A petição que pede a deportação de Mamadou Ba depois de este ter afirmado que Marcelino da Mata é um “criminoso de guerra” é uma excelente oportunidade para medirmos a convicção com que estamos disponíveis para defender a democracia liberal e a liberdade de expressão.

Antes de mais, é importante recordar que a liberdade de expressão é um pilar fundamental das sociedades democráticas, quer numa perspetiva puramente liberal, enquanto afirmação da liberdade individual face a tentativas de modelação do discurso por parte de outros indivíduos, grupos, ou do próprio Estado, quer numa perspetiva de igualdade de direitos perante os outros.

Depois, sabendo que este é terreno melindroso e que se presta a emoções que facilmente toldam a racionalidade e impulsionam a ânsia de ver escrito o que de facto não está, importa assentar alguns pontos essenciais:

  • O que se pretende aqui é tomar posição sobre o pedido de deportação e não sobre outras reações políticas ou de censura social às palavras em causa;
  • Não está em análise o valor ou desvalor das ações de Marcelino da Mata;
  • Como direito fundamental que é, as limitações à liberdade de expressão devem ser sempre interpretadas com natureza fortemente restritiva;
  • Não estão aqui em causa afirmações anteriores de Ba, desde logo porque o entendimento da liberdade de expressão como direito fundamental não permite admitir uma espécie de carta da liberdade por pontos em que se vão perdendo créditos por eventuais palavras proferidas anteriormente;
  • É fundamental distinguir “delito” de “discurso do ódio” e este de “ódio no discurso”.

Este último ponto requer mais algum esclarecimento, nomeadamente no que diz respeito à distinção entre “discurso do ódio” e “ódio no discurso” (quanto ao delito, a sua existência deve medir-se na sua relação com a norma jurídica). Tratando-se de fórmulas ainda pouco consolidadas na discussão jurídica e política, parece-me essencial afirmar a diferença entre discurso de natureza hostil sem incitamento à violência (ódio no discurso), de discurso hostil em que o incitamento está presente (discurso do ódio). Tendo como ponto de partida que as limitações à liberdade de expressão devem ser sempre interpretadas de forma restritiva, o grau de limitação eventualmente admissível deve ter em conta, em todas as circunstâncias, se o elemento do incitamento está ou não presente.

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Esclarecidos estes pontos prévios, é tempo de tomar posição sobre o pedido de deportação de Ba, não entrando noutras apreciações sobre a sua viabilidade jurídica e focando a questão no aspeto essencial que me parece ser o da liberdade de expressão.

Ora, a essa luz, a ameaça da deportação, num certo sentido mais grave do que a ameaça de prisão, uma vez que tirar uma “terra” que é sua por direito a alguém é uma compressão da liberdade mais extensa do que a limitação ao espaço da cela – não por acaso o ostracismo na antiga Grécia era uma forma de punição política – é uma inadmissível tentativa de silenciamento, incompatível com os princípios da democracia liberal que queremos afirmar.

A liberdade de expressão não serve de nada se apenas for invocada para defender o discurso e o pensamento dos que nos estão próximos. A ameaça à democracia e à liberdade não está, neste caso, nas palavras de Mamadou Ba aqui em análise, por muito violentas que possam parecer a quem tem uma visão épica das ações de Marcelino da Mata, mas na tentativa de confinamento do discurso por via de uma ameaça de expulsão por palavras que mais de 25 mil cidadãos já subscreveram. Num tempo em que nos movemos em terreno movediço, é urgente vir à superfície, respirar e preservar o essencial.