Quando uma pessoa tem a infelicidade de ouvir Rui Rio a falar sobre Justiça — atividade de autoflagelação que deve ser exercida sempre com cautela e renitência — fica convencida de que o Ministério Público é a pior invenção da Humanidade logo a seguir à pizza com ananás. No dia em que o Tribunal da Relação decidiu contra os procuradores num recurso sobre a Operação Influencer, Rui Rio escreveu que se tratava de uma “humilhação” porque esse contratempo punha em causa toda a investigação. Noutros momentos, acusou a Procuradoria-Geral da República de manter abertos processos “onde não acontece nada”, inação que, segundo o guru do Manifesto dos 50, “acaba por dar a ideia de que não há nada a fazer contra a corrupção”. Resumindo (se bem percebi): o Ministério Público não faz nada; e, quando faz, faz mal.

Esta elaborada teoria tem apenas um pequeno e desagradável problema: é que a realidade não a comprova. Em certo sentido, entendo: se temos uma tese, se temos um adversário e se temos um plano, torna-se uma maçada permitir que os factos se coloquem no nosso caminho. Mas, mesmo assim, talvez seja útil perdermos alguns minutos a olhar para aquilo que realmente acontece e não para aquilo que Rui Rio pensa que acontece.

Por exemplo: esta semana, o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa decidiu validar na íntegra — atenção: na íntegra — a acusação do Ministério Público contra Ricardo Salgado, Álvaro Sobrinho e outros simpáticos cidadãos no caso BES Angola. No mesmíssimo dia, um outro juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal aceitou a acusação do Ministério Público, também contra o benemérito Ricardo Salgado, num caso que envolve suspeitas de corrupção de um ex-vice-presidente do Banco do Brasil, ligado ao partido de Lula da Silva.

Ainda esta semana, outra notícia: foi marcado o início do julgamento do chamado caso Vórtex, onde dois ex-presidentes da Câmara de Espinho (um deles até há pouco tempo deputado) são acusados de terem sido corrompidos por um empresário num negócio imobiliário. É um processo onde as escutas telefónicas foram especialmente reveladoras. Numa delas, Joaquim Pinto Moreira era ouvido a proferir as imortais palavras “Por cada démarche que faça, para cada empreendimento, eu quero 25 mil euros”.

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Há mais. Voltando um pouco atrás no tempo, mas ficando apenas neste ano, para não nos cansarmos, vemos que em junho ​​o Tribunal de Murça decidiu enviar para julgamento um ex-presidente e um ex-vice-presidente da Câmara Municipal de Montalegre por suspeitas de prevaricação, estando em causa um impressionante e laborioso total de 370 crimes. O juiz, convém notar, seguiu “os exatos termos constantes na acusação” feita pelo Ministério Público.

Um mês antes, em maio, mostrando uma espantosa capacidade de coordenação, um antigo presidente, um antigo secretário e um antigo tesoureiro da junta de freguesia de Lordosa foram condenados, no Tribunal de Viseu, pelo crime de peculato. Também em maio, o Tribunal de Aveiro condenou três empresários por desvio de subsídios europeus (em maio aconteceria o mesmo a outro empresário em Viseu).

Em abril, o tribunal da Relação do Porto acolheu parcialmente um recurso do Ministério Público e condenou o ex-presidente da Câmara de Arouca, José Artur Neves, que também foi secretário de Estado da Administração Pública, e ainda um empresário a três anos de prisão, com pena suspensa, por um crime de prevaricação — ou seja, o Ministério Público acusou, o tribunal de primeira instância inocentou e a Relação condenou, dando razão aos procuradores.

Igualmente em abril, o Tribunal de Guimarães condenou um ex-autarca de Vizela a uma pena suspensa de quatro anos e cinco meses por peculato. Na primeira sessão de julgamento, Dinis Costa defendeu-se usando os argumentos habituais e denunciando estar a ser a mais recente vítima de um “embuste” que culminou, dramaticamente, num “assassinato político”. Uma das notícias sobre o caso informa-nos, já agora, que “o despacho de pronúncia manteve na íntegra a acusação do Ministério Público”.

Só mais dois exemplos. Em fevereiro, o empresário César Boaventura foi condenado, no Tribunal de Matosinhos, pelo crime de corrupção ativa no desporto, num caso de aliciamento a jogadores do Rio Ave para favorecer o Benfica. Em janeiro, o Tribunal de Aveiro condenou um empresário por um crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada.

Tudo visto e somado, temos pronúncias para julgamento por parte de juízes que seguem “na íntegra” as acusações do Ministério Público, condenações em tribunal depois de um julgamento e vitórias em recursos para instâncias superiores. Temos investigações sobre crimes de corrupção, peculato, uso de fundos europeus e fraude fiscal. Temos processos que envolvem todos os poderes: políticos, banqueiros, empresários e personagens do futebol. Temos casos em Lisboa, em Espinho, em Montalegre, em Viseu, em Aveiro, em Arouca, em Vizela, em Matosinhos.

Recuperando as palavras de Rui Rio (Deus me perdoe), conclui-se que em janeiro, em fevereiro, em abril, em maio, em junho e em julho o Ministério Público não sofreu qualquer “humilhação” e, pelo contrário, mostrou que há muito a fazer e muito a ser feito contra a corrupção e contra outros crimes de alta visibilidade.

Isto, obviamente, não quer dizer que o Ministério Público faz tudo bem. Quer apenas dizer que, da próxima vez que alguém se submeter à provação de ouvir Rui Rio a proferir sermões sobre Justiça, deve ter as mesmas cautelas recomendadas a quem escuta um vegetariano a teorizar sobre a melhor forma de cozinhar um bife. Rui Rio não sabe do que está a falar, não quer saber e tem raiva de quem sabe.