Os ares de Dezembro não deixam de tomar uma brisa especial nesta nossa pequena casa Lusitana. Assinalámos mais um 1.º de Dezembro: data cujo significado importa hoje revisitar com maior gravidade do que tem sido feito nas últimas décadas de vida nacional. Não podemos ignorar o facto de que o significado e o simbolismo da libertação nacional face à potência castelhana foi descartado pelas elites políticas da nossa terceira república – de uma forma que não podemos admitir continuidade, sob pena de comprometer, reprimir, e apagar a substância da mensagem da restauração. É claro que este descarte não é admitido, nem muito menos proclamado. Afinal, os mais altos dignatários do regime participam nas cerimónias oficiais da restauração. O que nos temos de perguntar é simples: Será o simbolismo da libertação nacional ainda verdadeiro no Portugal do século XXI? Isto é, podemos considerar Portugal uma nação soberana – uma “República soberana”, como dita a Constituição –, tal como a mensagem de liberdade nacional evocada pelo simbolismo da restauração nos recorda?

1 Recuperemos o significado do 1.º de Dezembro. A dissolução atingira o reino depois da nova de Alcácer-Quibir: desagregação do escol, destruição parcial da nobreza guerreira, e instalação de uma gravosa crise dinástica que culminaria na ideia da inexorabilidade da união das coroas ibéricas. Neste momento de crise, Luís de Camões encarregou-se de articular a consciência nacional: ferida pela tragédia, transformou-se em sentimento doloroso de perda; o poeta incorporou o sentimento trágico de morrer com a pátria, mas através dele ajudou a construir um imaginário tipicamente português – o sebastianismo, o saudosismo, elementos de um imaginário colectivo que carregaria em si as dores da resistência. Ainda hoje vivemos sob este imaginário, e sentimo-lo plenamente quando Pessoa clamou “Ó Portugal, és hoje nevoeiro!”. Ainda hoje – e talvez especialmente hoje – somos ainda nevoeiro.

Nos dois anos que sucederam a Alcácer-Quibir, a degeneração interna e a fraqueza das elites portuguesas – fidalguia, eclesiástica, intelectual – ditaram a relativamente fácil incorporação do reino no potentado de Filipe II de Espanha. Enquanto o reino se dissolvia, apático e amorfo, tornara-se costume de parte significativa daquelas elites a bajulação e o servilismo perante o novo soberano: Cristóvão de Moura, emissário do monarca castelhano em Portugal que se multiplicou em esforços para convencer as elites portuguesas das reivindicações espanholas, chegou mesmo a pedir desculpas a Filipe II por “não ter podido comprar mais barato” D. António da Gama, membro do Conselho do Rei – que foi depois galardoado com um lugar no Conselho Real de Castela! Episódios deste género tiveram inúmeras repetições, e durante os anos de domínio filipino aquele imaginário camoniano contrastou com as manobras de influência das elites portuguesas para devorar as migalhas que restavam do poder castelhano.

Depois de Filipe II, o carácter dominador e o impulso centralizador da alma castelhana seriam personificados no Conde-Duque de Olivares. É invariável esta dialéctica peninsular: para a meseta castelhana, sempre dominadora, a independência portuguesa parece um absurdo histórico; aliás, tendo em conta a perfeita unidade geográfica da península, a dualidade peninsular surge também como absurdo lógico. Mas a consciência nacional portuguesa forjou-se num sentimento de finis terrae, de periferia irredutível que recusou aquela unidade e assim escapou às amarras continentais de Castela. Portugal, enquanto nação marítima, sustentou a sua aventura colectiva na dualidade peninsular: fora esse o resultado ditado pela superação da primeira crise nacional com Aljubarrota. No campo das ideias, esta crise foi superada pelo argumentário de João das Regras, que substituiu os formalismos jurídicos, aos quais a situação sempre se agarra em momentos de excepção, pela eleição do rei natural – em suma, pela realidade de um populus português; e no domínio político, a crise foi superada pela reafirmação da dualidade peninsular, pela autonomização da comunidade política que era Portugal.

