Antes de partir para as termas onde, religiosamente, o Cónego Jeremias vai, por prescrição médica, todos os anos, fez-me saber que me queria falar. Encontrei-o muito bem-disposto, como se estivesse já a beneficiar dos bons ares e águas termais, que tanto bem fazem às suas artroses e joanetes.

– Então Senhor Cónego, ficou até agora em Lisboa para ir à JMJ?

Claro, porque também eu preciso de me converter a Cristo vivo na sua Igreja! E, se quer que lhe diga, fiquei impressionado pelo nível de muitas das catequeses. Gostei especialmente das intervenções de dois norte-americanos: o Bispo Robert Barron e Christopher West, um leigo especialista na teologia do corpo de São João Paulo II.

– Com certeza, mas daí a que o Senhor Cónego precise de se converter …

Não está o Papa Francisco empenhado em reformar a Igreja?! A reforma mais importante não é a da organização, nem da liturgia, nem da doutrina e da moral, que, sendo de Cristo, não podem ser alteradas. A reforma mais importante é a das pessoas, a começar por nós, sacerdotes e bispos. Se todos fossemos santos, pode crer que a Igreja não precisaria de nenhuma reforma!

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– Sem dúvida, mas dessa reforma ninguém fala …

Pois não, porque é a que custa mais e é também a que mais compromete! É muito fácil mudar as estruturas, ou os outros, difícil é mudarmos nós! E esta é a verdadeira conversão, que Deus espera da sua Igreja, de cada fiel. A verdade é que andam todos a ver se se convertem, mas não a Cristo, nem à Igreja …

– Então, a que se querem converter?

Não sabe?! É muito simples: as religiosas querem converter-se em padres, os padres querem converter-se em bispos, os bispos querem converter-se em arcebispos, os arcebispos querem converter-se em cardeais e os cardeais querem converter-se no Papa!

– A propósito, que me diz da surpreendente promoção de D. Américo a cardeal?!

Se quer que lhe diga, não me surpreendeu porque, à conta da JMJ, foi muitas vezes a Roma, falar directamente com o Santo Padre, que pôde assim conhecê-lo melhor e apreciar as suas qualidades. Como se disse na entrevista publicada no Observador, no passado 26-7, “durante a preparação da JMJ, D. Américo Aguiar” – acrescento-lhe o dom que o entrevistador, por falta de conhecimento, ou de educação, omitiu – “reuniu-se várias vezes com o Papa Francisco e estabeleceu com ele uma relação de proximidade.

– E se já não tiver a mesma proximidade com o Papa seguinte?

Não importa, porque não se trata de apoiar uma pessoa concreta, mas de servir a Igreja, seja quem for o Papa, até porque todos os Papas são diferentes: São João Paulo II não se parecia com São Paulo VI, nem Bento XVI com o seu antecessor, embora tivesse sido, durante vinte anos, o seu mais próximo colaborador. O mesmo se diga do Papa Francisco, que tem um estilo muito próprio, que também não se confunde com os seus antecessores: São João Paulo II era um santo; Bento XVI, um académico; e Francisco é sobretudo alguém preocupado com as causas sociais, como são os migrantes e a ecologia, a que até dedicou uma encíclica.

– E que me diz do anterior Patriarca de Lisboa?

D. Manuel Clemente é não apenas um homem de grande fé, mas também um grande vulto no panorama cultural português: não foi por acaso que lhe foi atribuído, com plena justiça, o prémio Pessoa. Honrou a ilustre tradição dos Patriarcas de Lisboa, com a sua sabedoria e virtude, que o clero diocesano fez a justiça de homenagear, em Óbidos, por ocasião do seu 75º aniversário.

– Então, porque deixou de ser Patriarca de Lisboa?

