No passado dia 13 de Outubro, o Papa Francisco canonizou, entre outros, John Henry Newman, que o seu antecessor, Bento XVI, tinha beatificado em 2010. Newman foi um destacado membro da igreja anglicana e chefe do Movimento de Oxford, tendo-se depois convertido à fé católica. Ordenado presbítero, viria a ser nomeado cardeal, sem nunca ter sido bispo, pelo Papa Leão XIII, em 1879.

São de grande profundidade e pertinência as suas considerações filosófico-teológicas sobre a consciência. Na moral pessoal, como na ética social, é frequente invocar a consciência individual como máxima autoridade, porque se entende que, nessas questões, não há verdades objectivas e universais e, portanto, qualquer opção que decorra da própria consciência já está, ipso facto, legitimada. O recurso à consciência individual justifica-se, numa moral autónoma, pela suposição de que a ética não pertence ao âmbito do saber e da verdade, mas do querer e da vontade, ou seja, da exclusiva liberdade pessoal. Se à decisão moral, em consciência, lhe basta ser livre, é porque se entende que não há verdades éticas que sejam objectivas e universais.

Na sua mensagem natalícia à cúria romana, a 20 de Dezembro de 2010, o Papa Bento XVI disse: “No pensamento moderno, a palavra ‘consciência’ significa que, em matéria de moral e de religião, a dimensão subjectiva, o indivíduo, constitui a última instância de decisão. O mundo é repartido pelos âmbitos do objectivo e do subjectivo. Ao objectivo pertencem as coisas que se podem calcular e verificar através da experiência. Uma vez que a religião e a moral se subtraem a estes métodos, são consideradas como âmbito do subjectivo. Aqui não haveria, em última análise, critérios objectivos. Por isso, a última instância que aqui pode decidir seria apenas o sujeito; e é isto precisamente o que se exprime com a palavra ‘consciência’: neste âmbito, pode decidir apenas o indivíduo, o individuo com as suas intuições e experiências”.

Esta noção, essencialmente subjectiva e relativista, da consciência moral explica que alguns líderes partidários entendam que não se pode impor o sentido do voto em questões de índole moral, como o aborto, a eutanásia ou outras causas fracturantes. A suposta inexistência, nestas matérias, de verdades objectivas universais, precisamente por serem questões morais, obrigaria a recorrer à libérrima consciência pessoal.

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Não era este, contudo, o entendimento de Newman, como sublinhou Bento XVI nessa sua alocução: “Para ele, ‘consciência’ significa a capacidade de verdade do homem: a capacidade de reconhecer, precisamente nos âmbitos decisivos da sua existência – religião e moral –, uma verdade, a verdade. E, com isto, a consciência, a capacidade do homem de reconhecer a verdade, impõe-lhe, ao mesmo tempo, o dever de se encaminhar para a verdade, procurá-la e submeter-se a ela onde quer que a encontre. Consciência é capacidade de verdade e obediência à verdade, que se mostra ao homem que procura de coração aberto. O caminho das conversões de Newman é um caminho da consciência: um caminho não da subjectividade que se afirma, mas, precisamente ao contrário, da obediência à verdade que pouco a pouco se abria para ele.

Quer isto dizer, portanto, que não cabe apelo à consciência numa matéria essencialmente opinável, onde não há uma verdade objectiva e universal. Por exemplo, não faria sentido que um deputado dissesse que, em consciência, é a favor ou contra a regionalização, porque não se trata de uma opção moral, mas exclusivamente técnica. Também não seria razoável afirmar que a soma de dois mais dois é a que cada qual, em consciência, entender. Na ciência há verdades objectivas e universais: dois mais dois são quatro. Na ética também: todos os seres humanos têm igual dignidade. É, aliás, por esta razão que os direitos fundamentais não são opináveis e, por isso, não se votam, nem plebiscitam.

