Os últimos tempos têm sido de contagem de espingardas dentro da Iniciativa Liberal. A abrupta demissão de João Cotrim Figueiredo da presidência do partido a poucos meses de uma Convenção Nacional electiva e a imediata chegada-à-frente do delfim Rui Rocha como seu sucessor dinástico colocaram o partido em polvorosa, e com pouquíssimo tempo para preparar uma candidatura opositora (que existe). A coisa estava bem planeada. Mas foi uma facada nas costas do liberalismo.

As justificações para a demissão do actual presidente foram pífias (para ser caridoso), mas boa parte do partido aceitou-as com espantosa naturalidade. Já a apresentação within the hour de um sucessor munido de discursos, linha gráfica, e apoios (incluindo o do presidente demissionário) devidamente preparados, aliada à alegação do seu desconhecimento prévio da demissão, logo sucedida da confissão de que afinal essa demissão lhe fora secretamente anunciada duas semanas antes, colocam Rui Rocha num lugar muito desagradável em termos éticos e políticos.

Haveria porventura forma mais deselegante de “tirar o coelho da cartola”? Dificilmente. Porém, e isso terá o seu mérito, o petit comité que chefia a Iniciativa Liberal conseguiu uma inaudita proeza: “tirou a cartola do coelho” e mesmo assim colheu a ovação do público (ainda que não generalizada).

Esta débâcle originária irá ensombrar toda a presidência de Rui Rocha. Neste triste País de “inverdades” e imoralidades, nunca a IL (até à eventual rendição de Rocha de modo mais probo e translúcido do que o da sua acessão) poderá clamar por transparência, ou meritocracia (palavra dúbia, mas frequente), ou democracia, ou Verdade, sem enfrentar a gargalhada geral, polvilhada por justas acusações de hipocrisia.

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Falsus in uno falsus in omnibus: a doutrina de que a provada falsidade de parte dum depoimento infecta a totalidade pode não ter aplicação em sede judicial, mas vale plenamente na vida pública, onde tudo fica documentado, e onde qualquer falha de carácter constitui uma pecha permanente. Na política o pecado é para sempre, sendo a redenção mais característica dos partidos totalitários do que dos partidos liberais.

Um partido que já corria sérios riscos de se transformar numa anedota, quer pelo “liberalismo em toda a linha” que serenamente exclui liberdades individuais, quer pela distinção entre “liberdades bonitas” e “liberdades feias”, quer pelo sórdido namoro com o “wokismo” e a correspondente genuflexão perante a esquerda cultural, terá agora o acrescido handicap de ser liderado por um homem que poderá ser muitas coisas boas, seguramente, mas jamais um actor exemplar no palco principal da política portuguesa. Será não mais do que qualquer outro político, será tão-somente mais um político.

A IL perdeu publicamente a inocência (inocência, que há muito havia perdido internamente, como se sabe). Mesmo assim, multiplicam-se os apoios internos a Rui Rocha, o “delfim de Cotrim”, e é expectável a sua eleição na Convenção Nacional de Janeiro de 2023. Como é possível este paradoxal estado de coisas no único partido português assumidamente liberal? A força política que exige concursos públicos e transparência para tudo e mais alguma coisa (e muitíssimo bem) certamente deveria exigir mais aos seus líderes. Certamente deveria sustentar com igual fervor dentro de portas a tal meritocracia que protesta para fora, especialmente quando o sufixo “cracia” está tão em evidência por se tratar do prospectivo presidente do partido, responsável máximo por guardar os seus valores.

Caberia aos liberais, acima de quaisquer outros, defender e abraçar — mais do que a ética, mais do que a transparência, mais do que a liberdade política e a liberdade de escolha dos seus membros, mais do que todos esses Valores que se pretendem universais (mas que estão longe de sê-lo) — a incerteza criativa, a imperfeição auto- correctiva, a Mão Invisível dos mercados aplicada às escolhas políticas.

Mas parece que não, parece que a actual direcção da IL prefere auto-perpetuar-se, como um meme de Dawkins, através de uma comissão executiva semelhante à anterior, que investe na “continuidade” e na “estabilidade” como se estas fossem fins em si mesmos. E parece haver uma “vaga de fundo” que pretende mostrar Rui Rocha como tão consensual e presidenciável como João Cotrim Figueiredo ou Carlos Guimarães Pinto. É claro que essa “vaga de fundo” não é rochista, porque não há rochistas. Haverá cotrinistas, e eu próprio me tive por carlista enquanto cri que Carlos Guimarães Pinto iria combater os interesses que esganam Portugal. Mas rochistas, que eu saiba, não existem fora da família Rocha.

