O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos” (Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago)

Quem era Jesus? Terá sido um homem inquestionavelmente bom, uma espécie de Robin Hood que roubava amor a si próprio para dar aos outros? Terá sido apenas um homem com uma perturbação mental indizível no seu tempo? Terá sido um revolucionário pé descalço cuja intenção saiu completamente furada após séculos de História onde a Igreja derrubou todos os possíveis sonhos de amor e compreensão que Jesus desejou construir? Seria Jesus um comunista extremamente adiantado no tempo, que sabia, citando Marx, que a desvalorização do mundo humano aumentaria em proporção direta com a valorização do mundo das coisas? Jesus não era político, embora a Igreja pareça gostar tanto de poder como muitos políticos.

Como seria contar a Jesus Cristo tudo o que aconteceu em dois milénios de História? Será que os católicos de hoje conseguiriam convencer Jesus a juntar-se à milenar comunidade que se criou em seu redor? Ou será que Jesus diria, com desespero e agonia, “não era nada disto que eu queria”.

É um mundo de incongruências estranhas. O mesmo mundo que luta pela igualdade de género avidamente, que desdenha o patriarcado e o machismo, um mundo que apoia não duas, mas muitas identidades de género é o mesmo mundo que apoia e faz uma festa tremenda para uma Instituição onde o casamento homossexual é “uma união não ordenada ao desígnio do Criador”. O mesmo mundo onde o filme da Barbie, bandeira feminista, já arrecadou 775 milhões de euros é o mesmo mundo que acolhe uma Igreja onde as mulheres não podem ser padres, muito menos Papas. Um mundo que é capaz de gritar no mesmo dia “As mulheres podem tudo” e “As mulheres não podem nada”. É um mundo com dois pesos e duas medidas para tudo, é uma geração alegre, sem dúvida, mas também parece uma geração que não sabe o que quer. É uma geração que, mais do que nunca luta pela liberdade de sermos o que quisermos, seja homem, mulher, metade homem, metade mulher, o que desejarmos. Mas é uma geração adormecida, uma geração que perdoa à Igreja coisas que não perdoaria se calhar a um vizinho homofóbico.

Papa Francisco citou José Saramago, que talvez desse voltas na tumba se o soubesse. É um gesto nobre, fica bem citar um ateu, ainda por cima vetado pelo seu próprio país, dá uma falsa percepção de que a Igreja apoia as obras dos ateus. Não deixa de ser estranho, ainda que tenha sido obviamente num contexto de valorização de Portugal e da cultura portuguesa. Teria sido, no entanto, deveras mais engraçado se o Papa Francisco tivesse recomendado a leitura do Evangelho Segundo Jesus Cristo aos jovens ou, pelo menos, para começar, o Ensaio sobre a Cegueira.

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Uma pessoa sozinha não existe. Só se existe em relação”. Para quem tem acompanhado a JMJ, poderia muito bem ser uma frase do Papa Francisco, mas é, na verdade, uma frase de António Coimbra de Matos. A diferença é que um o diz em nome de Deus e outro em nome da saúde mental. Ninguém pode dizer que os jovens não têm estado juntos nos últimos dias, pelo menos é evidente que se pratica o moche, mas isso também nos festivais de verão. No fundo, a JMJ tem sido um festival de verão em esteroides, um festival onde todos pagam a homens vestidos de preto, roxo e branco para os ouvirem dizer que Deus é grande e que são amados. Pagamos a uma instituição cheia de homens, mas a atualidade é feita de uma luta constante para tentar diminuir as desigualdades salariais entre homens e mulheres.

Nem tudo faz sentido, mas a alegria faz sentido, a felicidade faz sentido e nada disso me faz comichão. Ser jovem é dançar, é cantar, é viver, talvez só não me faça sentido que se cante esta canção. Sou ateia de gema, ninguém me baptizou e eu também nunca quis ser baptizada. Passei muitas tardes na casa dos meus avós maternos e gostava incansavelmente de brincar com eles e de os provocar inocentemente ao dizer que “descendíamos dos macacos” só para poder ouvir a minha avó afirmar, com cómica revolta, que Deus é que criou os Homens. Nunca soube uma oração do início ao fim para infelicidade da minha avó. Ela estranhava que eu não visse Deus e eu estranhava que ela o visse tão bem. Sempre achei que tinham acontecido demasiadas coisas más à minha avó para ela acreditar em Deus. Se Deus era bom, por que razão traria infelicidade? Sim, já me ensinaram que é por causa dos pecados dos Homens, mas então Deus seria muito incongruente por castigar uns e não outros, como se fosse afinal o céu um jogo de lotaria.

Woody Allen, no filme Shadows and Fog, disse que toda a gente gostava de ilusões, que todos precisamos delas como precisamos do ar. Talvez seja um elemento belo de ligação entre crentes e não crentes. Sou ateia, mas em momentos de desespero já me vi a pedir ajuda, a pedir um conforto, não a Deus, mas a mim própria, uma espécie de diálogo interno porque não acredito que Deus algum me esteja a escutar. Mas acreditar ou não num Deus qualquer é um problema menor, e não é isso que nos divide.

No meio das ilusões da fé, e do medo de sermos apenas o que somos, fica a maior ilusão de todas – a de que caminhamos para um futuro luminoso. O Papa Francisco até pode tentar falar nas entrelinhas e prova disso é que até Saramago citou, mas os jovens não aproveitam a deixa para revolucionar a Igreja, para pensar porque condenam todos os dias questões na atualidade, na política, na cultura, que não condenam na Igreja. Já se cancelaram clássicos da Walt Disney por muito menos. A Branca de Neve e a Bela Adormecida já não podem ser salvas por um beijo não consentido do príncipe, mas a Holy Church ainda pode excluir as mulheres de quase todas as funções, ainda pode condenar o aborto, ainda pode condenar a utilização de métodos contraceptivos, ainda pode condenar o casamento homossexual. A Igreja ainda pode condenar quase tudo e mesmo assim ser a estrela pop que é hoje. Não há condições para lutar por um mundo diferente se a importância que damos à Igreja ainda é deste tamanho.