O jogo

Um jogo é algo muito difícil de definir, mas vamos defini-lo, para o que aqui nos interessa, como uma actividade sujeita a regras, desenrolada entre dois ou mais participantes, em que cada um busca a vitória sobre os demais. A política é um jogo complexo, confuso, e complicado, sujeito a regras, algumas escritas, outras não escritas. É sobre estas regras que eu gostaria de falar.

Usando um exemplo que me é caro, o jogo do xadrez, temos que há diferentes classes de jogadores. Capablanca, Kasparov, e Carlsen são dos melhores jogadores de xadrez de sempre; mas não há uma única regra do xadrez que aqueles Gigantes conheçam melhor do que o Carlitos, de 14 anos, que é o melhor jogador da sua turma. Todavia, se o Carlitos jogar um milhão de jogos com cada um deles, o Carlitos vai perder três milhões de jogos. Até mesmo Capablanca, falecido em 1942, é perfeitamente capaz de derrotar o Carlitos sempre, sem excepção, a partir do Além, sem o Carlitos sequer perceber o que se está a passar no tabuleiro.

Deste exemplo flui que não basta conhecer as regras do jogo para nele participar com o mínimo de sucesso. Mais do que saber as regras (e algumas são difíceis de compreender), é necessário conhecimento das aberturas, da táctica, da estratégia, dos finais, de toda a filosofia do jogo. É necessária experiência, presença, resiliência, memorização, e talento. Acima de tudo, é preciso ter fibra moral para ser derrotado milhares de vezes sem perder a vontade de ganhar: os seres humanos pouco aprendem com as vitórias.

Se entendermos que a política é um jogo, então também na política é preciso ter conhecimento, não só das regras, mas também das tácticas e das estratégias de ataque e de defesa, de toda a filosofia do jogo, e é essencial estar permanentemente dotado de situational awareness, ou conhecimento situacional, num cenário em constante mutação, com adversários em constante adaptação.

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Será possível aos conservadores jogar o jogo da política? E terão os conservadores a disposição para, mais do que conhecer as regras da democracia, entender a filosofia do jogo e sublimar as inevitáveis derrotas?

«Deixem-me em paz!»

Não sendo eu académico, nem especialista em ciência política, nem filósofo, parece-me claro que o xadrez político é um jogo assimétrico disputado não já entre os tradicionais contendores da Direita e da Esquerda, mas entre aqueles que prezam o indivíduo e aqueles que menosprezam o indivíduo, entre aqueles que acreditam que o Estado tudo pode, e aqueles que acreditam que deve haver redutos (a família, a cama, a consciência) imunes à intervenção estatal.

«Deixem-me em paz!» é hoje um grito de desespero libertário, liberal-clássico, e conservador. Escutado em todas as suas variantes, «Deixem as crianças em paz!», «Deixem as famílias em paz!», nós percebemos instintivamente que o grito parte de uma pessoa de direita; pelo menos, de uma pessoa que não é de esquerda; ou ainda, de uma pessoa que, chocada com os desenvolvimentos culturais e sociais dos últimos dez, quinze anos, «já» não é de esquerda.

E os próprios moderados, constituintes do centro político, ouvem esses gritos de desespero como gritos libertários, gritos liberais-clássicos, gritos conservadores, a valorar com um grãozinho de sal. Não interessa se o autor do grito é a favor do estado social, a favor de direitos iguais para todas as minorias, a favor do que quer que seja. A partir do momento em que o desespero se transforma em grito, essa pessoa é atirada para o «cesto de deploráveis» de que falava Hillary Clinton. Os individualistas são descartados para a periferia do sistema de crenças, do caldo de cultura que permeia a sociedade: são prontamente amalgamados na “direita radical”, na “extrema-direita”, no “ultra-conservadorismo”.

A hegemonia

Estamos aqui na presença da Hegemonia de Gramsci: uma unanimidade quase perfeita quanto às questões culturais e sociais que enformam as nossas vidas. Gramsci notou que a supremacia e o controlo de um grupo ou classe social sobre os restantes operam de duas maneiras: 1) através da “dominação”, pela qual o comportamento e as escolhas são determinados externamente, coercivamente, mediante a aplicação de castigos e recompensas; e 2) através de uma “liderança intelectual e moral”, que funciona interiormente, intimamente, assente no consentimento do controlado, e moldando as convicções pessoais do indivíduo à imagem das normas dominantes. Esta liderança intelectual e moral constitui a hegemonia cultural gramsciana, uma ordem em que é falada uma linguagem moral-social comum, na qual uma mundividência ou visão da realidade é dominante e influencia todos os modos de pensamento e de comportamento.