A nenhum humanista democrata lhe aflige que o Estado não permita, mesmo opondo-se à maioria dos cidadãos, a escravatura, o racismo, ou a exploração infantil, mas há quem admita, pelo contrário, a eliminação de um ser humano ainda não nascido, ou de uma pessoa em sofrimento. Ora, se estas questões são tão morais como aquelas, que já constam das declarações de direitos fundamentais, não se percebe por que razão a escravatura, o racismo ou a exploração infantil não são discutíveis numa sociedade democrática, mas o aborto e a eutanásia podem ser deixados ao livre arbítrio dos deputados, ou dos cidadãos. Se não faz sentido questionar a dignidade humana, nem os direitos fundamentais, também não é razoável deixar à liberdade dos membros do parlamento, ou dos eleitores, o valor de uma vida humana inocente, em gestação ou em fim de vida. A dignidade dos seres humanos e os direitos fundamentais não são referendáveis.

Não obstante a contradição entre a noção objectiva e universal de consciência e a sua acepção subjectiva e relativa, Bento XVI comentou: “Para poder afirmar a identidade entre o conceito que Newman tinha da consciência e a noção subjectiva moderna da consciência, comprazem-se em fazer referência à sua palavra, segundo a qual ele – no caso de ter de fazer um brinde – teria brindado primeiro à consciência e depois ao Papa. Mas, nesta afirmação, ‘consciência’ não significa a obrigatoriedade última da intuição subjectiva; é a expressão da acessibilidade e da força vinculadora da verdade: nisto se funda o seu primado. Ao Papa pode ser dedicado o segundo brinde, porque a sua missão é exigir a obediência à verdade.

É possível que esta referência a uma autoridade alheia ao poder político democrático incomode quem defende uma sociedade laica, independente de qualquer ingerência confessional. Seja. Contudo, em relação às questões científicas, nomeadamente em matéria ambiental, exige-se aos políticos que sejam sensíveis ao que a comunidade científica sabe sobre as alterações climáticas, não obstante a falta de legitimidade democrática dos seus pareceres. Portanto, se em questões de ordem ecológica, os decisores políticos devem decidir em função da verdade científica, que lhes é transmitida pelos respectivos especialistas, em questões éticas, também deveriam ter em conta o parecer das autoridades morais mundiais, como o Papa e outros líderes religiosos.

Salvo melhor opinião, a etimologia do termo ‘consciência’ apela, mais do que à liberdade de uma decisão individual, ao conhecimento objectivo em que se fundamenta essa opção. Com efeito, diz-se que algo é feito com consciência, ou conscienciosamente, quando é realizado com conhecimento de causa: ‘consciência’ é, afinal, a forma contraída da expressão ‘com ciência’. Quer isto dizer que não pode decidir em consciência quem carece do conhecimento, científico ou ético, pertinente à questão.

Não basta que o poder seja formalmente legítimo, porque eleito democraticamente, pois também o nacional-socialismo foi sufragado pelo voto popular. Os regimes totalitários da Coreia do Norte e de Cuba, por exemplo, também fazem eleições que, no entanto, não justificam, em termos éticos, o exercício despótico do poder, no maior desrespeito pelos direitos humanos.

Para que uma ordem normativa seja, verdadeiramente, uma ordem de direito e do direito é necessário que reconheça a dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma verdade objectiva e universal, uma exigência ética de que não se pode abdicar e que justifica a proscrição da escravatura, do racismo ou da exploração infantil. Que esta ordem valorativa seja também partilhada pela Igreja católica e outras religiões é apenas, como relembrava D’Agostino, o reflexo da dimensão civilizacional que o direito comporta.

Os cidadãos, como os deputados, podem e devem discutir e votar as soluções técnicas que, por não decorrerem de verdades objectivas e universais, são opináveis. Mas a liberdade, a dignidade humana e o direito à vida são, como todos os direitos fundamentais, princípios irrenunciáveis, que não se discutem, não se votam, nem se plebiscitam. Os direitos fundamentais não se referendam. Só a defesa da liberdade, da dignidade e da vida humana inocente, desde a concepção e até à morte natural, é susceptível de fundar uma sociedade humanista verdadeiramente livre e democrática.