O debate orçamental foi antecipado para ainda antes da apresentação do Orçamento de Estado. Esta quarta-feira foram votados na Assembleia da República nada menos que doze projetos de lei ou resoluções em matéria fiscal, a reboque do pacote fiscal do PSD que teve a iniciativa na matéria. Do ponto de vista legal (e económico) não faz nenhum sentido discutir e votar estes projetos fora do debate geral do Orçamento de Estado. O PSD que inicialmente sugeriu, pela voz de Luís Montenegro,  que a baixa de impostos por si proposta era para ter efeitos imediatos, ou seja ainda em 2023, apercebeu-se certamente que se tal fosse o caso violaria a norma travão inscrita na Constituição. Esta norma limita deputados e grupos parlamentares de apresentarem propostas que aumentem as despesas ou diminuam as receitas no ano económico em curso. Assim, teve o cuidado de, na redação dos seus projetos, colocar como data da entrada em vigor 1 de Janeiro de 2024, ou seja, se tudo correr bem quando entrar em vigor o novo Orçamento de Estado. Por razões que se perceberão a seguir só faz sentido discutir qualquer pacote fiscal em sede de Orçamento de Estado. Politicamente, esse debate pode ser a qualquer altura, claro está, e a razão porque ele surgiu foi para mostrar que essa é a bandeira política a que o PSD quer dar visibilidade: a redução de impostos e, prioritariamente,  em sede de IRS.

Dos doze projetos votados esta semana (5 PSD, 2 Chega, 2 BE, 1 PAN, 1 PCP e 1 Livre), apenas foi aprovado o projeto de resolução do Livre que recomenda ao governo a tomada de medidas ambiciosas no combate à evasão e elisão fiscais bem como ao planeamento fiscal agressivo. Visto que estamos na antecâmara da apresentação do Orçamento de Estado, onde efetivamente esta matéria deve ser deliberada, vale a pena revisitar algumas propostas, começando por recordar duas coisas. Num sistema fiscal, o imposto com maior capacidade, se bem desenhado, de implementar qualquer conceito de justiça social é o IRS, pois é personalizado a cada agregado familiar e é progressivo. O IVA, muito maior em termos de receita fiscal, é um imposto mais eficiente, mas muito mais injusto pois todos pagam a mesma taxa, sobre os mesmos bens e serviços consumidos, independentemente do nível de rendimento.  O IRC é um imposto eficiente e o que tem maior impacto em termos de atração do necessário investimento estrangeiro.

Resumo o que penso sobre o sistema fiscal português. Temos uma carga fiscal que é simultaneamente elevada e injusta na sua distribuição. Reduzir responsavelmente a carga fiscal exige estudo e uma análise exaustiva e global da despesa pública, para que se identifique onde há redundâncias e onde pode haver cortes na despesa pública sem que isso implique uma degradação dos serviços públicos. Se esse estudo fosse feito (algo que é periodicamente realizado no Reino Unido por exemplo) chegar-se-ia provavelmente à conclusão que cortar na despesa ou reorientar a receita, levaria a ter de enfrentar alguns lóbis com algum poder. É pela  incapacidade de contrariar os interesses dos lóbis instalados que os governos em geral, e agora o do Partido Socialista, têm sido incapazes de reduzir a carga fiscal. Promover mais a justiça social, pode ser feito através de alterações nas taxas marginais de IRS, mas também deve ser feito alterando os cabazes de bens e serviços sujeitos  às diferentes  taxas de IVA. Finalmente, incentiva-se o necessário crescimento económico, não só, mas também, com um faseamento previsível e estável da descida da taxa de IRC.

É neste contexto que vale a pena discutir brevemente algumas das propostas apresentadas. O PSD, ao focar no IRS não deveria ser omisso em relação às suas propostas tradicionais de descidas de IRC. Uma das propostas apresentadas agora pelo PSD foi no sentido de colocar a Assembleia da República (AR) a deliberar sobre o destino a dar a um eventual excedente orçamental verificado na execução orçamental. Esta proposta não me parece nem exequível, nem fazer sentido nenhum, dado não ser da competência da AR, mas do governo, deliberar sobre a execução orçamental e isso constituiria atribuir-lhe essa competência. Outra proposta é a redução do IRS para os jovens com menos de 35 anos. O objetivo é louvável – reduzir a taxa de emigração dos jovens portugueses – mas não me parece que o instrumento adequado seja o IRS. Incentivos que tenham a ver com o acesso à habitação por parte dos jovens parecem-me muito mais impactantes e eficazes. Para além de que diminuir a tributação com base numa faixa etária, não me parece nem muito justo nem muito de acordo com a Constituição que estipula que o imposto sobre o rendimento pessoal é “único e progressivo”. É certo que  já existem modulações neste imposto “único”, desde logo ao nível dos residentes nas regiões autónomas dos Açores e Madeira que têm taxas menores de IRS. Existe também a grande excepção à regra que é o regime fiscal dos residentes não habituais tributados de forma proporcional, e não progressiva,  a uma taxa única de 20% (rendimentos de trabalho) ou 10% (pensões) durante um período de 10 anos. Acontece que este regime é bastante injusto.

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Aqui entra a proposta do BE, também reprovada, de acabar com este regime de incentivos fiscais para não residentes que tanto se pode aplicar a estrangeiros como a portugueses desde que não residentes em território português nos últimos cinco anos. Não podemos ter vistas curtas em relação a este regime de forte incentivo fiscal para não residentes e olhar apenas para a receita fiscal adicional que gera. Que ele é altamente injusto para os portugueses residentes no território nacional nos últimos anos e que aguentaram em solo nacional as diversas crises não há dúvidas. Quem não imigrou, por exemplo no período da troika, é agora penalizado em sede de IRS face aos que saíram do país. Para deliberar sobre a manutenção ou extinção deste benefício fiscal (como sugere o BE) seria importante conhecer o seu impacto, não apenas na receita fiscal, mas no mercado imobiliário. Que pressão estão estes não residentes a fazer no mercado da habitação? Penso que está na altura de revisitar, com dados, este incentivo fiscal e senão aboli-lo já, para os novos não residentes, reduzi-lo significativamente. A menos que queiramos um país para não residentes.

O nosso sistema fiscal trata mal os portugueses residentes e beneficia os não residentes, em particular os estrangeiros. Qual a racionalidade e com que argumentos se justifica que as dormidas em hotéis, frequentadas sobretudo por turistas, sejam tributadas à taxa mínima de IVA, a mesma que para bens essenciais? Não me venham com argumentos que afetaria negativamente o turismo a subida para a taxa intermédia (semelhante à que Espanha pratica) pois não afetaria.

Não se deve discutir alterações num imposto em particular sem ter em conta o sistema fiscal como um todo e as alterações pretendidas para a despesa pública, dada a restrição orçamental do país. Ao fazer este debate, para além da tradicional dicotomia entre o impacto na eficiência e na justiça social, devemos considerar também a diferença de tratamento entre residentes e não residentes.