A hegemonia é assim o predomínio obtido por um grupo ou classe social por via do consenso, por contraposição à força. E enquanto a “dominação” é realizada, essencialmente, através da máquina coerciva do Estado, a “liderança intelectual e moral” é obtida principalmente através das inúmeras maneiras pelas quais as instituições da sociedade civil (imprensa, escolas, universidades, redes sociais, etc.) operam para moldar, directa ou indirectamente, as estruturas cognitivas e afectivas pelas quais percebemos a realidade.

Ou seja, “aqueles que não são de esquerda”, sempre que contrariam a hegemonia, têm o ónus intelectual, moral e social de provar que estão absolutamente certos, enquanto “aqueles que não deixam de ser de esquerda”, a maioria, ao se conformarem com a hegemonia, nada têm a provar: está-lhes aberta a via mais fácil, o caminho de menor resistência.

A deficiência da Direita

A que se deve esta hegemonia da esquerda, que influencia a própria direita? Como já outros bem notaram, deve-se à seguinte lacuna intelectual da direita política: uma natural falta de curiosidade pela natureza socio-histórica das circunstâncias políticas. Ninguém parece questionar ou explorar as razões pelas quais a esquerda está em constante ascensão cultural e politicamente, enquanto a direita está consignada à franja política. A direita carece de uma Patologia para explorar o poder dos seus oponentes, e não manifesta grande interesse em desenvolvê-la.

A esquerda, graças em boa parte ao Marxismo, com as suas inúmeras permutações ideológicas, desenvolveu uma grande quantidade de críticas sociais e económicas que constituem a fundação das suas estratégias políticas. As organizações de Esquerda são tipicamente criadas com missões cujas estratégias operacionais se baseiam em críticas às relações de poder socioeconómicas, e a aparentes ou reais injustiças e fraquezas da sociedade.

Já a direita regista e critica muito bem as tolices da esquerda e as suas consequências nefastas, mas raramente se dedica a explicar as causas (próximas e últimas) dessas tolices, e muito menos as razões pelas quais elas sistematicamente se tornam normativas na sociedade.

A direita está assim em tremenda desvantagem perante a esquerda. Isto não espanta: a «longa marcha pelas instituições», a que apelaram Rudi Dutschke e Herbert Marcuse, foi um pleno sucesso. É hoje cada vez mais difícil encontrar um jornalista, um académico, um artista que não seja de esquerda. É por isso dificílimo a um intelectual de direita (e há muitos neste Congresso) encontrar um lugar ao sol aos olhos das pessoas comuns.

É também certo que as pessoas que são de direita tendem a ter carreiras exigentes, famílias carentes da sua presença, e reputações a manter, enquanto a nova esquerda usa os jovens e aqueles que pouco têm a perder como tropas de choque ideológicas, dirigidas por líderes impiedosos. A direita não está preparada para combater nestes termos, em tudo contrários ao seu ethos pacífico, conservador e conciliatório — mas pode usar as armas da esquerda contra si própria, assim as domine cabalmente.

A linguagem

O abandono da “não-esquerda” da luta cultural ampliou a vantagem da esquerda. Recordando a “novilíngua” do «1984» de Orwell, criada e mantida pelo Ministério da Verdade em que trabalhava Winston Smith, o desgraçado protagonista, o objectivo do Partido totalitário era dominar a língua, controlando, contraindo, e erradicando palavras, de maneira a que as pessoas nem sequer conseguissem praticar crimes de pensamento, porque não haveria palavras aptas a cometê-los. Assim se produzem súbditos dóceis.

O poder das palavras é essencial, e a Esquerda domina-o muito bem. Realidades, palavras, e conceitos que diariamente nos entram pelos olhos e ouvidos são da autoria da esquerda. Quem não quiser usar esses termos, essas palavras, esses conceitos, não consegue falar das realidades subjacentes, porque não existem alternativas válidas: a direita não as fornece.