Num ano, Rui Rocha entrou para o partido, tornou-se comissário nacional, foi pessoalmente ungido por Cotrim como cabeça de lista por Braga nas legislativas de 2021, e tornou-se deputado. Mas não se lhe conhece qualquer realização ideológica no campo do liberalismo além de uma louvável carreira como provocador anti-regime no twitter, à qual infelizmente pôs fim quando ingressou na IL. Ademais, não há por Rui Rocha a paixão ou o amor que havia por Carlos Guimarães Pinto, ou a gratidão e o alívio que houve quando João Cotrim Figueiredo se tornou o primeiro deputado liberal e assumiu a direcção após a demissão (essa, sim, súbita) do anterior presidente.

É claro que os apoiantes de Rocha não se reduzem a carreiristas ávidos das prebendas e sinecuras que a direcção da IL (já) pode conceder mais ou menos “meritocraticamente”. Os eleitores internos de Rocha são maioritariamente pessoas sinceras, que honestamente acreditam que ele é o melhor para o partido, precisamente por representar a continuidade de Cotrim e por merecer o seu apoio. Não estão dispostas a conceder que o partido no qual ingressaram e que louvaram a familiares e amigos não é assim tão “liberal” como eles próprios pensavam (e há que manter a face). A IL, como Carlos Guimarães Pinto a “fez” (e fê-la bem), é hoje uma “marca política”, um “sinal distintivo da política”, uma “brand política”, que comanda a lealdade de mais de seis mil membros e de centenas de milhares de eleitores.

E onde há muita lealdade há pouca racionalidade e complexidade e há um forte instinto de empatia acrítica e de desculpação. Em Janeiro de 2016, Donald Trump disse, com alguma razão, que poderia matar alguém a tiro no meio da Quinta Avenida e não perder eleitores. Também João Cotrim Figueiredo pode fazer este “truque” a favor de Rui Rocha e perder poucos eleitores: muitos aceitarão tudo o que Cotrim lhes disser, porque ele ainda comanda a sua lealdade, e ele sabe-o bem. O que é assustador a muitos níveis.

Não me sai da cabeça uma passagem de Ali Amjad Rizvi em “The Atheist Muslim” (2016), referindo-se ao gáudio com que parte da comunidade paquistanesa no Canadá, pessoas com formação académica superior que faziam as suas vidas no Ocidente, encarou o 11 de Setembro, especialmente a queda de inocentes para o abismo, em fuga, pelo suicídio, às chamas nas Torres Gémeas, e à justificação que ofereceram para os ataques como um acto de quitação pela política externa “anti-muçulmana” dos EUA: «Sou lembrado de todos aqueles grandes filmes de Scorsese dos anos 90, como Goodfellas e Casino. Todas as personagens desses filmes são escumalha, e não se encontra uma boa pessoa num raio de quilómetros. Mas você dá por si a torcer por aquele cuja história conhece melhor. É simplesmente uma questão do que lhe é apresentado. A lealdade, ao que parece, é função da proximidade».

Algumas declarações de interesses:

1) A minha lealdade política nunca foi para com “gestores políticos”, sempre foi para com ideias e valores: quando um político propositadamente desrespeita esses valores, deixa de contar com a minha consideração.

2) Discordo veementemente dos que querem transformar a IL num partido como os outros, com as mesmas deficiências e vícios dos outros: entendo que a IL está obrigada a ser um exemplo, e diariamente lutar (e falhar) por ser o partido político perfeito.

3) Acusar-me-ão de “idealismo” dos valores, por contraposição ao “pragmatismo” dos votos: direi apenas que eu e tantos outros “estamos” na política para realizar ideias e valores, e não para apoiar “máquinas de votos”. O meu pragmatismo serve apenas e só os valores em que sinceramente acredito, e não os cargos de quem seja.

4) Quem “deu munições” aos adversários políticos da IL foram os “donos do partido” envolvidos neste lamentável espectáculo, ao presumirem a indiferença, a tolice, e o silêncio dos membros, dos eleitores, da imprensa, e dos adversários. O silêncio é cúmplice desta afronta aos valores liberais, e há muitos liberais, entre os quais me conto, que não compactuam com essa afronta e que dela se querem demarcar.

5) Dir-me-ão que a porta da rua é serventia da casa: respondo que sairei quando quiser e não antes. O partido é meu e dos milhares de membros que o compõem — não é dos fundadores, não é do presidente, não é dos dirigentes, não é sequer dos eleitores —, é das bases. Muitas das melhores pessoas que conheço são militantes da Iniciativa Liberal e amam a Liberdade com tudo o que ela implica. No dia em que essas pessoas saírem da IL, um meme qualquer terá que mudar o nome do partido. Será um dia triste.

Membro n.o 460 da Iniciativa Liberal