Sempre gostei de aprender línguas. Em miúdo, era o único dos meus amigos que não ficava aborrecido quando começava o genérico do “Follow Me!”, um programa que ensinava a falar inglês. Gostava muito dos sorrisos forçados e da dicção exageradamente cuidada dos actores, a fazerem lembrar os adultos da minha família quando estavam ligeiramente ébrios e não queriam que as crianças percebessem. Sem sucesso, claro.

Foi, por isso, com grande entusiasmo que soube do site ABCLGBTQIA+, que tem como objectivo ensinar a falar inclusivo. Pelo que me é dado a perceber, é uma língua criada de raiz. Como o dohtraki, falada pelos cavaleiros nómadas da Guerra dos Tronos. Se bem que, há que reconhecer, ao nível de línguas de fantasia, George RR Martin esforçou-se muito mais do que os inventores do ABCLGBTQIA+, que devem ter achado que basta o idioma ter um nome giro e depois não é preciso trabalhar os aspectos mais técnicos, como a coerência interna da língua, que é inexistente. Queriam um bê-á-bá que elucidasse, saiu-lhes um bê-á-baço que obscurece. Acaba por ser uma espécie de língua dos pês, aquela algaraviada que as crianças falam. A diferença é que as crianças falam a língua dos pês para que os adultos não percebam o que estão a dizer, enquanto quem fala esta ABCLGBTQIA+ exige que toda a gente os entenda e aceite o que dizem.

É pena, porque, de início, a língua soa tanto a português que até parece ser fácil de aprender. Mas, vai-se a ver, e as palavras que se dizem e escrevem como na nossa língua, afinal querem dizer outra coisa. É o caso de “lésbica”. Em português, quer dizer “mulher que sente atracção sexual por outras mulheres”. Em ABCLGBTQIA+, “lésbica” é “mulher que se sente atraída, romântica e afectivamente, por pessoas do mesmo género”. Soam iguais, mas não significam o mesmo. São falsos cognatos, como acontece, por exemplo, com “actually”, em inglês, e “actualmente”, em português. Actualmente, querem muito que lésbica signifique aquilo, mas actually, não significa.

A definição de “lésbica” tem graves problemas de lógica. Na filosofia da ABCLGBTQIA+, o género é uma característica auto-identificada, que só a própria pessoa consegue definir e pode determinar. Sendo assim, como é que a mulher lésbica sabe que a outra pessoa por quem se sente atraída é do seu género? Não pode, a priori, saber qual é. Vai ter de perguntar e só então decidir. A não ser que estas novas lésbicas sejam telepatas. Se não forem, é um bocado esquisito, isto de precisar saber se o género de outra pessoa é o mesmo do seu, antes de se sentir ou não atraída. É como um guloso olhar para um arroz-doce e só saber se lhe pode crescer água na boca se o arroz-doce se identificar mesmo como arroz-doce.

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O que nos traz à segunda incongruência na definição de “lésbica”: se, ao dia de hoje, existem centenas de identidades de género por onde escolher, algumas delas miscelâneas de várias identidades de género, outras concebidas especificamente pelo utilizador, qual a probabilidade de uma mulher encontrar alguém que tenha exactamente o mesmo género? Descobrir uma parceira é como fazer pontaria de olhos fechados e acertar numa moeda de 5 cêntimos a 2 km, só com um tiro. Depois de rodar o tambor de um revólver carregado só com uma bala. E isto tudo sendo mulher, o que torna a façanha ainda mais difícil, porque as mulheres têm menos jeito para estas coisas. Das duas, uma: ou as novas lésbicas têm muita sorte ao jogo, ou vão-se extinguir num instante.

Ou seja, esta língua precisa de ser mais trabalhada. Ainda não tem condições para estar na app Duolingo – ao contrário do Klingon, a língua de uns dos extraterrestres da Star Trek. Digamos que ainda não é um esperanto, é apenas um esperhã? Importa-se de repetir? Ou, como diria um dothraki: “Hash me laz indee jin eveth”.*

Ponto intermédio: eu sei que este exercício que acabo de fazer vai ser considerado como “apagamento” ou “transfobia”, ou outras expressões de vitimização – a maioria, curiosamente, também palavras inventadas da nova língua – que agora se usam. Sei que dirão que sou homem branco hetero cis – o que é estranho, porque nunca me auto-identifiquei em público e é muito feio assumir – numa atitude denunciadora reminiscente dos dazibao da Revolução Cultural. E sei também que o que digo cai no âmbito de duas propostas de lei, recentemente apresentadas pelo Bloco de Esquerda e pelo Livre, que introduzem em Portugal a moda da proibição das chamadas “terapias de conversão”.

Essa criminalização é uma amálgama que já está a ser feita noutros países. Consiste em equivaler uma terapia cujo objectivo é forçar um homossexual a deixar de o ser (sou contra essas práticas), com qualquer tentativa que os pais possam fazer para impedir uma criança de 7 anos, que diz que é do outro sexo, de embarcar num processo de transição que implica alterações físicas, mentais e hormonais profundas com repercussões na vida futura. Uma mãe que não aceda imediatamente aos desejos do filho, que procure um psicólogo para perceber a que se deve a disforia de género, para o ajudar e para se ajudar a si, uma mãe que questione o que está por detrás dessa atitude, que não afirme positivamente a nova identidade, essa mãe, à luz das leis do Bloco e do Livre, será uma criminosa.

