A novela em torno da viabilização ou não do próximo Orçamento do Estado transformou-se numa produção de duvidosa qualidade. Os atores esforçam-se, mas os episódios repetem-se, o argumento é previsível e as surpresas não surpreendem. Em rigor, ninguém sabe exatamente como vai acabar e é isso que vai valendo. Mas, aprovado ou não o Orçamento do Estado, evitada ou não a crise política, já se percebeu que a novela se arrastará penosamente até ao fim, com o país mediático agarrado à cadeira e o país real enfadado e maioritariamente indiferente, sem perceber exatamente o que querem efetivamente os protagonistas, o que os afasta e os aproxima para lá de todos os jogos florentinos e cálculos políticos.

Luís Montenegro, nos dias em que não anda de lancha deixando-se fotografar como um super-primeiro-ministro de capa e collants (aprendeu-se muito pouco com o quão prejudicial foi o lufa-lufa de políticos nas operações de Pedrógão Grande), a prometer bónus a pensionistas, passes ferroviários para comboios que não existem, a cativar os mais jovens ou a descativar as carreiras da administração pública que dão votos, vai jurando a pés juntos que não pensa em eleições. Ceci n’est pas une pipe, o Governo está empenhadíssimo em evitar uma crise política e em negociar com o PS – menos nos dias em que ataca e provoca o adversário com quem diz querer negociar.

Montenegro fá-lo porque sente que o pode fazer, naturalmente. Tem sido aquilo que, secretamente, sempre se propôs ser: uma versão melhorada de António Costa, a competência na continuidade, um projeto de renovação indolor. Se António Costa teve maioria absoluta em 2022, à terceira eleição, depois de seis anos de governo e com uma diferença de quase um milhão de votos em relação ao PSD, foi porque tinha um projeto político e de país convincente. Sem surpresa, e apesar de subsistirem alguns focos de incêndio, Montenegro conseguiu comprar paz social à medida que foi distribuindo o que podia e enquanto podia pelo centrão. É possível (e provável) que os eleitores lhe renovem a confiança. Não passou assim tanto tempo desde Costa 22′ e a receita foi e é vencedora. É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma.

Pedro Nuno Santos está numa posição mais ingrata, o que ajuda a explicar algumas oscilações. Leva menos de nove meses de liderança e já foi do “é praticamente impossível aprovar o Orçamento” até à abstenção violenta bastante provável. Regressou, no último fim de semana, à ideia de que ou o Governo abdica de duas das suas principais promessas eleitorais em matéria de fiscalidade ou nada feito, chumbo certo. Mas, como as aparências importam, ficaram duas promessas: o PS não quer eleições e salvará um Orçamento retificativo com todos os bombons orçamentais que o Governo tem prontos a desembrulhar. Ninguém quer ficar mal na fotografia e Pedro Nuno Santos já percebeu que tem como adversário alguém que aprendeu muito com António Costa — e com um PS de que Pedro Nuno Santos fez parte com convicto fervor.

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André Ventura, há meses sem saber o que fazer para continuar a ser o protagonista da cena político-mediática, passada (para já) a febre das gémeas, decidiu ser mais criativo e desencantou um referendo sobre imigração como moeda de troca para aprovação do Orçamento. O país soube das intenções de Ventura a 19 de agosto. Onze dias depois, o mesmo Ventura retirou-se das negociações e prometeu votar contra um Orçamento que ainda não conhece. Ventura fê-lo dizendo sentir-se “excluído” e “traído” e queixou-se de tudo isto numa carta enviada a Luís Montenegro que rapidamente foi tornada pública. O facto de não conseguir manter a confiabilidade, a coerência e a seriedade política não estará, seguramente, relacionado com essa exclusão. É – só pode ser – uma conspiração global, intergalática, universal, contra o Chega.

Rui Rocha, que ainda há meses se enamorara por Luís Montenegro, descobriu agora que o PSD talvez não seja tão reformista como a Iniciativa Liberal deseja e ambiciona. Se assim for, jura, então também votará contra o Orçamento do Estado. Rocha vai esperar para ver o documento, claro, mas já ninguém o segura: está visto que este Montenegro não vai a lado nenhum. O presidente da IL poderia ter percebido isso durante a última corrida eleitoral e ter feito uma campanha mais competente contra o voto útil à direita, por exemplo. Mas não teve essa clareza de espírito. Se o tivesse feito, talvez, e só talvez, a IL fosse hoje politicamente mais relevante e conseguisse, de facto, condicionar o Governo de Luís Montenegro. Rui Rocha aprenderá seguramente a lição e será mais exigente nas negociações para as várias coligações autárquicas que pretende fazer por todo o país com o tal PSD que se limita a ser igual ao PS.

Ainda à direita, as três últimas iniciativas políticas do CDS de relevo ajudam a perceber o porquê de o partido ter ficado perto da extinção: à boleia da polémica em torno das pugilistas Imane Khelif e Lin Yu-tinga, apresentou, no Parlamento português (!), um voto de condenação pela “participação desigual de atletas femininos e masculinos nos Jogos Olímpicos” de Paris; arreliou-se e comprou uma guerra com o parceiro de Governo por causa da referência às “pessoas que menstruam”; e exigiu que o Governo não mexesse um músculo pela eutanásia. Antes disso, tinham conseguido garantir a celebração anual do 25 de Novembro. Nos intervalos, os democratas-cristãos estarão a dar enormíssimos contributos para a governação e para a resolução dos problemas do país. Um dia dirão exatamente quais e farão campanha política por essas propostas com a marca CDS.

À esquerda, os diálogos vão-se repetindo, sem grande imaginação. Mariana Mortágua, em dificuldades evidentes para encontrar um rumo para o Bloco de Esquerda depois de herdar um partido em crise, parece estar resignada em ser uma espécie de grilo falante de Pedro Nuno Santos: ora o tenta convencer a construir uma plataforma à esquerda, ora vai o avisando de que, se ousar viabilizar o Orçamento de direita, então será tão de direita como os adversários de direita. Em contrapartida, Paulo Raimundo, que tem a sua rentrée este fim de semana, está empenhado em deixar o PCP substancial e orgulhosamente mais só. Rui Tavares, meio desaparecido, estará, muito provavelmente, a estudar que projetos piloto vai propor nos próximos meses para transformar o país-laboratório do Livre. E Inês Sousa Real encontra-se em parte incerta – há muito tempo, de resto.

Existe ainda Marcelo Rebelo de Sousa, cuja missão parece ser repetir, a cada oportunidade, que o Orçamento do Estado tem de ser aprovado, que um eventual chumbo seria mau para o país e que os portugueses não compreenderiam uma crise política nesta altura. É muito provável que esteja coberto de razão. Pena não ter tido a mesma clarividência em 2021,  quando foi o primeiro a falar no cenário de eleições antecipadas caso o Orçamento fosse chumbado. António Costa chamou-lhe um figo, usou a crise política para se vitimizar e conseguiu uma maioria absoluta que não correu particularmente bem — ao PS, mas sobretudo ao país. Em coerência, Marcelo deveria fazer o mesmo se o chumbo se repetisse este ano: dissolução e eleições antecipadas. Mas não parece muito interessado em ficar com o bebé no colo. Percebe-se porquê: não há grandes razões para esperar que o guião mude muito. Nem para melhor.