O recurso às origens seminais da língua portuguesa, justifica-se pelo objectivo de procurar ir aos porquês de duas questões que, na actual conjuntura, me parecem centrais no “onde está e para onde possa ir” a Saúde no nosso País.

O País está a arder! Atendendo às circunstâncias que temos vivido, mais factual que metaforicamente, Portugal arde em todos os domínios da governação, desde o Território até à Saúde.

É máxima antiga que as políticas só fazem sentido se servirem adequadamente as pessoas e que o Estado de Direito se avalia pela dignidade com que as respeita, pela forma como as trata, de acordo com o rigor cego da lei, e com o cuidado como não as humilha. Ora, face ao aumento continuado de deveres e redução de direitos, à realidade fantasiosa com que é descrita a verdade política e social e à “inexistência de obra efectiva”, será legítimo perguntar em que “domínio nuclear da vida” os portugueses se têm vindo a sentir dignamente respeitados e protegidos durante este longo período político?

São repetidas as situações em que o princípio discursivo do Primeiro-Ministro, e dos Governos que tem liderado, espelha um carácter político caracterizado pela “auto desculpabilização” e o achar “de outro”, alguém ou coisa a quem, de imediato e por razões que a psicologia explica com profundidade e rigor, atribuir responsabilidades e “culpa”.

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Sabemos que os incêndios responsáveis pelas enormes áreas recentemente ardidas foram consequência de duas, súbitas e inesperadas, circunstâncias: as ondas de calor e a seca extrema. E que o seu devastador resultado não foi fruto da ineficácia de planos, modos de resposta ou da inexistência de estratégia efectivas, mas sim de quem “não soube como usar e manobrar o SIRESP”. E porque a lição com o passado recente foi bem aprendida, “agora só ardeu 70% do que o algoritmo dos incêndios previa” e, porque Governo trabalha e sabe como fazer bem, “a Serra da Estrela vai ficar melhor”.

As consequências da pandemia e da guerra são dramáticas para o mundo, e também para as pessoas em Portugal, mas penso ser nosso direito de cidadania exigir que o Governo não se resguarde por trás desses biombos para, usando os meios de que dispõe, faça mais e melhor em favor do respeito pelo mais lato conceito de “qualidade de vida” dos portugueses.

Como anunciado, foco-me na Saúde e em Marta Temido, enquanto rosto visível do Grupo que trouxe o SNS para a situação de caos fantasmagórico onde se encontra. É realidade sentida que a Saúde nunca esteve tão mal em Portugal. Mas não é menos verdade que os problemas que têm vindo a abalar a Saúde são transnacionais, pelo que, não sendo exclusivamente nossos, tem sido razão bastante para a convicta afirmação, repetida com reiterada notoriedade, de que “a responsabilidade não pode ser imputada ao Governo”.

O SNS atingiu patamares de absoluto descalabro que o tornou incapaz de responder às mais elementares necessidades da condição humana, numa situação de ruína e desilusão não imagináveis há pouco tempo. Desilusão dos doentes, ao perceberem que o Estado, ao esvaziar os hospitais de meios e recursos, tinha deixado de garantir os seus mais elementares “deveres de cuidar”. Desilusão dos profissionais que, indo além da Taprobana, se veem, física e mentalmente, esgotados e vilipendiados por quem lhes devia assegurar condignas condições de trabalho e lhes deve o maior dos reconhecimentos.

Dizem-nos que “a culpa foi da pandemia” onde, no plano internacional, Portugal até esteve muito bem no combate à COVID-19. O sucesso do plano de vacinação tornou Portugal referência e fez com que Marta Temido tenha chegado a ser o governante com maior índice de popularidade, interna e externa. Eis mais um claro exemplo do recurso ao habitual biombo para exibir a meia-verdade de, depois do tumultuoso e alucinatório início com que a Saúde começou a gerir a campanha vacinal, ter havido necessidade de encontrar “outro” que, por estar habituado a navegar em turbulentas águas profundas, conseguiu, com brilho e eficiência, levar “a carta a Garcia”. Neste, como em todos os domínios da Sociedade, conhecemos a ausência de pudor com que o Governo recorre à sua fantasiosa narrativa “aliciana” para descrever a realidade do País.

Quando, no rescaldo imediato da pandemia, confrontada com a realidade e o descalabro das respostas do SNS, a Ministra da Saúde não hesitou em encontrar “um outro” responsável, culpando a “falta de resiliência dos médicos” que, pouco antes, se mostrara a aplaudir, no que acabou por se perceber ser uma sua magnifica encenação pour épater le bourgeois.

