Foi um convite distraído, mas a música Box of Rain, dos Grateful Dead, deslizou convictamente para a mais consagrada revista médica do mundo, o New England Journal of Medicine.

What do you want me to do, to do for you to see you through?

Percorria o artigo “Falling Together – Empathetic Care for the Dying”, escrito por Lisa Rosenbaum e cuja leitura se recomenda. Mesmo a não médicos. Ou a pessoas que não estejam a morrer. À última categoria, em boa verdade, nenhum de nós pertencerá.  A linha que se desenha entre os mundos é, no fundo, um picotado imprevisível, um caminho de terra batida cronológica. Já lá estivemos, perto da morte. Ou iremos estar. Como médicos ou como civis. Ou como família. Ninguém é uma ilha, já se disse. Nem num hospital.

De uma forma resumida, o artigo fala-nos sobre os desafios e limites de cuidar do outro, sobre morrer e sobre medicina. E sobre como podemos ser úteis e encontrar significado nestas três amplas janelas.  A autora traz-nos também a história intensa do colega e amigo Paul Kalanithi, neurocirurgião e também autor do provavelmente já conhecido livro When Breath Becomes Air, que percorre a sua história como médico, como marido, como pai, perante o diagnóstico de um cancro avançado. Com uma certa leveza, como a do ar que o título carrega apesar do peso do tema, é narrada uma crónica sobre como conjugar empatia, realismo, medicina e esperança.

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O problema da empatia, sobretudo perante o fim de vida ou perante situações graves, é tropeçar na sua própria essência – ao calçar os sapatos do outro vamos sentir também a dor do seu caminho. Em medicina este mergulho pode ser muito complexo e a própria autora deixa isto bem claro como sendo uma razão óbvia para lacunas de empatia entre os profissionais: Quando se trabalha entre a dor, para se funcionar e tomar decisões racionais temos de ser capazes de a filtrar. Uns melhor que outros. Nuns dias mais e em outros dias talvez menos. A rotina também desliza pela curva das tarefas e pode ir embrulhando estas angústias, estes rostos, devagarinho. Acaba por maquilhar alguns gestos, algumas palavras, alguns vazios. Inventa-se o conceito de empatia clínica, tentamos arrumá-la numa disciplina da faculdade, num curso pós-graduado sobre comunicação. A empatia transforma-se num músculo mais ou menos tonificado. Mais ou menos cansado. Mais ou menos anestesiado. A pandemia, entretanto, instalou-se confortavelmente. E continuámos como sempre a ter doenças graves, a ter más notícias para dar. E o que aconteceu à empatia com os doentes? Pendurou-se no estetoscópio, nas mãos cheias de álcool-gel, no bordo superior da máscara cirúrgica. Às vezes veio para casa. Às vezes ficou no bolso.

É impossível falar sobre empatia em medicina sem falar sobre as famílias. E quando falo sobre as famílias é bom recordar que todos estamos ou podemos estar neste papel, não é um conceito distante ou discriminador, o sofrimento é democrático. Um pouco por todo o país, as famílias estão mais ou menos limitadas no contacto e no apoio a quem amam. Limitadas é uma palavra simpática, frequentemente o contacto é abolido. A razões oscilam entre a arquitetura, os recursos e alguma inércia. E, às vezes, com a destreza com que os próprios profissionais se mexem dentro de um hospital quando têm alguém conhecido internado, é fácil esquecer quem não tem esse luxo.

Como médica, nestas últimas semanas guardei imagens contrastantes sobre a importância de voltarmos a envolver as famílias nos cuidados médicos. Mera empatia ou parte fundamental da qualidade dos cuidados? Num lado, dois filhos que têm o pai com uma doença oncológica avançada e que não se conseguem despedir. Talvez amanhã. Um amanhã que nunca chega. Faz sentido deixar as últimas palavras para quando possivelmente já é tarde demais e o ente querido doente não as ouve ou já não consegue responder? Ou quando as palavras podem ser mais difíceis e inúteis do que qualquer presença? Nos mesmos dias, assisti a várias mulheres grávidas, sozinhas, a receberem a notícia mais negra sobre o seu bebé, sobre a gravidez que não chegou a bom porto. Sozinhas, com o chão a fugir-lhes dos pés. Sabemos que após uma má notícia, os doentes pouco mais ouvem ou retêm da informação prestada, fará diferença terapêutica ter outro par de ouvidos do seu lado – e consequentemente do nosso. Ao mesmo tempo, recebo fotografias enternecedoras de um casal amigo com a filha numa urgência pediátrica num outro país europeu, pública, onde foram arranjar camas para ambos os pais passarem a noite com ela. Tive a sorte de trabalhar em sítios tão diferentes como a Índia ou como em Espanha, onde não era sequer concebível que as famílias não estivessem com os doentes internados e não fossem parte da prestação de cuidados dentro do possível.  Surge tanto o tema da eutanásia no centro do palco quando alguns direitos tão simples ainda são figurantes.

Podemos não ter as instalações com as condições ideais para acolher os doentes, quanto mais o acompanhante por eles escolhido. Mas mais do que faltar o espaço físico, falta o valor do espaço humano – enquanto não reconhecermos a importância do acompanhamento dos doentes não há lugar para alcançar este mesmo objetivo. E reconheço facilmente os meus telhados de vidro. Já me esqueci milhares de vezes dos nomes dos familiares, dos nomes dos próprios doentes, já adiei conversas difíceis com pedidos de análises, já mudei de percurso para evitar algumas famílias com quem não queria ou conseguia falar naquele momento. É mesmo assim, não podemos anular as arestas de trabalhar em saúde e imaginar que somos máquinas.

Mas se ocuparmos realmente o espaço da empatia na rotina do dia-a-dia, o sistema em si também nos acompanhará. E isto passa, sem dúvida, por devolver os doentes às suas famílias ou pessoas próximas. Não somos ilhas e não devemos estar sozinhos. Sobretudo perante situações graves. Por muito carinhosos que sejam os profissionais, não sejamos ingénuos ao achar que podemos substituir a família de alguém que pode e que quer estar presente.

What do you want me to do, to watch for you while you are sleeping?
Then please don’t be surprised when you find me dreaming too.
Such a long time to be gone, and a short time to be there.