A guerra na Ucrânia continua, mas no meio da obscuridade informativa típica de uma situação destas, notam-se dois aspectos que vale a pena sublinhar.

1 Uma diferença entre o exército russo e o ucraniano é que o primeiro tem uma total despreocupação pelo valor da vida dos seus próprios soldados. A batalha de Bakhmut é bem ilustrativa disso: o exército russo lançou ondas atrás de ondas de soldados sobre as defesas ucranianas, que os chacinaram aos milhares. É uma velha táctica soviética, muito bem ilustrada no filme Enemy at the Gates (2001) dirigido por Jean-Jacques Annaud: atirar ondas de soldados sobre o inimigo, a ver se alguns conseguem alcançá-lo antes de serem atingidos. A mortandade é tremenda.

No caso actual, foi tudo por uma terrinha sem importância estratégica nenhuma, que os comandantes russos teimaram em conquistar custasse o que custasse. Os ucranianos também tiveram bastantes perdas, naturalmente, mas nada comparado com as dos russos.

A estratégia ucraniana durante a ofensiva de inverno russa foi aguentar os pontos defensivos enquanto fosse razoável fazê-lo sem grandes perdas; quando se via que defender uma posição podia ser demasiado custoso em termos de pessoal, retiravam para outra posição mais vantajosa. No caso de Bakhmut, os ucranianos perceberam que se se mantivessem mais tempo a defendê-la iriam infligir pesadíssimas baixas aos russos devido à sua obstinação e, para viabilizar esse desgaste, resistiram mais.

É evidente que os ucranianos não são perfeitos e estão numa guerra especialmente brutal. Mas parece claro nesta altura que valorizam muito mais os seus soldados do que os comandantes russos.

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É uma visão mais próxima da do Ocidente, como mostra o cuidado que os carros de combate ocidentais têm em proteger os tripulantes, ao contrário dos de origem soviética ou mesmo russos mais recentes. Quando um carro de combate ocidental é atingido, fica inutilizado, mas a tripulação em geral sobrevive; quando um carro de combate de origem russa é atingido, poucas vezes a tripulação sobrevive. O valor que no Ocidente damos a cada vida humana contrasta com o desprezo dela por parte de regimes autoritários como o russo. Não admira que a motivação dos soldados ucranianos para se lançarem ao combate seja muito superior à dos agressores russos.

2 Os ucranianos sabem que têm menos equipamento militar do que os russos, embora substancialmente melhor. Além disso, a lentidão com que os Ocidente armou a Ucrânia deu tempo de sobra aos russos para prepararem linhas defensivas fortes. A estratégia ucraniana tem sido semelhante à da libertação de Kherson: cortar as linhas de abastecimento, destruir os depósitos de armamento e corroer as defesas russas ao longo da frente de combate com constantes ataques.

Esta estratégia tem tido bastante sucesso, uma vez que as forças russas estão com enormes problemas de abastecimento. Chegará um momento em que o armamento que têm disponível na frente não é suficiente para conter o avanço ucraniano; nessa altura é de esperar que a frente colapse. É provável que os russos tentem re-agrupar mais atrás, uma vez que há profundidade nas linhas defensivas; se conseguem fazê-lo debaixo de fogo ucraniano é outra questão.

Não consigo ver como os russos poderiam resistir a esta estratégia. Não é um processo rápido como gostaríamos que fosse, especialmente na fase inicial, habituados como estamos à velocidade dos filmes de Hollywood. E é preciso ter paciência, coisa que os ucranianos mostraram ter. É evidente que muita coisa inesperada pode acontecer ainda, mas é muito difícil que o exército de Putin consiga levar a melhor nestas condições.