Apenas os idiotas e desmemoriados podem consentir-se o luxo de esquecê-lo: para entender o tempo é preciso percorrê-lo para trás, começando pelo fim. Nunca pelo seu início, pois não é para nós uma página em branco, mas uma página já escrita, e só olhando retrospectivamente a realidade conseguimos perceber o seu sentido.

A rota de regresso do Argo, por exemplo, é bem diferente da tomada na ida, mas igualmente desconhecida. Não poderia ser de outra forma, devido a essa regra da transformação humana que exige novas jornadas para novos portos, porque, uma vez alcançada a meta, verdadeiramente diferentes e novos somos nós.

O Argo não atravessa agora, pois, as Simplégades e o Bósforo, mas desliza ao longo do Danúbio para desaguar no Adriático donde, seguindo o curso do Pó e do Ródano, chegará ao Mar da Ligúria e ao Tirreno. As mesmíssimas águas em que Homero colocou as andanças de Ulisses durante o seu νόστος (nóstos), a viagem de regresso a Ítaca no final da Guerra de Troia. E, na sua navegação, os Argonautas encontram os mesmos protagonistas da Odisseia: Circe, Cila e Caríbdis, Tétis, as sereias, até aportarem à ilha dos Feaces, onde reina Alcínoo, pai de Nausícaa, e onde Jasão e Medeia celebrarão a boda. Lugares e personagens que o leitor, antigo ou moderno, já conhece e nos quais reconhece um traço de si mesmo.

Teríamos de esperar por Proust para que se iluminassem os enganos do tempo cronológico e do tempo narrativo. E, sobretudo, o intrincado jogo de espelhos da nossa própria memória: “Do mesmo modo que os diferentes acasos que nos fazem conhecer certas pessoas não coincidem com o momento em que as amamos, mas podem ocorrer – superando-o – antes de começar e repetir-se depois de terminado, assim também as primeiras aparições que protagoniza nas nossas vidas uma pessoa destinada a amar-nos mais tarde, adquirem aos nossos olhos, retrospectivamente, o valor de um presságio.”

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Todos nos lembramos do delicado amor de Calipso por Ulisses, da desapiedada sedução de Circe, da perigosa atracção das sereias ou da inocência e timidez de Nausícaa. Recordamo-los a ponto de os tornarmos indissociáveis do enredo da Odisseia e do enredo das nossas vidas, a partir do momento em que, ainda crianças, ouvimos pela primeira vez a história de Ulisses.

É-nos inconcebível uma existência dessas personagens – fosse ela amável ou odiosa, benevolente ou cruel – anterior àquilo que Homero sobre elas narrou. A este engano do tempo narrativo soma-se o engano pessoal do tempo cronológico das nossas vidas, que são irrepetíveis. O nosso conhecimento da Odisseia tornará as suas personagens, para sempre, indissociáveis ​​da nossa memória pessoal do poema, memória que apenas nós, e mais ninguém, temos, como quando, ainda crianças, suspiramos de amor junto a Nausícaa ou, já adultos e sozinhos como Circe, nos deixamos levar por uma noite de sexo sem remorso e sem amor.

Agora a ilha dos Feaces ou Cila e Caríbdis apresentam-se-nos como aqueles lugares conhecidos por todos, mas que apenas nós sabemos que estarão para sempre ligados a uma só pessoa; como aquelas palavras que, embora de uso comum – um olá, por exemplo – constituíram o léxico secreto de uma das nossas histórias de amor e que jamais pronunciaremos para outros, preferiríamos morrer.

A viagem do Argo, Medeia e Jasão, os Argonautas, alguns dos quais participariam depois na Guerra de Troia, situam-se cronologicamente umas quantas décadas antes da Ilíada e da Odisseia – “uma lenda bem conhecida de todos”, é assim que Homero se lhe refere no livro XII da Odisseia.

No entanto, foi o autor da Argonáutica, Apolónio de Rodes, quem escreveu a viagem do Argo de maneira tão sublime, quinhentos anos após Homero – quem quer que ele tivesse sido. E quem sabe quantos terão tentado antes dele, destinados a permanecer sem nome e sem palavra, condenados pela história ao fragmento ou ao eterno oblívio.

Apolónio, talvez capaz de antecipar Proust em dois mil anos, sabia. Sabia que, referindo Circe, Calipso, as Sereias, a mente do leitor correria para as obras de Homero, confundindo-as com um antes que não existe e que simultaneamente existe apenas graças à arte narrativa. O seu objetivo não é reconstruir histórica ou literariamente a vida e a psicologia das personagens antes do encontro com Ulisses – não está minimamente interessado, como diríamos hoje, em prequelas.

Pelo contrário, Apolónio de Rodes quer brincar, hábil prestidigitador, com as ilusões, as facécias, os espaços cheios e vazios criados pela memória do leitor. Ele sabe bem que, mencionando a ilha de Calipso ou o rei dos Feaces, os Argonautas ter-se-iam tornado três vezes protagonistas: da sua história, da de Ulisses e da que se teceu na memória do leitor.

Ulisses, a sua viagem, as suas aventuras, estão por todo o lado, sem nunca serem mencionados porque, cronologicamente, não aconteceram ainda. Mas a sua ausência transforma-se numa aguda presença. De quantas pessoas poderemos dizer o mesmo?

Assim, a viagem de regresso narrada no livro IV da Argonáutica parece ao leitor uma espécie de Em Busca do Tempo Perdido do que aconteceu antes da Odisseia, quando na verdade se trata do Tempo Reencontrado.

Por esta razão, a narração do regresso do Argo consegue ir bem para lá dos limites da singular experiência literária de Medeia e Jasão para se entrançar com o horizonte de cada homem e mulher que, seja em que época for, tenha empreendido uma viagem de mudança e amadurecimento rumo à sua Ítaca interior.

Somos quem somos e como somos graças a tudo o que nos aconteceu desde o dia em que viemos ao mundo. E seremos um pouco diferentes amanhã. Não um relâmpago, não uma casualidade, mas uma consequência do nosso agir – e de todos quantos, generosos, consentem que se repita a surpresa da luz sobre as ladeiras.

Graças à navegação retrospectiva do Argo somos capazes de recompor os fragmentos dispersos da nossa vida viajando eternamente de um porto a outro. Apolónio sabia: a Odisseia é o navio-almirante – único, imperial e insubstituível. Os Argonautas são a nossa leve balsa que nos salva a vida.