No seguimento de um texto recente em que me debrucei sobre a «Desordem Internacional», verifico que a hipótese então descartada pela esmagadora maioria dos «media» se verificou certa e que, afinal, o auge da desordem então receada por mim era atingido com a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas que o levarão àquilo a que se costumava chamar o cargo político mais poderoso do mundo.

A forma como a generalidade dos «media» está a reagir ao fenómeno que ela foi a primeira a provocar, seguida pelas sondagens, faz pensar que houve uma hecatombe nos Estados Unidos… É caso para perguntar se o pacato Eng.º António Guterres teria concorrido à presidência da ONU se adivinhasse que Trump seria presidente ao mesmo tempo que ele habitará o prédio da Rua 42 em Nova Iorque? É lícito perguntar, com efeito, se as Nações Unidas já estiveram mais desunidas do que irão estar a partir de Janeiro do próximo ano? Como ilustração da «desordem internacional» atingida na terça-feira passada dificilmente se encontraria melhor!

O xadrez da desordem é um pouco como um desses quadros de quatro entradas conhecido dos cientistas sociais: neste caso, as causas e as consequências cruzam-se com a esfera nacional e a internacional… Seja como fôr, já havíamos dito que, ao contrário do que a comunicação social norte-americana e internacional pretendiam dar a crer, Trump não era uma espécie de fenómeno extra-terrestre que se desvaneceria com a desejável vitória do mal menor, ou seja, a Sr.ª Clinton, máxima representante da oligarquia demo-liberal reinante no chamado mundo ocidental. Não, Trump não era um extra-terrestre nem aquilo que ele representa iria desvanecer-se, mesmo que Clinton tivesse ganho.

Do lado das causas do inesperado resultado, que tem como pano de fundo internacional a globalização em curso desde que o seu antecessor Nixon acabou com os acordos de Bretton Woods (1971), do ponto de vista nacional Trump representava pessoas e valores que já lá estavam anos antes de ele surgir e continuariam a estar mesmo que ele não tivesse ganho. O problema para o futuro é que as diferenças entre um e outro campo partidário, sendo politicamente enormes, reduzem-se eleitoralmente a uma unha negra. Por outras palavras, os Estados Unidos estão divididos ao meio pela mesma racha tectónica que atingiu a maior parte do mundo ocidental.

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Este cisma gritante e porventura insanável não é meramente ideológico, como nos querem fazer crer. Conforme explica Joan C. Williams num artigo notável na «Harvard Business Review», o cisma é sócio-cultural no sentido mais profundo do termo, pois opõe as pessoas conforme a idade, ou seja, segundo um conflito inter-geracional latente que não deixa de existir só porque não é correcto falar dele; conforme o nível de instrução e a correlativa ocupação profissional, bem como os lugares de vencedor ou perdedor que cada um ocupa na cadeia da globalização, para não falar das origens étnicas e religiosas que atravessam, em sentido literal, o espaço global.

A marca exterior do cisma entre esses dois universos condenados a viver juntos é o «politicamente correcto». Os leitores calculam facilmente de que lado está Trump, como já antes dele estavam os defensores do «Brexit» e cada vez mais grupos com um discurso incompreensível para as orelhas feitas pelos telejornais, onde «populismo» se transformou num insulto… Agora, porém, Trump representa o «politicamente incorrecto» com a força que lhe vem de ser presidente do país mais importante do mundo. Obama, que saiu da tradição norte-americana para apoiar desesperadamente a Sr.ª Clinton, é aliás responsável, com o seu discurso «soft» e nos últimos tempos inconsequente, por ter falhado a sua missão de para-raios da tempestade em que a vida política se tornou desde que explodiu a grande recessão de 2007.

Acrescente-se, sem qualquer juízo de valor, que se o Japão e a Coreia do Sul, bem como América Latina, fazem parte do dito mundo ocidental, a Rússia de Putin e a Turquia de Erdogan não fazem parte dele, assim como a China nem o mundo árabo-muçulmano. E como muitos outros países que se orientarão por um ou por outro dos modelos, como a própria Índia. A democracia pode ser – e em muitos casos é – pouco mais do que eleitoral, mas fora do mundo ocidental nem isso é.

As causas do «trumpismo» são pois conhecidas e só não sabia delas quem estava bem colocado na cadeia alimentar da globalização. Quanto às consequências, elas são a dimensão mais opaca da nova presidência norte-americana, pois se sistema político doméstico é suficientemente robusto, assim se crê, para absorver as mudanças que Trump quererá impor, já no plano internacional – melhor, global – os efeitos deste terremoto isolacionista podem ir muito longe e a União Europeia, na senda do «Brexit», arrisca-se a ser a zona tectónica que mais sofrerá. Isto, claro, para quem se sente europeu e deseja o aprofundamento da União para o bem do nosso próprio país, o qual não tem escala nem meios para flutuar sozinho ao sabor das ondas encapeladas que se avizinham!