Com o aparecimento no mundo euroamericano de movimentos populares com características antiglobalistas e identitárias – movimentos que encontraram expressão política dominante em países como os Estados Unidos, o Brasil, a Itália, a Polónia e a Hungria e têm presença nas oposições da maioria dos países europeus –, tem havido uma campanha mediática forte para os equiparar ao regime fascista mussoliniano que, vai para um século, triunfou em Itália.

Os sinais de alarme contra os “populismos” – contra os de direita, porque os de esquerda são ignorados ou olhados com simpatia, como excessos de generosidade e juventude – e a pretensão de os reconduzir a formas históricas de autoritarismo ou totalitarismo, parecem ignorar as diferentes circunstâncias históricas e as doutrinas e práticas de então e de hoje.

Nesses outros anos vinte, as alternativas que se perfilavam à esquerda e à direita, e que eram declaradamente antidemocráticas, recorriam à violência como forma superior de luta e lutavam entre si e contra um sistema que entrara em falência.  Hoje, a violência física é rejeitada por esquerdas e direitas, e a esquerda tende a apropriar-se da “Democracia”, ou do sistema, para, a partir de dentro, de uma posição de poder, varrer para fora da “normalidade democrática” alternativas à direita que não põem em causa a competitividade democrática, antes, se legitimam através do voto popular.

Por isso talvez valha a pena recordar os anos vinte de há cem anos, começando por lembrar que as circunstâncias das rupturas histórico-políticas se devem mais à incapacidade das classes dirigentes para aguentar novos desafios do que à razão ou mérito das oposições no ataque ao poder.

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Socialismo patriótico

A Itália era, em 1919, uma nação antiga mas um Estado recente. Antes de 1914, tinha sido aliada dos Impérios Centrais, mas foi contra eles que interveio, ao lado da Entente, num movimento de que o socialista Benito Mussolini foi um dos principais impulsionadores.

Dado o pacifismo ideológico e programático dos socialistas, tinha sido surpreendente que a grande massa dos partidos da II Internacional alinhasse com os governos “nacionais-burgueses” e votasse os créditos de guerra. Para Mussolini, esta falência da Internacional Proletária dera-se porque a nação e a lealdade à nação eram, ou tinham passado a ser, mais fortes do que a luta de classes. Defensor de uma “neutralidade condicional”, Mussolini apoiou a aliança com os franco-ingleses, já que o Império dos Habsburgo era quem ocupava Trieste e as províncias do irredentismo italiano – o Trentino, a Ístria e a Dalmácia. Como ele, outros socialistas italianos fizeram a ruptura com o internacionalismo do Partido Socialista oficial, enveredando por um socialismo nacional e revolucionário.

Para o futuro Duce, a questão nacional era a questão central: em Novembro de 1914, com financiamento de industriais italianos e socialistas franceses, fundou Il Popolo d’Italia, que tinha no frontispício a legenda: “Jornal socialista”. Mas em Agosto de 1918, Il Popolo passara já a ser um “Diário para combatentes e produtores”. Também em Outubro de 14, Mussolini criara os Fasci Autonomi d’Azione Rivoluzionaria, proclamando-se socialista segundo o lema de Blanqui – “Aquele que tem o ferro tem o pão” –, e reclamando-se da tutela de socialistas não-marxistas, como Proudhon, Bakunin e Fourier.

Em 23 de Março de 1919, em Milão, nasciam os Fasci Italiani di Combattimento, que se transformariam, em 1921, em Partido Nacional Fascista e chegariam ao poder com a Marcha sobre Roma, em Outubro de 1922. A maioria dos militantes do movimento eram ex-combatentes e estudantes, mas o fascismo contou com gente de todas as classes sociais.

O perigo comunista

Na Itália de há um século deram-se uma tempestade e uma convergência para a resposta alternativa ao “perigo vermelho”, ao fantasma do comunismo, anunciado em 1848 por Marx e Engels; um fantasma que deixara de pairar sobre a Europa para a ameaçar directamente com a revolução, depois de conquistar o poder na Rússia.