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Dois séculos passados, a desagregação nacional não permitiu semelhante desfecho. Febo Moniz não era João das Regras, e a sua coragem valeu-lhe uma ignominiosa morte no cárcere – ao mesmo tempo que as elites portuguesas bajulavam o monarca espanhol, festejavam a união das coroas, e competiam entre si pelas benesses que a união ibérica poderia distribuir. As décadas de domínio filipino levaram Portugal a sofrer as consequências de ter passado a participar nas querelas continentais. Enquanto se poderia pensar que a união ibérica salvaria Portugal da sua condição de paroquial periferia, a realidade foi a oposta: pagou-se caro a intromissão nos assuntos continentais. O 1.º de Dezembro pode assim ser visto como uma restauração da independência portuguesa na medida em que foi também uma reafirmação da solução portuguesa para a primeira crise nacional.

2 É lugar-comum considerar-se que os tempos actuais são outros, distintos em tudo da restante experiência histórica do homem. E no mundo ocidental, nestes tempos que se consideravam até há pouco como pós-políticos e pós-históricos, essa incapacidade de ver para além do presente é ainda mais preocupante. Vivemos numa Europa unida, democrática, aberta, inclusiva, num processo inexorável de integração, sobre o qual não se imaginam alternativas – tal como se a História tivesse começado ontem, o horizonte temporal do homem pós-moderno fica reduzido à sua actual experiência; o passado, se nos pode ensinar alguma coisa, representa apenas um conjunto interessante de curiosidades; percorrê-lo e estudá-lo é quase um exercício de curiosidade arqueológica. Mas esta limitação do horizonte temporal da experiência humana é insustentável, e os grandes espíritos ultrapassam sempre o seu tempo: Maquiavel recuperara a experiência política romana para contrariar a “fraqueza” dos seus contemporâneos; para articular o seu conceito de soberania – conceito que teria tantas implicações -, Bodin precisou de revisitar a figura jurídica do dictator; e Hobbes, no século XVII, dirigiu no seu Leviatã as críticas a Aristóteles e Cícero.

Alargando o nosso horizonte temporal podemos identificar um paralelismo entre o significado da restauração e a nossa situação presente. Naquela segunda grande crise nacional, em 1580, a ameaça à independência e liberdade do país estava na dinâmica e na força centralizadora da coroa espanhola. Mas esta ameaça foi aceite pelo escol nacional como consequência inexorável da crise por que passava o país: seria mais fácil proteger os territórios ultramarinos dentro de uma grande união ibérica, e com certeza que a ideia de pertencer a um grande projecto imperial com presença no continente europeu moveu o ânimo débil das elites da situação.

Ora, ameaças como esta vão mudando de forma. Neste momento, aquele fascínio provinciano por um grande projecto alheio já não se vira para Castela, mas tem os olhos postos no projecto europeu. Também no caso da União Europeia a inexorabilidade é o fundamento primeiro para a crença cega na cada vez maior e mais profunda integração europeia: pertencer à UE significa pertencer a um projecto mais moderno, mais racional, mais “democrático”, mais aberto e inclusivo, mais tecnicamente eficiente do que a mera lealdade nacional – aliás, esta lealdade nacional parece tão paroquial, tão pequenina e patética perante o mega projecto supranacional de uma Europa unida.

Se a união peninsular parecia inevitável e benéfica em 1579-80, também hoje o projecto europeu – cujo corolário e objectivo é o federalismo europeu – parece inevitável e inegavelmente benéfico. Perante a transição de regime que substituiu o Estado Novo, ditou a necessidade que a democratização do país implicasse a pertença à comunidade europeia: o desígnio nacional tornou-se no desígnio de fazer parte da Europa em construção. Também para o imperativo desenvolvimento económico era o projecto europeu necessário. Mas não foi apenas a necessidade que ditou esta concentração quase exclusiva do interesse nacional na construção europeia. Tendo o antigo regime promovido uma ideia de país pluricontinental, extra-europeu, o novo Portugal democrático teria de ser o seu contrário, absoluta e convictamente europeísta. Da mesma forma, as elites políticas do “arco de governação” comungavam todas deste desígnio supranacional: pensar em termos nacionais era ficar reduzido à dimensão periférica, de cauda do continente; a Europa permitia libertar o país dessa condição.

