Passado pouco mais de meio-ano, o mundo parece um fogo-de-artifício. Só que sem festa! Desde o início de 2016 que se sucedem factos pouco antes impensáveis, mas de enorme dimensão e destinados a ter consequências imprevisíveis, desde o «impeachment» da presidente do Brasil ao chamado «Brexit», até ao golpe e contra-golpe político-religioso em curso numa Turquia fronteiriça da Europa, integrante da NATO e suposta aderir eventualmente à UE!

E como se nada fosse, surge um indivíduo descrito por todos os comentadores como alguém ainda mais delirante e reaccionário do que Boris Johnson, um dos principais arautos da saída da Inglaterra da União Europeia. Estou a falar de Donald Trump, que em escassos meses irrompeu como elegível para Presidente dos Estados Unidos, onde o conflito racial volta a mostrar que está longe de terminado, assim como as divisões de idade, de género, de classe e de etnia… Mesmo que Trump se esfume, como as sondagens prevêem, as causas que o fizeram surgir não desaparecerão tão cedo!

Ao mesmo tempo, centenas de pessoas inocentes continuam a ser barbaramente assassinadas em diversos países do coração da Europa por um bando de radicais islamitas, baseado algures nos territórios em disputa à volta da Síria e do Iraque, bando esse do qual surgem da noite para o dia pequeníssimos grupos de terroristas dispostos a morrer matando por causas que eles próprios teriam possivelmente dificuldade em articular numa linguagem compreensível para a maioria dos europeus.

No meio disso, as tergiversações políticas e financeiras do actual governo português são um pingo de água neste oceano encapelado. Mas até um advogado da ilha da Madeira se fez ouvir na televisão lusitana a dizer que o massacre da semana passada em Nice, onde quase uma centena de transeuntes foi deliberadamente esmagada por um isolado saída do nada, era «um legítimo acto de guerra». Ninguém se atreve a dizer entre quem e quem foi essa guerra declarada, nem o advogado em causa, mas o certo é que reina a desordem mais completa no mundo.

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Abundam as tentativas avulsas de interpretação mas a verdade é que não há uma explicação minimamente coerente, nem talvez isso seja de esperar em tal desordenamento niilista onde é difícil distinguir as agressões da direita e da esquerda contra a antiga ordem demo-liberal. Para ficar pelos exemplos citados, como explicar o advento de um Donald Trump e de um por ora vitorioso Boris Johnson? Este último já chegou ao governo britânico e o primeiro ainda não falhou nenhuma das fasquias na corrida à presidência americana e, se vier a perder para a oligarquia democrática dos Clinton, como está previsto, é impensável a pura e simples repetição da política norte-americana convencional, com o que isso significa para o mundo inteiro.

O poder efectivamente perdido pela Casa Branca em cerca de quinze anos, tanto fora como dentro dos Estados Unidos, não voltará, pois isso ficou a dever-se, sucessivamente, ao intervencionismo de George W. Bush e ao isolacionismo de Barack Obama. Ainda há dias, na sua viagem de despedida à Europa, Obama dizia: «Seja qual for o governo, a Espanha continuará a ser um aliado sólido» (El País, 10 de Julho). Com o Podemos e o actual PSOE eventualmente no poder?! Vê-se bem que Obama nunca teve qualquer sensibilidade para a política internacional, muito menos europeia…

Neste sentido, o inquietante é que, como Erdogan e Putin, como a China totalitária, como os sátrapas árabes ou muçulmanos, também os «brexiters» e até os Trump se arriscam a ter mais êxito na cena internacional do que a futura presidente dos USA. A Sr.ª Clinton foi efectivamente responsável, como Obama, por boa parte dos enormes sarilhos locais e mundiais em que os europeus da União foram metidos, sem possibilidade de se isolar… Certamente que um pequeno ponto no mapa europeu como Portugal nunca terá tal possibilidade, salvo se o actual governo teimar em reconstruir o país neo-realista anterior ao 25 de Abril abandonando o «euro»…

A base económica – para falar como os cientistas sociais que continuam a esforçar-se por extrair algum sentido das coisas avulsas – desta desordem internacional agónica reside numa globalização desencadeada e promovida pelos USA nos anos ’70 do século passado e na correspondente austeridade dos continentes mais ricos, como a Europa, perante a sua notória perda relativa de poder material e, talvez mais ainda, do poder imaterial. Não será fácil fazer acreditar ao mundo mais pobre que a democracia não é uma coisa que se come e não é simples explicar que o milagre da fertilização do solo económico pela imaterialidade da democracia e pelos chamados direitos sociais não se irá repetir.

Daí esta guerra não declarada e esta desordem demencial em que forças sem nome nem ideologia claras, como ainda eram as antigas «direita» e «esquerda», nos mergulharam. Entretanto, a concertação e a rotação que estavam por trás dos governos e das grandes organizações efectivamente democráticos e eficazes cederam o lugar à berraria inconsequente e insultuosa promovida por omnipresentes «redes sociais» anónimas. Assim, acabou a discussão política por se transformar num permanente ataque sem acordo à vista e os parlamentos em debates de surdos destituídos de qualquer produção de resultados com sentido.