A novidade e originalidade do fascismo é, a par do anti-liberalismo, do anti-parlamentarismo e da crítica das instituições e dos valores oitocentistas (temas comuns à direita clássica), trazer as ideias de progressismo e solidarismo social e a consagração da violência como instrumento de mudança. O fascismo queria conciliar as classes, não ao modo paternalista conservador do catolicismo romano, ou do utilitarismo anglo-saxónico, mas numa dialética realista que, não ignorando a contradição dos interesses, procurava, pela tutela estatal autoritária, encontrar sínteses e arbitrar soluções, em nome do bem comum nacional.

Se, como geralmente se diz dos primórdios do fascismo, a acção precedeu o pensamento, nos tempos da guerra civil de baixa intensidade até à vitória ou antes da tomada do poder, o fascismo e os fascistas apressaram-se a formular uma doutrina.

O fascismo-movimento, antes do fascismo-regime, teve várias versões: à partida, era um nacionalismo radical com uma série de princípios de esquerda – anticapitalismo, anti-latifundismo, jacobinismo –, mas era  também popular, romântico e antiliberal, embora defendendo o alargamento do direito de voto a todos os maiores de 18 anos, incluindo as mulheres.

Estes princípios saíram da reunião fundacional de Milão, na Piazza San Sepolcro, a 23 de Março de 1919, como resposta, na teoria e no terreno, ao comunismo, mas também dando seguimento a parte das razões do comunismo.

Fechando, também em Itália, o outro lado a bipolaridade radical, no 1º de Maio desse mesmo 1919, saía o nº1 da revista Ordine Nuovo, fundada por António Gramsci, com Angelo Tasca, Palmiro Togliati e Umberto Terracini. Gramsci rompia com a linha socialista legalista do PSI, com a teorização marxista clássica da II Internacional, defendendo o modelo leninista de conquista do poder e a formação de “conselhos operários”, semelhantes aos Sovietes, como “forma universal de autogoverno das classes operárias”.

Já em Abril de 19 tinham começado em Milão as escaramuças entre fascistas e anarquistas; nos meses seguintes, recontros do mesmo tipo foram acontecendo em Génova, Bolonha, Florença. A radicalização ideológica e os combates de rua são paralelos à luta eleitoral no Parlamento, onde, em 1919, os socialistas ganham dois milhões de votos e elegem 156 deputados; e os católicos do Partido Popular de Don Luigi Sturzo, à volta de 100, remetendo os liberais, tradicionalmente dominantes, para terceira força. Os fascistas tiveram uma votação ínfima.

A partir deste “zero” como vão vencer? A violência e a radicalidade da revolução soviética, com os seus milhões de mortos, despertara na Europa um clima propício ao estado de excepção permanente para resistir ao que era visto como uma ameaça existencial à civilização; e daqui surgiu o que Ernst Nolte chamou a “guerra civil europeia” – uma luta de princípios, ideologias e concepções de vida totalitárias, que se apoderou de grandes potências e se propagou por todo o Continente.

É com base nesta excepcionalidade – e nas consequências político-sociais e geopolíticas da Grande Guerra – que devemos olhar aqueles anos vinte, e não com uma percepção maniqueísta de ardis e conspirações de um polvo reaccionário desejoso de suprimir a Europa liberal e a liberdade na Europa.

Para entender este tempo, é importante ter em conta estas rupturas e o seu grau de radicalidade. As torturas e massacres das Tchecas soviéticas, o medo que despertaram nas elites e nas classes médias de toda a Europa perante uma revolução que, em nome da utopia, destruíra os factores de uma sociedade livre – desde a liberdade religiosa à propriedade privada – explicam o apoio das classe médias e das elites, não só aos fascistas italianos, mas também aos movimentos autoritários e ditatoriais conservadores ocorridos na Europa Oriental e Meridional, da Polónia de Pilsudski ao Portugal do 28 de Maio.

As notícias sobre este terror vermelho foram disseminadas pelos emigrados russos da primeira vaga de 1917 a 1920, mais de um milhão. Em Berlim, “Metropolis de Fausto” ou “pequena Moscovo”, viviam cerca de 200 mil, com as suas hierarquias políticas e militares, as suas associações, os seus jornais, com vida literária e conspiratória. Ali coexistiam e confrontavam-se com o “Berlim Vermelho”, o dos comunistas alemães e dos representantes comunistas soviéticos.