Se o interesse nacional se tinha tornado equivalente ao interesse europeu, também o grande objectivo nacional transformara-se na “convergência”. Infelizmente, apesar dos laivos contínuos de europeísmo, a convergência nunca foi conseguida, nem parece que o será. Em vez da convergência, fomos brindados com uma dependência quase absoluta. Portugal é hoje um país quase exclusivamente dependente do financiamento europeu – dependente da esmola comunitária para todos os saltos de desenvolvimento que os vários governos se propõem fazer; basta atestar esta realidade com a forma como o PRR é tido como uma “oportunidade única” para catapultar o desenvolvimento do país. Ao longo das últimas décadas este cego europeísmo do escol português retirou ao país as principais marcas da sua soberania – uma política externa autónoma, capacidade de cunhar moeda, feitura das próprias leis – em troca da esmola europeia. Tal como as elites portuguesas competiam por lugares no Conselho Real de Castela, hoje compete-se pela possibilidade de distribuição dos fundos comunitários. De forma semelhante a 1580, as elites portuguesas prescindiram de pensar numa consciência nacional portuguesa, no interesse nacional como critério para a acção política, e sucumbiram perante a inexorabilidade das ideias alheias, legando-nos um país sem posição própria e digna, mesmo dentro do quadro europeu.

3 O projecto europeu, enquanto projecto político, teve necessariamente a tarefa de neutralizar a acção dos Estados nacionais. Não há particular problema com isto: o drama da segunda guerra mundial minara de tal forma o Estado-nação que a neutralização dos impulsos nacionais parecia imperativa. A interdependência económica foi o primeiro passo neste alargado processo de neutralização do Estado soberano. Hoje, a inexorabilidade do pós-soberanismo está precisamente aqui, na ideia de que a interdependência – que passou de económica a institucional, cultural, militar, etc – invalida as reivindicações do Estado-nação. Mas esta neutralização das soberanias nacionais fez-se também através da construção de um monstro burocrático, efectivamente irresponsável – no sentido em que não responde perante o cidadão –, encabeçado por comissários não-eleitos. A tentativa de neutralizar as soberanias nacionais acabou simultaneamente por domesticar as democracias nacionais. Tendo em conta que o desenvolvimento do Estado-nação andou lado-a-lado com o desenvolvimento do conceito moderno de soberania, não seria de esperar outro resultado. É assim compreensível o incómodo gritante das elites eurocratas perante as reivindicações de soberania de alguns Estados nacionais, especialmente perante países como a Hungria e a Polónia.

Ora, hoje a principal ameaça à autonomia e liberdade nacionais não se encontra no iberismo, mas sim no impulso federalizador do projecto europeu. Apesar de evidente, a constatação desta ameaça não é fácil, de tal forma está o projecto europeu ligado ao processo de democratização do nosso país. No entanto, a excessiva dependência portuguesa face ao projecto europeu é uma prova da realidade da ameaça: coberta pelo manto da inevitabilidade histórica, a integração europeia é vista pelas nossas elites de forma totalmente acrítica; toda a integração é positiva desde que a máquina dos fundos não pare. Mesmo que isso comprometa a autonomia estratégica que resta ao país. Autonomia estratégica que ainda nos resta, por exemplo, na exploração marítima, no aproveitamento da enorme ZEE que uma nação marítima como Portugal pode usar como alicerce de uma posição e voz própria dentro e fora do quadro europeu. O federalismo europeu poderá acabar com esta autonomia nacional se conseguir transformar a política comum de pescas em política comum de mar; e contra este movimento, a posição acrítica de Portugal perante os avanços do projecto europeu conduzirá à redução do país num protectorado da comunidade europeia, gerido por uma comissão de gestão que se dá pelo nome de Governo da República Portuguesa.

Esta visão acrítica do processo de integração europeia, sendo partilhada pelo escol respeitável do regime, traduz-se numa assunção de fracasso: ela admite que já não existe um futuro para Portugal enquanto comunidade política. Temos evidentemente de recusar este fatalismo. Mesmo dentro do quadro europeu deve haver espaço para um país com vontade própria, capaz de articular uma ideia de consciência nacional vertida em acção política; deve haver espaço para um Portugal que não reduza o seu interesse nacional ao projecto europeu, com uma política externa própria e uma agenda extra-europeia, com prioridades estratégicas que não dependam de terceiros. É isso que se exige a quem guia os destinos de uma nação multisecular como Portugal.

O 1.º de Dezembro significou a vitória da consciência nacional perante todas as inevitabilidades históricas e ideias alheias; significou a vitória de um novo escol face à decadência das velhas elites; e significou uma reafirmação dos interesses permanentes desta periferia irredutível que é Portugal. Também hoje é tempo de recuperar estes interesses permanentes: a lição do 1.º de Dezembro é uma lição de liberdade e soberania.