Independentemente da inevitabilidade da estratégia adoptada para enfrentar a pandemia e evitar a catastrófica derrocada do SNS, os factos mostram, com elevado grau de evidência, que a exaltação do inquestionável sucesso da luta contra a Covid-19 foi obtida à custa do sacrifício dos portugueses. Sacrifício, físico e moral, dos profissionais e da condição clínica dos doentes que, com outras patologias viriam a morrer por falta de resposta imediata e tardia do SNS, como os índices de mortalidade estão agora a revelar.

Para que a sua marca ideológica ficasse indelevelmente marcada, Marta Temido não hesitou em, sem o mínimo de decoro, fazer anular o Estatuto da Saúde preparado pela Equipa da Dra. Maria de Belém Roseira. Devo dizer, em nota de rodapé, que a importância deste novo Estatuto da Saúde é tal que, duas semanas depois de ter tomado posse, o actual Ministro da Saúde já assumiu “a possibilidade de o alterar se tal se mostrar adequado”. Lamentavelmente, a Ministra fracassou até ao limite de fazer com que os Hospitais do SNS tivessem deixado de ser locais onde se trabalha para salvar vidas para passarem a lugares perigosos, tanto para os profissionais, que se veem obrigados a oficializar pedidos de “escusa de responsabilidade”, como, sobretudo, para os doentes, sujeitos a um “Sistema”, que os obriga a morrer antes de lá chegar ou, já no seu interior, pelas limitações impostas pela falência das condições logísticas.

Entretanto, como diz a canção, lá íamos “andando do jeito que Deus quer, entre dias que passam menos mal lá veio um” em que o estrondo ensurdecedor de “duas gotas” caídas do copo há muito transbordado em que, coincidindo com a “queda das máscaras”, António Costa “não teve como não aceitar a demissão” da Ministra da Saúde. Não sem que Marta Temido tivesse a oportunidade de provar o veneno da humilhação a que foi obrigada pelo Primeiro-Ministro de “ficar até que o Estatuto do SNS fosse aprovado”.

Tomando como exemplo a Sinfonia Nº 45 de Haydn, direi que só quem pretenda manipular a razão histórica das coisas e a verdade efectiva dos factos se permitirá dizer que a derrocada do SNS foi provocada pelo “obsceno crescimento do negócio da saúde” e a “despudorada saída massiva dos profissionais”.

Neste final de acto, a dúvida mansa que me atormenta é se as políticas com que se foi desarmando o SNS não terão sido alvo de tão elaborada como maquiavélica (por desconhecer a expressão política adequada utilizarei o vocábulo comum) sabotagem. Com que objectivo? Atrevo-me a dizer que, querendo profundamente acreditar não ter razão, admito saber.

Objectivado o ubi sumus é tempo de olhar para o quo vadis.

É unânime a conclusão da emergência que assumem as “reformas estruturais”, para “recuperar o SNS”. Esta afirmação contém, contudo, dois pressupostos que imputo de soberana distorção da realidade. Começando pelo último direi que “recuperar o SNS”, não passa de uma falácia, gasta por quem está longe de saber do que fala. Para mim, agora veterano de outras guerras, é profundamente triste e desolador ver o estado a que chegou Serviço Nacional de Saúde de António Arnaud, que entusiasticamente ajudei a concretizar para depois, com responsabilidades acrescidas, ter colaborado no seu desenvolvimento até ao mais elevado patamar, atingido na transição do milénio.

Independentemente de vontades, esse SNS não é mais recuperável.

Foi deliberadamente abandonado e, hoje, a sociedade é outra, as condições de vida são radicalmente distintas e os meios e modos do exercício clínico muito diferentes. É inquestionável a responsabilidade política, ética e moral do Estado de criar condições dignas de acesso e qualidade de Saúde aos seus cidadãos, situação que só será possível com a “construção de um novo SNS” que tenha no respeito pela dignidade da condição humana o seu objectivo nuclear. Construção que exige condições, não menos do que as máximas, para que os portugueses tenham acesso a uma Saúde de qualidade digna de um Estado de Direito do século XXI europeu, de que Portugal precisa, que os profissionais merecem e os doentes exigem.

De uma vez por todas, o Governo não pode continuar a esconder-se atrás de dificuldades circunstanciais inerentes à pandemia e à guerra que, não podendo ser esquecidas ou menorizadas, não podem ser razão bastante para não fazer o que se lhe exige, se para tal tiver engenho, arte e vontade política.