Esta migração vinha em cima de uma tradição de relações russo-alemãs, com escritores e intelectuais, como Boris Pasternak, Osip Mandelston, Alexandre Koyré, frequentadores de universidades alemãs (Marburgo, Heidelberg e Göttingen). A emigração integrava todas os perseguidos pelos bolcheviques: de generais, políticos e religiosos monárquicos e czaristas a anarquistas e sociais-revolucionários.

Com a derrota do exército de Wrangel na Crimeia, em 1920, mais de 200 mil refugiados vieram juntar-se ao milhão de russos da primeira vaga. A maioria destes fixou-se em França que, depois da Alemanha, foi outro grande centro da diáspora russa. A facção monárquica, a dominante, estava dividida dinasticamente entre os apoiantes do Grão-Duque Kirill Vladimirovich, filho mais velho sobrevivente de Alexandre III e irmão do último czar Nicolau II, que se ficou pela Baviera; e os do Grão-Duque Nikolai Nicolaevich, neto de Nicolau I, que passou a viver no castelo de Choigny, perto de Paris.

Estas comunidades de emigrados foram importantes na difusão do anticomunismo. Chegaram a ser, em 1922, milhão e meio. Entre eles contavam-se pensadores conservadores, como Berdiaiev e o romancista, futuro prémio Nobel, Ivan Bunin. E o jovem Vladimir Nabokov.

O caso italiano

Em Itália não seriam muitos, talvez nem chegassem a vinte mil, e não tiveram uma influência significativa no anticomunismo italiano, senão por via europeia. O anticomunismo italiano, importante e mesmo decisivo para o triunfo do fascismo, estava ligado à ameaça comunista directa, revolucionária, na própria Itália, no período conhecido como “Bienio Rosso”, o período de1919-1920. O fascismo revolucionário do programa milanês de 23.3.19 teve uma rápida mutação no confronto com a esquerda socialista radical no campo, dando lugar ao “fascismo agrário”, em que o esquadrismo activista dos camisas negras, enquadrando e até liderando no terreno a reacção dos proprietários agrícolas da Padania e da Regio-Emilia, se “direitizou”.

Ao mesmo tempo, Mussolini impulsionava a linha legalista parlamentar e aproveitava o fim da aventura d’Annunziana de Fiume, para justificar a inserção dos fascistas no sistema político giolittiano: a aventura de d’Annunzio iniciara-se com a ocupação de Fiume em 12 de Setembro de 1919; no ano seguinte, o vate anunciou a independência de Fiume, e proclamou a carta de Carnaro, constituindo uma República democrática e igualitária, com laivos soviéticos, ao ponto de ser a Rússia de Lenine o único Estado que reconheceu a Reggenza Italiana del Carnaro, “cidade-Estado” de curta vida, onde se permitia o amor livre, o naturismo e a homossexualidade, uma utopia libertária que atraiu gente de toda a parte.

O ano de 1921 foi um ano de grande crescimento dos Fasci, que passaram de 88, com 20.615 filiados, para 834, com 249.036, números que, em 31 de Maio de 22 passariam para 2124, com 322.310 filiados. Na repartição geográfica, a grande força do movimento localizava-se no Norte do país. Quanto às categorias sócio-profissionais dos filiados, mais de 36% eram agricultores, proprietários e trabalhadores agrícolas, 15% eram operários e 13% estudantes. O resto repartia-se por profissões várias do comércio e dos serviços. Finalmente, 10%, a elite social, eram industriais e profissões liberais.

Foi a partir desta massa interclassista que se formaram os quadros do regime que, na época, foi plenamente aceite pelos Estados liberais europeus, que tinham então por inimigo principal o comunismo russo que, em Dezembro de 1922, criara a URSS.

Hoje

Hoje, não há nada de semelhante ao “perigo fascista” nem ao “perigo comunista”. Mas há uma circunstância real, ou percebida como tal pelos povos da Euroamérica: uma ameaça aos valores da civilização laica e cristã – à religião, à nação, à família, à liberdade, à vida – tal como foram entendidos ao longo de gerações; uma ameaça com cambiantes experimentalistas e rupturistas imprevisíveis a longo prazo. Chamar aos que contestam essa decadência, “fascistas”, pode deixar satisfeitos os acusadores e perturbar alguns dos rebeldes. Mas não vai mudar nada.