Se houve algo de quase palpável na comunicação de Joe Biden na passada segunda-feira, em que explicava as suas razões para a retirada total das forças americanas do Afeganistão, e que se misturavam nas nossas cabeças com as imagens de pânico e desespero no aeroporto de Cabul, foi o sentimento de uma dissonância absoluta. As palavras e as imagens não eram compatíveis umas com as outras, o desconcerto entre ambas era patente. As palavras, aparentemente, falavam de sóbrias razões, as imagens mostravam desespero e caos. O grau de insensibilidade necessário para não experimentar esse sentimento de dissonância transcende a imaginação. Mas há espíritos capazes desses prodígios.

O que disse Joe Biden? Na substância, que não teve culpa alguma em tudo aquilo. Que tinha herdado o problema do Afeganistão dos três presidentes anteriores e que não o queria deixar para o próximo. Que a embaixada americana tinha sido fechada em segurança. Que, se os Estados Unidos não evacuavam mais colaboradores afegãos, tal devia-se ao facto de eles não terem querido ser evacuados. Que honrou a sua promessa de acabar com o envolvimento americano na guerra afegã. Que só podia fazer o que fez ou aumentar a escala do conflito, coisa impensável. Que a culpa era de Trump, que tinha iniciado negociações com os talibãs. Que a culpa era também dos afegãos, que eram uns cobardolas ingratos e incompetentes com quem ele tinha gasto uma data de dinheiro em vão. E acrescentou, sem por um momento reparar na contradição em que incorria, que com ele acabavam os passa-culpas. “The buck stops here“, nas palavras célebres de Truman, que citou. Ele, Biden, era a responsabilidade em pessoa, a responsabilidade virtuosa e assumida.

Entretanto, os afegãos que procuram desesperadamente fugir da tomada do poder pelos talibãs, como consequência directa do abandono americano decretado por Biden, nomeadamente da perda do auxílio militar aéreo, que se lixem. Que se preparem para sofrer a tirania sem piedade do fundamentalismo islâmico e da sharia. A repressão, o assassinato, a violência, a humilhação, a degradação das mulheres e toda a panóplia de terror que o fanatismo inventa com indisfarçável prazer. O retorno a uma vida que ilusoriamente tinham julgado, desde há vinte anos, fazer parte do passado, retorno que só os americanos poderiam evitar. Nem a Grã-Bretanha, a única força militar efectiva da Europa ocidental, o poderia fazer, daí ter sido forçada, com um desprazer que a diplomacia obrigou Boris Johnson a disfarçar, a seguir a América. Com os Estados Unidos de fora, tudo o que se pode fazer – e os ingleses, têm sido os mais vocais nesse aspecto – é acolher os refugiados que chegarão em massa, tentando escapar ao terror. Mesmo que se seja sensível aos problemas que a emigração coloca, neste caso particular não pode haver dúvidas: é mesmo um dever, o único que, depois da catástrofe, podemos cumprir.

Trump tinha, é claro, querido tirar as forças americanas do Afeganistão. Como o tinham querido, antes dele, George W. Bush e Barack Obama. A aliança internacional, comandada pelos Estados Unidos, que invadiu o Afeganistão, fê-lo com objectivos precisos e limitados a um tempo que tinha de ser medido pelo grau de necessidade da sua presença. E Trump negociou, é verdade, em 2020, uma retirada dos americanos com os talibãs. Se fez bem ou mal, não sei. Mas lembro que, por cá, Mário Soares, nos tempos a seguir ao 11 de Setembro de 2001, recomendava enfaticamente um diálogo com os terroristas. E lembro também que, como qualquer pessoa pode verificar facilmente, as negociações com os talibãs estipulavam uma série de condições a serem cumpridas por estes, sem as quais a retirada das tropas americanas não se verificaria. De resto, o mais verosímil é que Trump acabasse por não retirar os americanos do Afeganistão e tivesse dado ouvidos (o que Biden não fez) aos avisos sobre os riscos da retirada. Quanto mais não seja – e, por uma vez, vale a pena usar aqueles argumentos psicológicos que abundavam na literatura jornalística sobre ele –, com medo da humilhação que tal retirada para ele representaria. Biden, o “homem decente” que toda a gente gostava de celebrar, não teve esses problemas.

