Nas últimas semanas muito se tem falado sobre a crescente falta de médicos de família no nosso país.

Este é um problema estrutural da sociedade portuguesa a que parecemos dar escassa importância. Um problema evidente, com graves efeitos no presente e pesadas consequências no futuro.

Se seguirmos as notícias publicadas no último meio ano, o balanço não é animador – 100 mil portugueses perdem cobertura no serviço público a cada dois a três meses.

Não se trata, apenas, do incumprimento de metas politicamente anunciadas. Trata-se da derrogação efetiva da mais importante premissa de igualdade dos cidadãos perante o Serviço Nacional de Saúde – garantir o seu acesso aos cuidados de saúde primários.

Esta perda progressiva, que o anúncio torrencial de vagas para especialistas de medicina geral e familiar parece não colmatar, a par da ausência de resposta da capacidade instalada, vai empurrando os cidadãos para as urgências hospitalares. Ainda recentemente as televisões trouxeram-nos exemplos de unidades com filas à porta desde madrugada, em que várias dezenas de cidadãos tentam ter acesso às escassas duas dezenas de consultas diárias para utentes sem médico de família.

As urgências acabam por ter de suportar esta pressão desnecessária, funcionando como tubo de escape dos cuidados primários, porque, como é evidente, os utentes ainda não tomam a precaução de adoecer, apenas, quando têm consulta marcada.

Some-se a este problema a aparente desmotivação que grassa no setor. A última década conseguiu derrotar o que parecia improvável – a reforma dos cuidados de saúde primários e a transformação capacitadora de unidades e transversalmente dos seus profissionais. Pagamentos de incentivos, migração de modelos, carreiras, entre outros pontos de discórdia, têm agravado a tensão com a tutela.

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A emergência de uma nova forma de organização de cuidados, as Unidades de Saúde Familiar, acarretou, em muitos locais do território, o encerramento das extensões de Saúde. A concentração e otimização dos recursos humanos disponíveis ditou esta opção, mas o impacto do fecho destas pequenas portas de acesso ao SNS devia ser estudado.

Que populações desapareceram do radar das unidades? Como foi incrementada a resposta em territórios de baixa densidade ou do interior? Que efeitos conexos – como a deslocalização de farmácias e o encerramento de postos de medicamentos – ocorreram? O que pensam os cidadãos de tudo isto e, sobretudo, que modelo é que preferiam?

E talvez seja, pelo menos, simpático perguntar aos cidadãos, aos utentes, o que pensam, o que valorizam, já que são os nossos impostos que mantêm o sistema vivo, ainda que as somas brutais que pagamos não nos permitam usufruir de serviços estatais com a qualidade e a disponibilidade adequada correspondentes.

Por fim, o que esperar da direção executiva do SNS? Temo que a prolífica abertura de Unidades Locais de Saúde (ULS) só leve ao agravamento de um paradigma de prestação de cuidados focada no hospital, ficando as unidades de saúde da família (USF) e as unidades de cuidados de saúde personalizados (UCSP) relegadas para segundo plano. Aliás, revisitem-se as reservas que, na última década, o Tribunal de Contas manifestou sobre o funcionamento das ULS e sobre a ausência de ganhos efetivos para os utentes.

As Unidades Locais de Saúde (ULS) só funcionarão bem se os Cuidados Primários, nas suas zonas de intervenção, funcionarem excelentemente. E o que está à vista não é promissor.