa, também, em Portugal é de extrema importância a prova e a credibilidade do depoimento dos requerentes de asilo. Se a barreira linguística e cultural é incontornável, ou mesmo condicionadora da comunicação, muitas vezes, a prova requerida pelas autoridades consiste numa evidência física (marca de violência ou tortura). Ora, este tipo de prova é particularmente difícil para as mulheres vítimas de violência sexual e, igualmente, pela vergonha e penosidade em falarem sobre o assunto ou submeterem-se a exames médicos. Mais uma vez, as mulheres estão numa situação de desvantagem e de forte vulnerabilidade.

Se para a atribuição do estatuto de refugiado o processo de instrução e concessão pode ser mais violento para as mulheres, ou mesmo desencorajante, também na eventualidade de verem o seu pedido aceite e concedido, a integração na sociedade é mais desafiante. Aqui, também a constituição do agregado pode ser um fator importante. Casais podem constituir-se como suporte, mulheres sozinhas ou com filhos menores a cargo estão em desvantagem: a prova que enfrentam é bem mais dura.

À mulher refugiada acrescem as já bem conhecidas dificuldades das mulheres das sociedades ocidentais: gerir uma vida profissional, uma vida doméstica e conciliar horários escolares com exigências profissionais. Estas mulheres não têm, na sua maioria, uma comunidade de suporte, trazendo com elas histórias de vida violentas e, na sua maioria, culturalmente a mulher não tem uma emancipação que lhe permita ter uma carreira profissional. São modelos culturais e educacionais distintos dos ocidentais.

Para podermos procurar entender o quão pode ser difícil o processo, imagino-me a ser obrigada a viver num país árabe, em que me via impedida de trabalhar, de estudar e que teria de me vestir e comportar-me com normas de conduta social que me são completamente desconhecidas e contra-natura. Seria uma violência. Pois para muitas destas mulheres, o mundo ocidental pode ser um mundo de descoberta e de experimentação de uma liberdade desconhecida, mas são necessários programas de apoio para que possam gradualmente assumir um novo papel na sociedade. Muitas delas nunca exerceram atividade profissional, tendo sido educadas apenas para cuidar do agregado familiar e do trabalho doméstico: esse é único papel social que a esmagadora maioria das mulheres refugiadas conhece. Frequentemente, enfrentam uma dupla discriminação: dentro das suas próprias comunidades, em razão de códigos culturais, e por estereótipos e obstáculos institucionais nos países de acolhimento.

Pelas razões apresentadas anteriormente, culturalmente, o processo de integração é bem mais difícil para a mulher. Começamos logo pela questão da importância da comunicação e da língua, de ter em conta as necessidades específicas dos refugiados e o contexto cultural de referência, bem como garantir uma mediação cultural e linguística. Nos casos em que é possível uma inscrição num curso de português, se são mulheres com filhos, a conciliação torna tudo mais difícil.

A emancipação da mulher no mundo ocidental pode trazer um encantamento inicial à mulher refugiada, mas não nos podemos esquecer que, culturalmente e educacionalmente, as sucessivas gerações das mulheres ocidentais têm acompanhado gradualmente este processo de emancipação. Este percurso é completamente estranho à maioria das mulheres refugiadas, representando um autêntico salto para um mundo desconhecido, podendo ficar ambivalentes entre uma identidade passada e a construção de uma nova identidade no país de acolhimento.

Acresce à situação acima descrita, o facto dos apoios sociais e económicos serem insuficientes. Também as políticas de acolhimento são essencialmente paliativas e assistencialistas. Os programas de acolhimento em Portugal ainda têm um longo caminho a percorrer para se tornarem mais pró-ativos, participativos e modernizados, aliando os benefícios da era digital à integração das mulheres refugiadas nas nossas sociedades.

Seria impossível que as políticas públicas pudessem responder a todas as especificidades dos fenómenos sociais e, neste caso, das mulheres refugiadas, por isso, na minha perspetiva, o primeiro passo é o do conhecimento da língua, algo que deveria ser imperativo. Essa obrigatoriedade vincularia o Estado na promoção e disponibilização de mais cursos de aprendizagem de português.

As políticas sociais nunca conseguirão ter um papel de correção das desigualdades. As políticas fazem parte da solução, mas não são a única estratégia. Mas devem existir programas específicos para as mulheres: grupos de apoio extensíveis aos refugiados do sexo masculino, acesso a ajuda psicológica específica e aos direitos sexuais e reprodutivos e que se realizem ações de formação sensíveis às questões de género destinadas a todos os que intervêm no processo de asilo, como os agentes da autoridade e os funcionários que se ocupam dos dossiês da imigração.

Às mulheres refugiadas nos países de acolhimento deve ser proporcionado um espaço de escolha, em que haja uma maior aproximação das entidades e do Estado a estas mulheres, por forma a promover políticas de empoderamento num processo que se pretende dinâmico (pessoal, económico, educacional, político e de promoção da saúde e bem-estar). A integração social é um processo de impulso para a emancipação e não pode ser um processo de manutenção de dependência do Estado Social.

Mulher é mulher em qualquer parte do mundo, mas a mulher refugiada vivencia uma dupla marginalização: como mulher e como refugiada.