Temos que aceitar este facto com tranquilidade. Temos que perder a vergonha que sentimos por não termos uma língua nossa, e usar a linguagem política que já existe: a linguagem, os conceitos, os escritos da esquerda. É assim a vida. A direita já perdeu demasiadas partidas de xadrez político, e tem que compreender, mais do que as regras do jogo, as tácticas e as estratégias desse mesmo jogo. Foi o inimigo que as criou? Pouco importa — são as que existem.

Que fique, porém, claro: dominar e utilizar a linguagem da esquerda não significa copiar os seus métodos, nem espelhar os seus objectivos. A direita é diferente da esquerda, tem valores morais diferentes da esquerda, e é bom que assim se mantenha. Compreender não é imitar.

Relembro Frederick Douglass, o escravo americano foragido que, com a sua brilhante oratória e impecável escrita, conseguiu influenciar determinantemente o movimento abolicionista americano, a Guerra Civil centrada em grande parte nesse movimento, e a subsequente Reconstrução do país. Que língua usou? A língua inglesa, a língua dos senhores, a língua daqueles haviam torturado e violado o seu povo. Era a língua que tinha ao seu dispor. Foi a sua única arma.

O Conservadorismo

Eu diria que qualquer conservador tem o dever moral de entender as regras, as tácticas, e as estratégias do jogo político, mais do que se deixar levar por elas.

Para Edmund Burke, o fundador do conservadorismo moderno, a sociedade não se baseia apenas num contrato entre os vivos. Antes representa uma associação entre os mortos, os vivos, e aqueles que estão por nascer. Aos vivos incumbe o dever de custódia da sociedade, na perfeita consciência de que ela não lhes pertence. Como disse Roger Scruton, a sociedade é uma herança partilhada pela qual aprendemos a circunscrever as nossas exigências, a ver nosso próprio lugar no mundo como parte de uma cadeia contínua de dar e receber, e a reconhecer que as coisas boas que herdámos não são nossas para saquear, são nossas para respeitar e salvaguardar em favor daqueles que hão-de vir.

Eu não tenho dúvidas de que todos dentro desta sala concordamos com esta ideia, e que todos desejávamos que os que estão fora desta sala comungassem dela. Todavia, sabemos que esse não é o caso. Lá fora reina a distopia da utopia; tudo o que é velho é para desconstruir e para demolir, e tudo o que é novo é para abraçar acriticamente, obrigatoriamente, permanentemente, até o novo se tornar velho, e o ciclo de destruição criativa recomeçar.

Temos que pensar, temos que escrever, temos que construir e apresentar ao mundo uma mundividência que contrarie a inaceitável hegemonia em que vivemos. Para mim, a solução é o conservadorismo liberal, ou o liberalismo conservador, como preferirem.

Aos meus Amigos liberais progressistas ofereço as palavras do nosso João Pereira Coutinho: «Todos somos conservadores. Pelo menos, em relação ao que estimamos. Família, amores, amigos. Lugares, livros, memórias até».

Todos, sem excepção, somos conservadores. E como conservadores, temos a obrigação de respeitar o passado, entender o presente, e construir o futuro.

Não permitamos que a nossa disposição natural para a temperança nos faça abdicar de engajar no jogo político — um jogo que por vezes é sujo, que é sempre exigente, e que implica saborear a derrota (a derrota é a única coisa que está garantida à partida). Não nos iludamos com o facto de que temos razão — termos razão em nada alivia as vítimas, tantas delas inocentes, causadas pelo adversário. E, acima de tudo, não tenhamos receio de compreender as esquerdas e as suas línguas, as suas ideologias, as suas utopias — compreender o pensamento da esquerda é compreender a hegemonia; e, infelizmente, compreender a hegemonia é compreender o mundo em que vivemos.

A nossa linguagem, a linguagem conservadora, só ganha sentido em cotejo com a linguagem dominante. Quem nos dera não termos que ser conservadores! Quem nos dera simplesmente ser, sem termos que nos preocupar com o jogo político e com as suas vítimas: as mortas, as vivas, e as que estão para nascer. Talvez um dia nos possamos dar a esse luxo. Mas esse dia não é hoje.

Este texto corresponde, com algumas alterações, à intervenção feita no dia 29 de Outubro de 2022, no Porto, no âmbito do “Congresso Portugal no Rumo Certo”, organizado pela Associação Conservadores com Norte.

(O autor escreve segundo a grafia antiga).