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Porque Biden, lembram-se?, é um “homem decente”. Se tiverem dúvidas, leiam a vasta literatura lírico-analítica que sobre ele a comunicação social portuguesa abundantemente produziu, por falta de juízo ou, num caso ou outro, por pura patetice. Os adjectivos quase faltavam para descrever a nova maravilha dos nossos tempos, que rompia com o ignominioso passado recente representado por Trump. America is back! A América boa, a América dos nossos sonhos e dos nossos desvelos. A América multilateral e civilizada do diálogo. A América da compaixão. A América com quem a Europa e o mundo podem contar. A América que desmentirá a legião de “trumpinhos” – designação que servia para indicar todos aqueles que se recusassem a aceitar que tudo o que Trump fazia era por definição perverso e errado – que constituem a “direita radical” portuguesa e mundial. Se fosse dado a esse estilo (não sou), poderia escrever um artigo inteiro com a enumeração detalhada de todos os elogios incondicionais feitos a Biden, com citações que ocupariam páginas e páginas e com um lamento final, de dedinho em riste, sobre o “silêncio ensurdecedor” dos seus líricos admiradores face à situação presente.

A extrema-esquerda, é claro, delira de contentamento com tudo isto, exibindo a sua costumeira insensibilidade para com o terror e o sofrimento humano. Yanis Varoufakis, um ídolo seu durante o período da troika (e não apenas seu como de largas franjas do PS), celebrou o retorno dos talibãs ao poder como o fim do “imperialismo liberal neoconservador”, aconselhando perversamente coragem às mulheres afegãs. Suponho que, no seu espírito, elas devem aceitar todo o horror por que passarão como as necessárias dores de parto dos magníficos tempos que aí virão. E o Bloco de Esquerda, juntando a ignorância, a estupidez e o fanatismo como só ele sabe fazer, convida quem na altura apoiou a invasão do Afeganistão a fazer um balanço destes últimos vinte anos, que não fizeram mais do que fomentar o terrorismo: “a invasão ajudou à exaltação do terrorismo em largas partes do mundo”. De acordo com a visão sub specie aeternitatis do Bloco, deduz-se que foi a invasão do Afeganistão que motivou os ataques de 11 de Setembro de 2001.

De um outro ponto de vista, e no meio das críticas a Biden de republicanos e democratas, a extrema-esquerda do Partido Democrata (Ilhan Omar, por exemplo), na qual muitos ignorantes depositam uma sanguínea esperança para salvar o mundo, aplaudiu a retirada americana. Este ponto é importante, porque ilustra uma consonância que contrasta fortemente com a dissonância a que me referi no início deste artigo. Porque há mesmo uma consonância entre Biden, o tal “homem decente”, e o Black Lives Matter e o movimento woke em geral, uma consonância que não se limita à coreografia do joelho no chão de Kaepernick. E essa consonância desdobra-se numa outra, a aparentemente paradoxal consonância entre o movimento woke e os talibãs, que é efectiva para lá da óbvia desproporção do ponto de vista do terror. É que em ambos os casos, para lá da comum paixão pela eliminação do passado (não só sob a forma da destruição das estátuas – lembram-se dos Budas de Bamiyan?), há a mesma tentativa totalitária de regulamentar, contra o uso comum da liberdade, todo o comportamento público e privado e toda a linguagem disponível. Não é por isso surpreendente que não se ouçam, vindas dessas bandas, quaisquer críticas ao mundo mental dos talibãs. Tal como estes, os adeptos da wokeness interessam-se apenas na modificação integral da sua sociedade de acordo com padrões que querem impor, amiúde à força, a todos os outros. Ambos têm – involuntariamente num caso, voluntariamente no outro – o apoio do “homem decente” que tanto entusiasmo gerou nos costumeiros opinantes que se habituaram desde muito cedo, sem vergonha nenhuma, a respirar as mais absurdas certezas.