É uma lei irrevogável da política portuguesa: quando um Presidente da República discursa, transforma-se numa esfinge. Em vez de revelar, esconde; em vez de iluminar, dissimula; em vez de esclarecer, confunde. A última aparição deste estranho fenómeno deu-se com o discurso de Ano Novo de Marcelo Rebelo de Sousa. Lendo tudo e ouvindo tudo, conclui-se que cada palavra do Presidente tinha (pelo menos) duas interpretações.

O PS, por exemplo, escutou o Presidente com invulgar dedicação e, mesmo assim, ficou com a firme impressão que Marcelo estava a alertar o país para os “extremismos e radicalismos que atingem outros países europeus” e a soprar a trombeta do combate contra “os fenómenos populistas”. E o BE, igualmente atento e sempre à procura da batalha seguinte, achou, com toda a seriedade, que Marcelo estava a falar “dos Bolsonaros” (pelos vistos, há mais do que um) e a convocar a cidadania para “um combate largo contra a extrema-direita que pretende destruir o regime democrático”.

Uma pessoa lê isto e fica ligeiramente perplexa. É que eu não ouvi nada disso. De acordo com o PS e o BE, o Presidente passou o seu discurso de Ano Novo a falar de um possível futuro — quando eu, que escutei tudo com a atenção que dedico a uma missa, fiquei convencidíssimo de que Marcelo estava a falar do presente; e, de acordo com os mesmíssimos partidos, parece que o objetivo de Marcelo era tentar proteger Portugal da temida chegada dos “populismos”, dos “extremismos” e dos “radicalismos” — quando eu, peço desculpa, achei que o seu objetivo era proteger-nos (Deus o abençoe) dos “populismos”, dos “extremismos” e dos “radicalismos” que já temos cá dentro.

Honestamente, acho que não estou a delirar. Quando o Presidente da República afirmou, didático, que, “com o mundo e a Europa como se encontram, bom senso é fundamental” estava de certeza a advertir contra o Bloco de Esquerda, que defende a saída de Portugal da NATO e a implosão da Organização Mundial do Comércio, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial; e estava, claro, a alertar-nos contra o PCP, que exige “romper” com aquilo que diz ser “a conivência e subserviência face à União Europeia e à NATO”, ao mesmo tempo que elogia as maravilhas do regime norte-coreano e critica as injustiças contra a Venezuela chavista.

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A sério: serei eu que estou a ver mal a coisa? Quando Marcelo Rebelo de Sousa atacou os “radicalismos temerários”, estava seguramente a lembrar a promessa do Bloco de Esquerda de retomar o “controlo público” e a nacionalização do “sistema bancário”. Mais: quando falou em “riscos indesejáveis”, estava obviamente a apontar para as consequências nefastas, hoje indesmentíveis, do regresso às 35 horas na função pública no SNS, ou para o apelo do BE a que se acabe cegamente com as PPP na Saúde.

Não vejo onde possa haver equívocos. Quando o Presidente da República disse no seu discurso que “não há ditadura, mesmo a mais sedutora, que substitua a democracia, mesmo a mais imperfeita”, estava obviamente a criticar o facto de o governo português ter optado por uma dependência económica crescente de “ditaduras sedutoras”, como a chinesa e a angolana, em vez de procurar parcerias mais robustas com democracias, “mesmo imperfeitas”, que prefiram o capitalismo das empresas ao capitalismo do Estado. E, quando o Presidente falou contra as “arrogâncias intoleráveis” em política, estava sem qualquer dúvida a criticar António Costa pela forma como costuma referir-se ao anterior governo ou aos líderes partidários que o criticam no Parlamento.

A interpretação que o PS e o BE fizeram do discurso de Ano Novo do Presidente estava, como se vê, absolutamente errada. Aliás, não podia ser de outra maneira: porque é que Marcelo havia de perder tempo a criticar os “populismos”, os “extremismos” e os “radicalismos” dos outros, em vez de enfrentar os nossos? De qualquer forma, para evitar dúvidas, era preferível que os discursos presidenciais portugueses viessem sempre acompanhados por um sistema de tradução automática. O combate aos populismos exige clareza.