No início desta presidência portuguesa da União Europeia – uma rotina rotativa com temporalidade definida, como a da passagem dos cometas – talvez fosse oportuno pensar além de relatórios e contas e de inócuas declarações diplomáticas e considerar, por um momento que seja, os caminhos e descaminhos da Europa ou das europas. Para tal, aconselho um ensaio de Martim de Albuquerque, um dos raros portugueses que analisou o assunto como parte integrante da História da Cultura e do Pensamento Político, equacionando a relação e a dialéctica Portugal-Europa de um modo que escapa aos mimetismos entusiásticos e apologéticos ou às lamúrias do costume. O ensaio chama-se A ideia de Europa no pensamento português, tem cerca de quarenta anos, mas foi reeditado em 2014.

Unificação e fragmentação

No Domingo passado, 3 de Janeiro, completaram-se 500 anos sobre a Bula papal de Leão X, Decet Romanum Pontificem, que excomungou Lutero e criou a primeira grande divisão na Cristandade. Antes de Lutero, tinham aparecido outros dissidentes religiosos, contestantes da autoridade papal e daquilo que constituía uma dogmática fundamental das verdades da Fé, como o inglês John Wycliffe e o seu seguidor da Boémia, Jan Huss. Ambos partiam de uma velha linha crítica a que, por exemplo, São Francisco de Assis, no século XIII, respondera no interior da Igreja e sem veleidades cismáticas – a contraposição entre os ensinamentos de Jesus, sobretudo no Sermão da Montanha, e as práticas de vida e de deslumbramento mundano de parte do clero e da hierarquia eclesiástica romana.

Mas há 500 anos, quando desta primeira divisão da Cristandade ou da Europa cristã, os tempos eram muito graves para uma Igreja que já tinha passado pelo Grande Cisma do Ocidente; que já se tinha visto dividida entre Roma e Avinhão, com dois Papas que se excomungavam mutuamente, enquanto, a par desses escândalos do poder temporal, escritores como Boccaccio e Chaucer registavam de forma impiedosa os vícios mais carnais do clero de então, como a gula e a luxúria. Vícios que Pasolini exacerbaria mais ainda na “Trilogia da Vida”, a versão cinematográfica que fez das obras de Boccaccio e Chaucer. Com algum facciosismo, porque, por exemplo, no auge da Peste Negra na Europa, de 1348-1351, o clero foi das classes percentualmente mais atingidas, por não ter descurado as suas obrigações de assistência espiritual e até sanitária. As congregações foram muito ceifadas pelos contágios, nos conventos, mas entre o clero diocesano as mortes foram também muito elevadas. E isto, porque, corajosamente, cumpriam o seu dever.

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Voltando à quebra da unidade religiosa na Europa: quando Lutero publicou, em Latim, as “95 Teses de Wittemberg”, não lhes quis dar grande divulgação. Mas já havia imprensa e, em poucas semanas, apareceram nas cidades alemãs panfletos reproduzindo os ataques a Roma do monge e teólogo agostinho.

A guerra entre Católicos e Protestantes ficou documentada em milhares de livros, panfletos e caricaturas, em que abundam representações odiosas dos adversários, com mais activismo do lado protestante, que representou o Papa como Satanás ou ardendo nos infernos. Os católicos também responderam e há um quadro de Lutero tentando a Cristo, de Bartolomeu Bruyn, o Velho, datado de 1457, em que Lutero tem pés de galo ou talvez de coisa pior.

Esta divisão da Europa Cristã pôs termo, definitivamente, ao sonho de Carlos V de um Imperium Mundi cristão à volta do Sacro Império. Houvera outros destes projectos – de Constantino, de Carlos Magno, dos Otões, de Frederico da Suábia, da Respublica Christiana. Como os haveria depois nas Luzes, com Napoleão e até com Hitler, nos anos da Segunda Guerra, quando o Führer pregava a unidade do Continente contra os seus (dele) inimigos: a plutocracia anglo-saxónica e o bolchevismo soviético. E também a partir da Segunda Guerra, quando o poder político-militar passou para a América e para a Rússia e a Europa ficou dividida entre a NATO e o Pacto de Varsóvia ou partida em dois mundos, ambos com pretensões hegemónicas.

Mas porquê a referência a Lutero? Porque há sempre uma luta de forças centrífugas e centrípetas e a dissidência de Lutero teria sido engolida pelo centro ou teria tido a sorte da de Wycliffe e da de Huss, não fosse o apoio que os príncipes deste mundo deram ao monge agostinho e a outros dissidentes religiosos – como Calvino e Zwínglio. Fizeram-no mais por conveniência política e económica (e até de controlo “nacional” sob pretexto matrimonial, no caso de Henrique VIII) do que por outra coisa. Já os radicais, como Thomas Müntzer e Jan Mathys, os Anabaptistas, acabaram muito mal, como acabaram mal os camponeses alemães que, em 1524-1525, acharam que chegara também o tempo de romper os laços da servidão e de ocupar os castelos. Foram reprimidos pelos exércitos profissionais dos príncipes e barões e chacinados às dezenas de milhares. Tudo com o apoio entusiástico de Lutero.

Federação ou Europa das Nações

O que é também importante para a Europa de hoje é que Carlos V, a todos os títulos um príncipe cristão que defendeu valores ético-religiosos sem esquecer a razão de Estado, teve como inimigo um outro príncipe cristão, Francisco I, que o combateu em nome de um proto-nacionalismo francês que não se queria ver engolido na teia do império do Habsburgo. Esta herança nacionalista contra a unidade do Continente irá passar para a Inglaterra dos Tudors, dos Stuarts, dos Hannover e manter-se-á encarniçadamente para impedir uma hegemonia continental: primeiro dos Áustrias, depois de Luís XIV, depois de Napoleão, depois dos Impérios Centrais, depois do Terceiro Reich.

E foi no meio destes séculos de História, de histórias e de guerras interestaduais e civis que se foram formando os Estados nacionais, que acabariam por ser os protagonistas do jogo geopolítico europeu.

A União Europeia, uma construção económico-financeira que fracassou na tentativa de se tornar unidade política, está agora num tempo de escolhas entre formas de Estado ou de comunidade: quer ser o bloco económico-financeiro, que tem funcionado com alguma eficácia, dentro de um quadro de uma Europa das Nações; ou tornar-se uma Federação ou Confederação político-ideológica?

Na segunda versão, o fracasso a curto ou médio prazo é inevitável, até porque, depois da saída do Reino Unido, as diferenças de entendimento ideológico da Europa entre a Mitteleuropa e a Europa Ocidental e, na Europa Ocidental, as diferenças entre as forças políticas, são radicais. Qualquer coisa que pretenda forçar a marcha da confederação acabará no choque e na fragmentação.

De qualquer modo, há escolhas – e são políticas – a que a União Europeia não pode escapar: a escolha entre uma América que, visivelmente, já não é bem o que era e uma China que não se sabe muito bem o que seja ou queira vir a ser.