Mudou a equipa ministerial e personalidades de referência no Partido Socialista, e seguramente com razão, dizem “haver finalmente uma equipa de excelência no Ministério da Saúde”. Manuel Pizarro, além de político experiente e com relevante peso partidário, é médico com actividade clínica de referência. Sabe e conhece por dentro a verdade do que vai enfrentar. Novo rosto, nova personalidade, nova maneira de ser e de estar, sabe como e com quem dialogar para ultrapassar conflitos. Sabe que os profissionais, com médicos e enfermeiros à cabeça, o que querem é um SNS forte, aberto às necessidades dos doentes, dotado de meios e capacidades que lhes permita exercer as suas competências com qualidade inerente à prolongada e exigente formação e dedicação que os portugueses exigem e merecem. E sabe que, nessas condições, os mais talentosos e competentes profissionais da Saúde nunca o quererão abandonar.

A Equipa governativa da Saúde é, agora, reforçada com a Direcção Executiva para o SNS, uma nova plataforma de decisão com estatuto de Instituto Público autónomo, de regime especial, criada no âmbito do Estatuto do SNS.

De forma muito simplista, face ao desconhecimento das atribuições e responsabilidades, poder-se-á admitir que o CEO vai olhar para a sequoia, enquanto frondosa árvore seminal do SNS, para o Ministro poder ficar a cuidar da vastidão da floresta que é o Sistema Nacional de Saúde.

A dúvida vai no sentido de saber o grau de autonomia, política e financeira que Fernando Araújo terá para se articular com as restantes instâncias de gestão, ascendente e descentes, e concretizar as medidas que sabe serem imprescindíveis de imediato. Claro que o Director Executivo as conhece por naturalmente estar a colaborar na sua construção estatutária, entendo-a como uma estratégia seguramente inteligente e merecedora de esperançosa expectativa.

Não conheço Fernando Araújo, mas sei que é profundamente respeitado e competente, que pensa com audácia, ambição e responsabilidade, com comprovada visão estratégica, inteligente lucidez organizativa e sentido de responsabilidade com largas provas dadas “no saber fazer”. Tem o carisma indispensável para o cargo e do que dele se esperará nesta nova função.

Que “o problema da Saúde é estrutural” todos dizem e o CEO, que quer um SNS forte para Portugal, sabe que se vai confrontar com o “peso burocrático e administrativista de uma gestão não focada na excelência, que tem nos números e folhas Excel o seu paradigma, assente em trabalhadores com salários baixos e carreiras que não os dignificam, que desacreditam as Instituições e desprestigiam os doentes”; é indispensável pôr a revolução digital ao serviço da desburocratização dos serviços, em benefício das pessoas; é necessário criar as condições necessárias para agilizar e facilitar os acessos dos doentes aos cuidados de saúde; é fundamental recuperar as Carreiras, assentes na formação continuada e na valorização e reconhecimento do mérito.

E sabe ainda que em todos os Centros Hospitalares Universitários, que enriquecem todas as regiões do País, as vertentes assistenciais, clínica, de ensino e investigação, cuja qualidade é fulcral recuperar, sejam entendidas como tempos cooperativos e enriquecedoramente complementares de uma única actividade clínica que, assim entendida, exige absoluta dedicação, enquanto solução para a mais elementar resposta à dignidade devida a profissionais e doentes; a “dedicação plena” de cada profissional implica a dedicação plena das instituições, hospitais e centros de saúde, “enquanto um todo”; todos esses requisitos impõem adequada e condigna expressão salarial, capaz de reter no SNS os profissionais mais talentosos, dedicados e competentes; “assistência de proximidade” não é compatível com “assistência diferenciada” e que esta não pode deixar de estar criteriosamente integrada numa cuidada, atenta e permanentemente avaliada Carta Hospitalar Portuguesa de Referenciação de Cuidados em Saúde e sabe, ainda que, entre todas, não podem ser esquecidas as reformas infraestruturais, que humilham os doentes nos Serviços Hospitalares ao obrigá-los a permanecer em macas por tempo indeterminado e oferecendo-lhes instalações sanitárias comunitárias para uso de 20 pacientes.

Por estar habituado a fazer, Fernando Araújo sabe que só com sólidos meios e bem programada e planeada organização poderá vir a ser possível “construir um SNS robusto” competente e capaz para responder com facilidade de acesso as todas as áreas de intervenção e ser solidamente apelativo e incentivador para reter, fixar e, se possível, recuperar os talentos dos mais motivados e competentes profissionais. Que a tarefa é árdua e longa todos sabemos, tal como não ignoramos que o Director Executivo do SNS necessitará, além de palavra forte “para ser ouvida”, sustentados meios de autonomia e decisão.

Conhecendo a situação da Saúde, quero esperar o Primeiro-Ministro saiba entender as razões, circunstâncias e consequências, que levaram Joseph Haydn a compor a, já referida, Sinfonia nº 45, conhecida universalmente pela “Sinfonia do Adeus”, tal como, no dizer de Winston Churchill, é “inútil dizermos que estamos a fazer o possível, quando é preciso fazer o que é necessário”.

