A última semana foi particularmente profícua em chamadas de atenção para a Saúde em Portugal. Começou com o artigo de Clara Ferreira Alves que, com a habitual contundente elegância da sua pluma caprichosa, no Expresso de 23-10-2021, aponta ineludíveis limitações do SNS citando, a propósito, o IPO, situação que Fernando Leal da Costa explanou no Observador, evidenciando quão efectivas e penosas são as consequências de “o drama do IPO de Lisboa”.

Apesar de mais impressiva pela natureza institucional da sua dedicação ao cancro, importa dizer que “este drama” é o mesmo de todas as unidades do SNS em Portugal, dolorosamente vivido por todos que têm necessidade de a elas recorrer.

Porque a dimensão do problema é global e nem tudo são rosas na Saúde no mundo desenvolvido, julgo pertinente um brevíssimo parêntesis de chamada de atenção para a experiência relatada, no mesmo espaço, por Clara Ferreira Alves a propósito de um episódio de urgência, por si vivido, num hospital de referência em Londres.

Seguiram-se as intervenções do Bastonário da Ordem dos Médicos na Convenção Nacional da Saúde e na Comissão Parlamentar da Saúde que, com a lúcida e pragmática visão de falar do que sabe, disse que “o SNS não está adaptado à realidade atual”, porque “faltam instalações, faltam médicos, faltam jovens médicos, sobejam doentes crónicos e críticos nas urgências”.

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Terminámos a semana com as diversas e bem ilustrativas intervenções na discussão do Orçamento do Estado, com os órgãos de decisão política a concluírem que a culpa é dos médicos que se deixam encantar pelo canto dos que enriquecem à custa da escandalosa exploração do negócio da doença.

Não é verdade!

Mas é assim que, sem pudores, se desvirtua a verdade ao mesmo tempo que se alijam responsabilidades.

É inquestionável que o SNS consubstanciou o sucesso da democratização do nosso País. Com a definição de patamares e âmbitos de intervenção diferenciados, foram concretizadas políticas assistenciais que, desde a criação de centros de saúde às carreiras médicas, criaram um Serviço Nacional de Saúde capaz de dar a todos os portugueses, independentemente da sua condição social ou de residência, cabal resposta aos seus problemas de saúde.

As virtudes do SNS afirmaram-se, definitivamente, quando na passada década de 90 o sucesso interno foi elevado a um dos mais elevados patamares qualitativos na Europa.

Todavia, logo no início da década seguinte, alguns dos que ocupávamos lugares de responsabilidade no SNS, começámos a chamar a atenção para o facto de o SNS, sendo “tendencialmente gratuito”, nos moldes em que estava a ser gerido, seria “seguramente insustentável” e cada vez mais empobrecido.

A realidade mostra que a eficiência dos cuidados de saúde no nosso País é dramaticamente insuficiente e a comunicação social tem feito eco da delicadeza da situação, de que Setúbal e Braga não são mais que meros exemplos, de avançado grau de fusão em que se encontra o iceberg em que se transformou o SNS.

Quererá o Estado, Governo e AR, “recuperar a saúde, já”, lema da Convenção Nacional da Saúde de há dias?

Recuperar não é apenas apregoar, e “medidas” são “reformas” e nunca do tipo que, na muita antiga tradição, “matam o mensageiro”, sobretudo quando muitos são os avisos de que “más estratégias caminham inexoravelmente para o massacre”.

É indesmentível que a qualidade da resposta clínica do SNS a consultas, à urgência, internamentos, cirurgias e tratamentos em ambulatório é, na generalidade, insuficiente.

Porquê então toda esta turbulência discursiva que atinge laivos de inconsequente racionalidade?

Porque em toda esta discussão tem faltado, em minha opinião, o cuidado de trazer, claramente e sem tibiezas, para o centro da discussão domínios tão distintos quanto indissociáveis a essa recuperação que, equacionados de forma serena, sólida, sem limites impostos por barreiras ideológicas e em profundidade, possa vir a conseguir a tão reclamada, efectiva e global, recuperação da saúde em Portugal.

Basicamente, são três os pontos centrais nesta matéria: recursos humanos, equipamento e manutenção e, com não menor importância, logísticas institucionais, de que as arquitectónicas não serão de menor relevância.

Recursos Humanos

A limitação da resposta começa pela manifesta insuficiência de recrutamento de enfermeiros e de médicos para o SNS em Portugal. Porquê?

Fácil de perceber a propósito dos Enfermeiros, face à sua manifesta insuficiência em Portugal. Segundo dados da Comissão Europeia, 8,4 é a média de enfermeiros por mil habitantes na Europa, enquanto em Portugal esse número é de 6,3, situação que “não tenderá a melhorar porque o número de enfermeiros está em queda desde 2009”.

Quanto aos médicos, a situação é mais complexa. Na OCDE a 34, a média do número de médicos por mil habitantes é de 3,2. Em Portugal, de acordo com as inscrições na Ordem, esse valor é de 4,26 que, atendendo ao desconhecimento de algumas situações concretas, poderá passar para 3,27 médicos por mil habitantes.

