Vivemos tempos carregados de ironia e karma. Ironia, porque os ricos estão mais pobres e alguns dos pobres estão mais ricos. Estou a falar de países, mas, claro, aplica-se também às empresas e à sociedade de uma forma geral. Quanto ao karma, o tempo o dirá a quem se vai aplicar mais. Uma coisa é certa, o karma está próximo.

Perante este cenário de, como dizer, mudança – para não usar uma palavra mais sofisticada –, as empresas enfrentam uma escolha existencial. Ou abraçam o “capitalismo puro”, todo em prol do acionista, ou concordam com as responsabilidades atuais inerentes e tomam medidas para satisfazer objetivos sociais (manter emprego) e ambientais.

A segunda opção parece-me a mais equilibrada, porque a mentalidade de “capitalismo do acionista”, que dá prioridade aos lucros a curto prazo acima de tudo, não vai correr bem: quer pelos consumidores, que hoje dispõem de informação credível e sentido crítico, penalizando empresas que apresentam elevados aumentos anuais dos lucros e os seus produtos ou serviços sejam considerados caros pelos consumidores, quer pelos governos, que irão no futuro taxar ainda mais estas mais-valias, como uma ótima forma de angariar receita fiscal no curto prazo.

Depois temos, ainda, de juntar aqui mais uma importante pergunta para a qual não temos resposta. Como vai ocorrer a curva da recuperação económica? Será em L, V, U ou W?

Esta dicotomia entre acionistas e stakeholders pode parecer severa, mas não há alternativa. Os nossos sistemas sociais, que têm muitas coisas boas em algumas áreas, estão a falhar, como é o caso recente da saúde. As nossas economias já não estimulam um crescimento inclusivo para todos e a verdade é que as gerações mais jovens, simplesmente, não aceitam que as empresas procurem lucros à custa de um bem-estar ambiental e social mais abrangente. Uma economia de mercados livres é essencial para se produzir um desenvolvimento a longo prazo e progresso social. Mas no seu formato atual, o capitalismo chegou ao limite. A não ser que se reforme, não conseguirá sobreviver.

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Não se trata de uma escolha entre o bom e o mau, ou o certo e o errado. Acima de tudo, é preciso afastar desta análise a política e não a confundir como uma manobra para diminuir a pressão de uma esquerda em ascensão.

Desde 1997, que os princípios apoiados pela Business Roundtable colocaram os acionistas em primeiro lugar. É revolucionário, que, recentemente, um grupo de CEO tenha abandonado este princípio. É também verdade que, a não ser que estas palavras sejam traduzidas em ações concretas, esta mudança de princípios será de pouca dura.

As ideias do capitalismo dos stakeholders esclarecem o Manifesto de Davos, assinado no recém-criado Fórum Económico Mundial. A abertura do manifesto declarava que “o propósito da gestão profissional é servir clientes, acionistas, colaboradores, além de sociedades, e harmonizar os diferentes interesses dos stakeholders”.

O Manifesto de Davos teve as suas raízes na recente experiência pós-guerra, mas foi também a recuperação de um arco histórico mais abrangente. As empresas sempre foram unidades sociais, assim como unidades económicas. De facto, as empresas foram criadas pela primeira vez na Europa medieval como veículo independente para atingir progresso económico, mas também para criar prosperidade para a sociedade, ou desenvolver instituições para o bem público, como hospitais e universidades. Ainda recentemente, a 24 de agosto, celebrámos os 200 anos da revolução liberal em Portugal e a Constituição de 1822, que criou as bases da organização da nossa sociedade atual.

Contudo, a visão do que é uma empresa não foi abraçada de igual forma por todos e o resultado geral foi a deterioração da ligação entre negócios e sociedade. Todos sabemos que os governos, perante novos desafios sociais e económicos, são frequentemente incapazes de fazer os investimentos necessários para dinamizar a economia e optam pela solução mais simples: taxar as empresas.

Igualmente e não menos importante, hoje sabemos que se a utilização dos recursos naturais do nosso planeta se tivesse mantido nos níveis dos anos 70, provavelmente não teríamos agora de enfrentar uma crise climática. Segundo a Global Footprint Network, 1969 foi o último ano em que o impacto ecológico da humanidade foi sustentável. Agora, em 2020, usamos o dobro dos recursos do que é sustentável.

Esta é a última oportunidade deste século para as gerações futuras. Como os jovens de todo o mundo nos têm lembrado, está na hora de retificar o nosso erro histórico. A única forma de salvar o capitalismo é voltar ao modelo de stakeholder que descobrimos e depois esquecemos, há décadas. Todavia, com a situação social, económica e ambiental agora várias vezes pior do que estava, precisamos de fazer mudanças que vão para além de meras palavras. Como fazê-lo?

Não é uma resposta fácil, mas, para começar, as empresas e os seus acionistas devem concordar numa visão a longo prazo dos seus objetivos e desempenho, em vez de deixarem os resultados trimestrais e a existência, ou não, de lucro ditar tudo.

Lembro-me de uma vez, quando a EAD ainda pertencia ao Grupo CTT, de ter sido chamado a um focus group e me terem perguntado qual a minha função na empresa enquanto CEO. A minha resposta foi: garantir a sustentabilidade da EAD no médio prazo! Ficaram de boca aberta. Nunca geri em função do lucro imediato, mas sempre fui recompensado com ele.

Portanto, acredito que se devem fazer compromissos mais concretos para pagar preços, salários e impostos mais justos. Tudo isto, considerando integrar métricas ambientais, sociais e estatais nos relatórios e contas e não em outros documentos muito bonitos que poucos leem, valorizando e incentivando fiscalmente os que têm melhores resultados globais. Estou a falar da criação de um indicador compósito, que tenha todas estas vertentes em consideração.

Estas medidas exigirão mudanças. Mas as alternativas serão ainda mais difíceis e potencialmente muito mais complicadas de gerir, pois as empresas serão forçadas por novas gerações de colaboradores, consumidores e eleitores a mudar a forma como funcionam, quer queiram quer não. Muitas, as rejeitadas por estes grupos, podem definhar lentamente. Ou os governos podem começar a ter uma mão mais pesada com novas normas, reafirmando-se como referências, ou a nossa organização social – o orgulho da Europa – estará irremediavelmente posta em causa.