Era uma vez uma Princesa que vivia aprisionada.
– Aprisionada onde, mamã? Na torre de um castelo assombrado, vigiada por um dragão?
– Não, filha.
– Aprisionada numa masmorra, acorrentada por um malvado feiticeiro?
– Também não.
– Já sei! Aprisionada num sono profundo, provocado por uma fada renegada?
– Não. A Princesa estava aprisionada por pensamentos tristes. Ela queria ser uma Princesa admirada por todos, fazer parte de um casal mais famoso que os Beckham ou que a Beyoncé e o Jay-Z e fazer gender reveals para milhões de espectadores, ao mesmo tempo que mantinha uma vida normal e anónima. Infelizmente, não conseguia, por causa de um sistema de opressão patriarcal supremacista branco chamado Coroa. E também por causa da lógica, que não permite que duas realidades antagónicas possam coexistir. Isso deixava-a muito triste.
– Eu sou uma criança e isso são conceitos muito complicados para mim. Estava triste só por causa dessas coisas? Não há um vilão?
– Claro que sim. Como tantas princesas, esta também era vítima de uma parente por afinidade.
– A clássica madrasta má?
– Não, a clássica cunhada com opinião diferente sobre vestuário de crianças em casamentos.
– Nunca ouvi falar dessa.
– Tens de ler mais. A cunhada com opinião diferente sobre vestuário de crianças em casamentos consegue ser ainda mais horrível que a madrasta má. Esta foi.
– Matou-a com uma maçã envenenada?
– Não.
– Com um alperce envenenado?
– Não.
– Com um ananás envenenado?
– Esquece a fruta envenenada.
– Então como é que matou a Princesa?
– Não a matou. Foi pior que isso.
– Pior que matar? O quê?
– Durante uma discussão sobre collants das meninas que levam as flores no casamento, fez a Princesa chorar e contou às outras pessoas que a Princesa é que a tinha feito chorar. Horrível. A Princesa ficou com os sentimentos mesmo feridos. Felizmente, foi salva pelo seu príncipe.
– O Príncipe Encantado?
– Não, enconado. Este era Príncipe Enconado.
– Não sou muito nova para usares um palavrão?
– Não, és um artifício retórico numa crónica. Não escangalhes, se faz favor. Ele é enconado porque, em vez de lhe dizer: “Olha, a vida que nós escolhemos é esta. Se não a queremos, trocamo-la por outra. Não podemos é ter as duas ao mesmo tempo”, optou por se sentar ao seu lado e choramingar com ela.
– Não era um príncipe valente.
– Não, era um príncipe Valium. Estava ali como ansiolítico, para a tranquilizar.
– Vais insistir em trocadilhos com o príncipe?
– Desculpa.
– E no fim? Viveu feliz para sempre?
– Ainda não sabemos. O mais provável é que viva alternadamente entre estados de extrema felicidade e profunda infelicidade. Às vezes em simultâneo. Seremos informados através de posts no Instagram ou de entrevistas a apresentadores cada vez menos conceituados, que às tantas esta fita há-de perder o efeito novidade e a Oprah deixará de ter interesse neles.
– Qual é a moral da história? “Quem tudo quer, tudo perde”?
– Não, pois eles não são pobretanas. A moral é: se queres o melhor de dois mundos, faz beicinho em público, para que te considerem uma vítima e tenham pena de ti. Não tarda muito e vais lucrar com isso.
– Não é lá muito edificante, mamã. Não fez de mim melhor pessoa.
– Não me aborreças. Tu nem existes. Fim.
Está-se a operar uma mudança nas histórias de encantar. As sevícias a que as heroínas são sujeitas estão a perder crueldade. A prova é esta narrativa de Meghan Markle, que actualiza o conto “A Princesa e a ervilha”. Na versão de Hans Christian Andersen, uma maltrapilha procura refúgio num palácio, afirmando ser uma princesa. Os Reis dão-lhe guarida. Mas, para se certificar de que ela diz a verdade, a Rainha manda colocar uma ervilha debaixo do colchão onde a rapariga se vai deitar. No dia seguinte, ela queixa-se de não ter conseguido dormir por causa do desconforto causado por uma deformidade no colchão. Com essa hipersensibilidade, conclui a Rainha, só pode mesmo tratar-se de uma princesa.
Meghan Markle consegue ser ainda mais susceptível. Para se sentir incomodada, não precisa de um motivo real, ainda que ténue. Basta dizer que dormiu mal porque sonhou que o almoço do dia seguinte ia ser ervilhas e ela está a fazer uma dieta sem leguminosas.
Neste conflito entre a Casa Real e os Duques de Sussex, em princípio não devemos acreditar em ninguém. De um lado, há a instituição obcecada em controlar os seus membros e a sua imagem. Do outro, temos a mulher que, numa entrevista vista por milhões de espectadores no mundo inteiro, se queixa de ser silenciada.
É difícil acreditar que a Família Real não seja impiedosa, mas também é difícil acreditar que Meghan Markle tenha mesmo achado que a Família Real era apenas uma família real, só que grafada com maiúsculas. Não é. É uma família tão normal quanto a família Corleone. Um bocadinho menos severa, talvez, mas com um conceito de tranquilidade doméstica igualmente bizarro.
A surpresa de Meghan Markle com as idiossincrasias da realeza mostra que ou ela é sonsa, ou é ingénua. Mas, lá está, com um tipo de ingenuidade própria dos contos de fadas. É a ingenuidade da Capuchinho Vermelho quando acredita que o Lobo Mau, por estar de óculos e de touca, é a sua Avozinha. Na vida real, a esse tipo de ingenuidade chama-se idiotice. E, se bem que tal nível de idiotice não seja inaudito em aristocratas, geralmente só se atinge ao fim de quatro ou cinco gerações de consanguinidade. Meghan Markle não tem essa desculpa.