De qualquer modo são números que, superiores aos da média dos países da OCDE, não permitem dizer que haja falta de médicos em Portugal. Então, porque a realidade objectiva dos factos se opõe aos números que dizem não haver falta de médicos em Portugal? Será que os decisores políticos já olharam para as, tantas vezes repetidas, desadequadas condições de trabalho impostas no SNS? É que, profundamente, excessivas, em volume e tempo de trabalho, condicionam elevados níveis de saturação e profunda desmotivação potencializadas pelo não reconhecimento do mérito e qualificação remuneratória.

Será que os da saúde não são “trabalhadores sob condições de trabalho árduo e pesadíssimo a cuja exploração importa pôr termo”?

Olhando apenas para o problema médico referir-me-ei ao dado elementar que esteve na base do desenvolvimento qualitativo da SNS: as carreiras médicas.

As carreiras médicas, assentes em duros e selectivos Concursos de Provas Públicas, eram conquistadas e percorridas com base na qualidade do exercício e não no da passividade acomodatícia da passagem do tempo de serviço.

Claro que essa saudável competição, incentivadora da formação e da eficiência da intervenção, trazia o reconhecimento do mérito individual, permitia a progressão na carreira e tinha alguma compensação salarial.

Carreiras que, assentes no mérito, são de importância vital para a recuperação do SNS, condição bem conhecida por repetidamente dita pelo Bastonário em tempos e ambientes próprios para ser ouvido por quem tem legitimidade de querer saber para decidir.

A resposta, porém, foi a de congelar as carreiras médicas e, assim, acabarem os concursos sérios, com provas públicas abertas, para progressão nas Carreiras. Porquê?

Por múltiplos motivos onde não serão menos relevantes as reducionistas e simplistas razões orçamentais de uns e acomodatícias de outros. Factual foi a solução migratória dos mais competentes e insatisfeitos.

Equipamento e manutenção

O desenvolvimento em inovação trouxe um extraordinário armamentarium que, a par de uma poderosíssima capacidade diagnóstica e de minimização da invasão, permite enormes avanços em tratamento, sobrevidas e qualidade de vida. Estes enormes benefícios, impensáveis há alguns anos, implicam não menores custos.

Talvez a grande maioria das pessoas não saiba que, ao contrário da generalidade das situações, a modernidade digital na Saúde é muito mais exigente em recursos, impondo a presença física de mais pessoas com elevadíssima diferenciação técnica e científica, equipamentos sofisticados e, por inerência, muito significativos aumentos de encargos financeiros.

Os equipamentos são caros e não menos dispendiosa é a manutenção e adequada actualização.

A verdade é que na generalidade das situações a manutenção não é devidamente acautelada, acarretando repetidos tempos de paragem dos equipamentos com muito elevados custos/hora, tanto em atrasos diagnósticos como em contratações a terceiros.

Esta verdade de La Palisse, é uma realidade que, além de escamoteada, tem sido negligenciada pelo poder político em todos os projectos de modernização tecnológica do SNS.

Logísticas institucionais

Diferente, mas não de menor relevância, é a dimensão inerente ao desenvolvimento social das populações, não compaginável com instituições arquitectonicamente arcaicas que, desajustadas da realidade em vivemos, tornam inviáveis a privacidade individual durante os internamentos no SNS.

É factual que a generalidade dos hospitais portugueses do SNS são antigos e continuam com enfermarias e casas de banho sectoriais para responder às necessidades de mais de 20 doentes.

Se eram condições excelentes para o Portugal dos anos 50 a 70 do século passado e aceitáveis aquando da criação do SNS, não são compatíveis com o grau de exigência social da generalidade dos portugueses em 2021. Felizmente que assim é.

A globalidade dos grandes hospitais de referência na Europa, mantendo o traçado arquitectónico original há muito que desenvolveram programas de modernização interior, ou de alargamento, adequados às mais exigentes condições sociais e de respeito pela privacidade dos doentes nestes nossos tempos. Adaptações que Portugal persiste em ignorar.

Continuamos assim, por saberem que é com essa aparente linearidade que iludem os nossos, menos informados e afortunados, concidadãos.

Eventualmente considerado fútil por alguns, a privacidade é um elementar direito de cidadania que, negligenciado, acresce à razão de “fuga” de doentes do SNS.

A recuperação do SNS far-se-á através da sua credibilização, não compaginável com “borrifos” de setecentos milhões de euros, mas, mais uma vez, o Governo “assobia para o lado”, com o respeito e preocupação que a Saúde lhe merece e deixa bem expressa com a posição ultraperiférica que destina à titular da pasta na sua bancada na AR na discussão do Orçamento.

E, já agora, haverá alguém que, de boa-fé e bom-pensar, acredite que os médicos e os enfermeiros, em semelhantes situações de exercício, farão a opção natural pelos privados em desfavor do SNS, público e gratificante nas vertentes clínicas, académicas e de investigação?Nenhum de nós!

Em 2021, a Saúde em Portugal só poderá ser defendida e recuperada através de intervenções pensadas e ajustadas a análises sólidas sobre a verdade dos factos, não coadunáveis com discussões estéreis de cariz ideológico.

A verdade é que, como há muito se antevia, o SNS está desadequado da realidade e extraordinariamente empobrecido, depauperado dos melhores e ao serviço dos cada vez mais pobres.