(Nos EUA, há escolas que escondem dos pais a mudança de sexo dos filhos, para que estes não os possam “converter”. No Canadá, um pai foi preso por continuar a referir-se à filha como filha, depois de, sem a sua autorização, a mãe e o tribunal terem permitido que ela fizesse a “transição”).

Se isto for para a frente, estou bem tramado. Só nestas férias, já converti o meu filho à sopa, à lavagem dos dentes, ao uso de chapéu quando está sol, ao Sporting (uma reconversão, à conta de influências nefastas que o estavam a levar por maus caminhos) e a mais uma ou duas coisas em que ele estava mesmo convencido que tinha razão, com toda a convicção que só os três anos trazem.

A minha filha tem 11 anos e eu não a deixo ter TikTok, mas, se ela quiser transformar-se num rapaz, tomar bloqueadores de puberdade e testosterona, o Bloco e o Livre obrigam-me a facilitar. Embora me deixem continuar a proibi-la de ter TikTok. Perdão, a proibi-lo.

A amalgamação entre a conversão de uma pessoa homossexual e de uma pessoa transgénero é uma incongruência de que padecem estas propostas. Muitas vezes, afirmar a identidade trans de uma pessoa é negar-lhe a identidade homossexual. É, no jargão técnico, convertê-la. Um rapaz que se sinta atraído por outros rapazes será um homossexual ou uma rapariga? E se a mãe dele quiser afirmar a sua homossexualidade, mas o pai preferir afirmar a transexualidade? Quem é que o Livre e o BE sugerem que ganhe?

Mas o termo “conversão” acaba por ser bem aplicado a este tema. Porque é justamente em “conversão” que eu penso quando me querem convencer que um homem que se declara mulher é, na realidade, uma mulher. Notem: não é quando me querem convencer que um homem que se declara mulher julga que é uma mulher. Disso não preciso de ser convencido. Eu acredito que ele acredita. Só não acredito que ele é. E, por mais gritaria, por mais choradeira, por mais abecedários que façam, é impossível obrigarem-me a olhar para um homem e ver uma mulher.

Vejamos. Eu conheço muita gente que acredita que, em 1917, uma mulher falecida há quase dois mil anos na província romana da Judeia, visitou, durante uns meses, três crianças em Fátima. Alguns são meus amigos ou familiares e sei que todos levam a sua crença muito a sério, mas posso garantir que, por mais apaixonada que seja a defesa que fazem da sua fé, nunca nenhum me quis obrigar a reconhecer que Nossa Senhora esteve mesmo em Fátima. E, lá está, eu acredito que eles acreditam mesmo nas aparições. Só não acredito nas aparições.

A questão é que ao activismo trans não basta que a sociedade reconheça quem se identifica com outro sexo, exige também que quem se identifica com o outro sexo tenha os direitos específicos desse sexo. Por exemplo, que um homem que se considera mulher possa cumprir pena numa prisão de mulheres, ou competir desportivamente contra mulheres, ou frequentar um centro de apoio a mulheres vítimas de violência sexual, ou ocupar quotas destinadas a mulheres. Ora, sucede que uma mulher trans não é uma mulher. Da mesma forma que leite de soja não é leite, por mais branco e fresquinho que seja. Até pode ser empacotado e publicitado como leite, mas não é leite. Como, aliás, quem gosta de leite percebe pelo sabor. Dir-me-ão os activistas: “Mas o leite de soja não se auto-identifica!” E têm razão. Até a aguadilha retirada de feijões sabe que a realidade se borrifa para a ideia que fazem dela.

Se um homem condenado por violação diz que é inocente, nós não acreditamos, pois há provas em contrário. Mas se diz que é uma mulher, temos de acreditar, apesar de também haver provas em contrário.

E faz tanto sentido que as competições desportivas femininas estejam abertas a homens que acreditam ser mulheres, como a homens que acreditam em Fátima. Um “fia-te na Virgem e corre”.

Há dias, Marcelo Rebelo de Sousa disse: “Só haverá verdadeiramente igualdade entre homens e mulheres quando chegar aos mais altos postos uma mulher tão incompetente como chega, em inúmeros casos, um homem”. Pelos vistos, enganou-se: pode ser bastante antes. Basta que o homem que lá está anuncie: “Sou uma mulher!” Pode ser ainda hoje.

Quando eu era criança, lia uma banda desenhada com o Clube do Bolinha, em que menina não entrava. Agora há os clubes dos bolinhas: se a menina tiver duas, consegue entrar em todo o lado. Basta fazer “tucking”, que também está no léxico ABCLGBTQIA+ e significa “Processo para esconder o pénis e torná-lo menos visível”.

De acordo com o Evangelho de São João, São Tomé passou a acreditar na ressurreição de Cristo depois de ter colocado o dedo num buraco que Jesus não tinha de origem e que entretanto passou a ter, mas neste caso isso não me vai bastar. Sou mais céptico em relação a ilusões cirúrgicas. Por mais insistentes que sejam os evangelizadores. E são muito insistentes, estes activistas. São uma espécie de Testemunhas de Jeová, se Jeová tivesse transicionado para Jeovanessa.

Este activismo trans lembra o Santo Ofício a exigir que todos fossem convertidos ao catolicismo. O que é uma maçada. Não vão descansar enquanto não nos obrigarem a admitir que um homem é uma mulher. Para provarem à Inquisição que já não eram judeus, os cristãos-novos inventaram a alheira. Está visto que, para que a Nova Inquisição não me aborreça, também vou ter de fingir que vejo um chouriço onde ele não existe.

* “Esta língua é estúpida. Até eu, selvagem inventado de uma série de fantasia, sei o que é uma lésbica, pá”