Ninguém passa pelo Bairro da Boavista a não ser que lá vá expressamente. Um bairro de origem social, pobre, entalado entre a encosta de Monsanto e a CRIL (ou IC 17, uma via rápida com largura e características de auto-estrada), limitado numa ponta pelo Estádio Pina Manique e, na outra ponta, pelo campo de rugby do Direito. Freguesia de Benfica. No centro do bairro, perto das mercearias, supermercado, café, e outras pequenas lojas de consumo básico diário, há uma esquadra da PSP, a 43ª esquadra de Lisboa, que funciona num edifício cuja propriedade é da Câmara Municipal. No interior dessa esquadra esteve uma caixa multibanco do BPI. Essa caixa foi retirada, ao fim de 14 anos, depois do banco avisar os clientes através de um papel afixado na parede com 24 horas de antecedência. Se, em termos genéricos, Portugal tem uma população cada vez mais envelhecida, na Boavista essa fragilidade vê-se em todos os gestos lentos e hesitantes da vida no bairro. São pessoas pobres, levantam pouco dinheiro de cada vez, e agora a caixa mais próxima fica na bomba da Repsol. Fica longe; para lá chegar é preciso percorrer um caminho mau e, como se isso não bastasse, as pessoas têm medo de ser assaltadas.
Já sabemos que os bancos portugueses alcançam o pior de dois mundos. Salvo a desafortunada Caixa Geral de Depósitos, são entidades privadas. Talvez pela dimensão que atingiram, num mercado empobrecido e pequeno; talvez pela boa relação uns com os outros, e com o poder político, orientam-se pelos mais baixos critérios dos privados e pelos mais torpes vícios das empresas públicas. Cada vez cobram mais comissões, cada vez tratam menos bem os clientes e, ainda por cima, cada vez destinam menos despesa para a ociosa formalidade de se relacionarem com eles. Mas temos de enfrentar as coisas como elas são, vivemos neste mundo e não noutro. Os bancos comportam-se assim, faz parte dos factos da vida. É em situações destas que o Estado deve intervir. No Bairro da Boavista, as pessoas debilitadas, com dificuldade em andar, não têm alternativa nem segurança. Vão ao multibanco em situação de fragilidade e precisam de regressar a casa com o dinheiro que levantaram. Muitas vezes, precisam também de ajuda a lidar com os caprichos da própria maquineta. Por todas estas razões, os poderes públicos têm de negociar com o banco, neste caso o BPI, a reposição da caixa, ali, naquela mesma esquadra da polícia.
Ricardo Marques, presidente da junta de freguesia (pelo Partido Socialista), tomou uma atitude inteligente. Reuniu-se com os graduados do BPI para lhes dar a conhecer as suas intenções: o BPI tirava a caixa multibanco da esquadra, e ele tirava do BPI todas as contas bancárias da Junta, no valor arredondado de 15 milhões de euros. Ao senhor BPI não caiu bem esta perspectiva e, suportada uma noite mal dormida, voltou atrás e prometeu repor a caixa no mesmo sítio. A Câmara de Lisboa, como proprietária do edifício, deu imediatamente a indispensável autorização. Câmara e Junta de Freguesia articularam-se e desempenharam o seu papel. Mas o banco precisava do acordo escrito da esquadra da PSP.
Foi aqui que o enredo se complicou. A PSP não gostava da caixa multibanco. Aborrecia-se de lá ter “equipamentos ou funções” que não estivessem “directamente ligados à acção policial”. Explicava que os seus agentes tinham de se levantar, e abrir a porta, e por vezes chegavam à insensatez aberrante de ajudar as pessoas com a máquina. Onde é que uma coisa destas cabe na cabeça de alguém? A parte mais espantosa é que a PSP considerava ainda que aquela caixa multibanco “aumentava o risco sobre a esquadra”. Por outras palavras, a polícia explicou que tinha medo. E agora não despacha o processo. Nem para a frente, nem para trás, não há meio de assinar o papel.
Só que a esquadra não está em autogestão, tem quem mande nela. O Ministério da Administração Interna vai ter de pôr ordem ali. E, obviamente, fornecer os meios. Não é plausível que, num bairro como aquele, só esteja um agente da PSP, sozinho, ao serviço durante o dia todo. O ponto é que a Polícia não pode ter medo; e tem de ajudar a população. É inaceitável que o Estado se limite a um papel meramente punitivo e persecutório perante os cidadãos. A Polícia tem de se relacionar com a sociedade e contribuir para o seu bem-estar. Não pode servir apenas para vigiar o “populismo” ou perseguir o “discurso de ódio”.