O horror à expressão “reformas estruturais” talvez seja a explicação possível para a sua ausência no vocabulário do Governo. Numa busca no relatório do Orçamento do Estado encontramos 35 vezes a expressão “reformas” – este número exclui obviamente as “pensões e reformas” – e é esmagadora a associação às medidas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Como se sabe, o Governo comprometeu-se a realizar um conjunto de reformas para ter acesso aos subsídios do PRR.

A expressão “reforma estrutural”, no singular ou plural, aparece duas vezes. Uma para referir que vai ser feita a avaliação do novo Regime Jurídico das Contraordenações Económicas, classificando-o como uma “reforma estrutural”. Uma segunda para falar da reforma estrutural da Lei de Enquadramento Orçamental.

Há de facto mais um caso, mas para referir entidades e programas europeus com esse nome. Lê-se na página 117 do relatório do Orçamento: “O Governo desenvolveu um estudo aprofundado, com o apoio técnico do Fundo Monetário Internacional (FMI), prestado ao abrigo do programa de Programa de Apoio às Reformas Estruturais (PARE), coordenado pela Direção-Geral do Apoio às Reformas Estruturais da Comissão Europeia, sobre a criação de uma Unidade Técnica permanente para a Avaliação de Benefícios Fiscais.” Não se percebe se é isto exactamente que se quis dizer, que foi “um estudo aprofundado” para “a criação de uma unidade técnica”, ou se esse estudo foi para avaliar os benefícios fiscais, como queremos acreditar que seja. Admitamos que não se quer abrir uma polémica sobre o tema e por isso se escreva assim.

Desta leitura retiram-se duas conclusões, uma baseada nos números, outra mais interpretativa. A que se baseia nos números, leva-nos a concluir que não há reformas explícitas para além das que Bruxelas impôs para termos acesso aos subsídios do PRR. A segunda, com uma interpretação benévola, é que podem existir outras reformas – como a dos benefícios fiscais – mas são mascaradas para que não se criem polémicas.

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O ex-presidente da República Aníbal Cavaco Silva, num artigo no Público, recorda que não se fizeram reformas estruturais durante os últimos anos e elenca quatro fundamentais: na Administração Pública, no sistema fiscal, na justiça e no mercado de trabalho. Já o tinha referido antes na entrevista que deu a uma edição especial da revista Sábado sobre o aniversário do euro. A desburocratização, a simplificação do regime fiscal e melhorar o funcionamento dos tribunais, especialmente os administrativos e fiscais, são os aspetos mais relevantes.

Nada disto parece preocupar o Governo, se nos basearmos naquilo que está escrito no seu programa ou na proposta de Orçamento do Estado. Mas parece impossível que o Governo não saiba que a burocracia cria entraves sérios à inovação, aos investimentos, aos empreendedores e só não sufoca as grandes empresas. É impossível o Governo não saber que o mau funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais atinge níveis que não prejudicam apenas a economia, são  já um problema de Estado de Direito. E é impossível o Governo não saber que o nosso regime fiscal é uma peça labiríntica, à qual se juntaram “taxas e taxinhas” – um trabalho da CIP conclui que há 4.300 taxas em Portugal –, criando-se também aqui graves problemas de concorrência em benefício dos grandes grupos empresariais.

Nos últimos seis anos, em que o PS não tinha maioria absoluta, habituámo-nos a não levar a sério o que o Governo dizia, esperando pelo que fazia. Isso aconteceu especialmente na gestão das contas públicas, em que a generosidade que ameaçava o défice se transformou num garrote para os serviços públicos, que acabou por os degradar. A redução do défice público fez-se, mas o seu preço foi suportado por quem não tinha voz no Parlamento ou na rua.

Outras reformas que o Governo se recusa até a considerar como necessárias acabaram por se fazer por força da realidade e de medidas vistas como justas. O caso mais emblemático é o da reforma das pensões de reforma. Os anúncios de subida das reformas colidem com o que sentem os pensionistas com reformas médias, que foram vendo o seu poder de compra diminuir. A subida das contribuições, embora ligada ao emprego, esconde a alteração das regras para os recibos verdes. E nas receitas vão-se criando adicionais, sendo o mais recente o do IMI, para ir garantindo o Estado social.

Agora, com maioria absoluta, o Governo tem condições para manter o poder sem atirar os custos das mudanças para cima dos que não têm voz. O ministro das Finanças, Fernando Medina, teve já um discurso na apresentação do Orçamento que deu sinais – que é preciso confirmar – de uma abordagem mais ligada à realidade económico e financeira e menos para seduzir a esquerda. Disse também, quando questionado sobre algumas reformas, que não se metem golos logo no início do jogo. Ou o Governo pode fazer o que fez nas contas públicas, mas agora sendo mais justo na distribuição dos custos das reformas – dizer uma coisa e nada dizer e fazer as reformas. O tempo o dirá. Se nada fizermos, a realidade encarrega-se de o fazer, da pior forma, pelo empobrecimento.