Será que a insensibilidade com que o Governo vai perorando as suas habituais meias-verdades (des)informativas, impositivas de dificuldades e sofrimentos “sem se saber porquê” e do continuado empobrecimento em que insistem mergulhar o país e as pessoas, é fruto da entrada na Era da Inteligência Artificial? Será esta a razão que leva o Primeiro-Ministro a pensar que os portugueses, enquanto humanos comuns apáticos e assustados pelas dificuldades, já terão perdido a sua natural inteligência crítica e irão continuar a deixar-se embalar pelas retóricas brilhantes com que nos vai descrevendo as suas fantasiosas narrativas?

Atendendo a estes pressupostos e conhecendo-se o historial da táctica comunicacional do Primeiro-Ministro, não deixo de me surpreender com o seu entusiástico compromisso com a recuperação da Saúde e o manifesto apoio político à nova e reforçada equipa de excelência para a concretização de tão inovador modelo de gestão. Será que António Costa teve a capacidade de perceber a situação para, à semelhança do Príncipe Nikolaus Esterházy, patrono de Haydn em 1772, assumir as suas responsabilidades e agir em conformidade para solucionar o problema?

Dir-se-á que sim. Que sabe que este é um momento único, se não último, para salvar o SNS, sendo a nomeação da nova equipa ministerial e da Direcção Executiva do SNS prova dessa determinação.

Todavia, não sem somenos importância será, recordo, o modo como o Primeiro-Ministro se apressou a dizer, aquando da tomada de posse de Manuel Pizarro, que “a mudança de membros do Governo é uma mudança de personalidades, é uma mudança de energia, é uma mudança de estilo, são mudanças, mas não são mudanças de política”, reforçando a clareza do seu pensamento ao terminar a declaração dizendo que “achei graça, até ver os principais críticos do Governo a dizer que o que importa é a mudança de políticas. As políticas são do Governo e quem quer mudança de políticas, esquece-se que primeiro tem de derrubar o Governo”.

Como? Em que ficamos? Na genuína vontade de “recuperar a Saúde” em Portugal, ou na da manutenção das políticas? É que a inequívoca incompatibilidade entre ambas permite-me estar aqui a descortinar um ardiloso “rabo de gato”.

Vejamos. A excitação política evidenciada com a nova Equipa da Saúde parece demonstrar a “enorme preocupação” com que o Governo está a olhar para o Sector, equipando-o com personalidades de competência inquestionável, inovadora organização e o maior esforço orçamental de sempre, parecendo, finalmente, perceber que a Saúde precisa de muito mais que o plácido “deitar dinheiro” a que temos vindo a assistir, enquanto olimpicamente se vai ignorando a essência do problema. Será esta a ilação natural de uma estratégia que está a reunir todas as condições para que melhores e mais substantivos resultados possam ser atingíveis num prazo aceitável.

Assumindo com linear transparência a minha suspeição, por saber que a característica tem sido mais a de dizer que de fazer, penso que toda esta mise en scène da estratégia governativa não seja mais que o já referido “rabo do gato”. Desejando estar profundamente errado, admito que, nestas circunstâncias e perante admissíveis ingratos resultados na resposta aos cuidados de saúde, a habitual conduta do Governo se traduza por, mais uma vez, reclamar que a “culpa não foi sua”, mas sim de quem não soube aproveitar e desenvolver todos os meios e recursos postos à sua disposição!

Temo que, com esta manobra, ao mesmo tempo que se cala quem pensa por si, sem medo de dizer e agir, Fernando Araújo não esteja a ser usado como mais um requintado biombo que mantém o “gato escondido”, para que ele possa, elegante e silenciosamente, continuar a mover-se entre São Bento e o Terreiro do Paço.

Quanto às indispensáveis reformas estruturais, reconhecendo a mestria e enorme talento retórico e tacticismo político de António Costa, sabendo-se como o Partido Socialista é avesso a tais reformas que, aliás, não são referidas no programa apresentado em 2022 com que conseguiu a confortável maioria absoluta de que usufrui na AR, e que a reconstrução do SNS implicará profundas reformas desse tipo, a mansidão da minha dúvida volta-se para o porquê da pompa com que, agora, foram apresentadas.

Apesar da ética republicana impor verdade nas atitudes e as políticas só fazerem sentido se servirem adequadamente as pessoas, temo que toda a encenação não passe do cumprimento da velha máxima lampedusiana que “é necessário que tudo mude, para que tudo fique na mesma”.