Os Bispos, ao chegarem aos 75 anos de idade, apresentam a sua demissão ao Papa, mas, se quiserem e o Santo Padre também, podem ficar mais algum tempo, como aconteceu com o Cardeal Policarpo. O Senhor D. Manuel, pensando no que era melhor para a diocese, pediu para sair logo que completasse os 75 anos, como aconteceu. Mais uma vez, a lógica do serviço prevaleceu sobre qualquer interesse pessoal.

– A propósito, como encara a polémica que se instalou em relação à proposta de dar o nome de D. Manuel Clemente à ponte pedonal no Parque Tejo?

Seria uma grande honra, não para o Patriarca cessante, que não precisa disso para nada, mas para a cidade. Mas a oposição era expectável, não porque o Senhor D. Manuel Clemente tenha alguma culpa, por acção ou omissão, em relação a qualquer caso de pedofilia na Igreja, porque a não tem, mas porque os inimigos da Igreja, que têm muito mau perder, sofreram agora duas grandes derrotas.

– Pode especificar?

Em primeiro lugar, ficaram furiosos porque as vítimas de abusos na Igreja católica, felizmente, são muito menos do que as 4.815 ‘estimadas’ pela comissão dita independente. Quando o Papa Francisco, de quem ficou famosa a referência a “todos, todos, todos”, recebeu as vítimas, quantas apareceram?! Não 4 mil, nem oitocentas, nem sequer 15, mas 13! Algumas talvez já tenham morrido e outras podem não ter querido comparecer, mas, mesmo assim, é evidente que era muito exagerado o número ‘estimado’ pela comissão e que os media repetiram como se fosse um facto, ou um dogma.

– Está a desvalorizar as vítimas dos abusos de menores na Igreja?

O Papa Francisco é que, na conferência de imprensa, no voo de regresso a Roma, criticou implicitamente a comissão e os media ao dizer que “os números, por vezes, acabam por ser exagerados”, e que “as notícias podem ter ampliado a situação”.

– E qual foi a segunda grande derrota?

A Jornada Mundial da Juventude! Um milhão e meio de crentes, de todo o mundo, na sua grande maioria jovens, a encher Lisboa com a alegria e o entusiasmo da fé! Foi magnífico! Inesquecível, também para os inimigos da Igreja, que não perdoam.

– E que me diz do novo Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério?

É excelente, como não podia deixar de ser. Uma pessoa muito discreta e próxima. Vindo das Forças Armadas, vai pôr o Patriarcado de Lisboa na ordem!

– Qual acha que vai ser a sua primeira missão?

Sem dúvida, a escolha dos seus mais directos colaboradores, porque todos os bispos auxiliares do Patriarcado de Lisboa precisam de ser substituídos. Com efeito, D. Joaquim Mendes já chegou ao limite de idade; D. Américo, agora cardeal, obviamente não vai continuar como bispo auxiliar; e D. Daniel Henriques, que faleceu há já algum tempo, não chegou a ser substituído.

– Então o Senhor Cónego ainda pode vir a ser bispo?!

Oh meu amigo, não me deseje uma coisa dessas! Não tenho hipótese, mas se quer que lhe diga, modéstia à parte, até dava um bom bispo … Não se escandalize, porque isto é o que muitos padres pensam de si mesmos, mas só têm a coragem de o dizer os que não têm ambições pessoais porque, para fazer carreira eclesiástica, não é preciso ser humilde, mas sim parecê-lo! É por isso que o Papa critica tanto o ‘carreirismo’ na Igreja, embora também haja muitos padres e bispos santos, como é óbvio!

– E o Senhor Cónego, se for bispo, já pensou num escudo e lema episcopal?

Escudo não, mas lema sim, em latim e tudo, que é mais pomposo: Inhumilitate, superius! Não se preocupe, que eu traduzo: em humildade, sou o maior!

Terminámos a conversa com uma sonora gargalhada, como há muito não acontecia. E, quando o Cónego Jeremias, invulgarmente bem-disposto, se despediu com um abraço, ainda me sussurrou um latinório, cuja tradução já não lhe pude pedir:

Não se esqueça: ridendo, castigat mores