No passado dia 29 de maio, no programa Contra-Corrente da Rádio Observador, José Manuel Fernandes (JMF) colocou em causa a minha honestidade intelectual. Não foi a primeira vez, e lá tive de ir ouvi-lo. Utilizando a posição de que goza no solilóquio do seu oráculo, JMF lançou corajosamente invetivas insidiosas contra mim. Sublinho: contra mim, não contra as minhas ideias. O tema central do programa era a situação na Ucrânia. Fiquei arrebatado com tanta erudição. Aprendi tanta coisa. Até fiquei a saber que não é da NATO que Putin tem medo, mas sim da União Europeia. Isto foi mesmo dito assim!

Indo ao cerne da questão.

Como o mais esclarecido da “cantareira”, JMF consegue ver luz no meio da escuridão. Reparou em algo não acessível ao mais comum dos mortais: “[a maioria] não percebeu as intervenções mais perigosas, que fazem alguns generais que andam por aí, que estão aí todos os dias.” JMF alertava-nos para estarmos atentos a uns tipos perigosos, apontando o dedo delator aos “dissidentes”. Só ele é que tem o direito de “andar por aí”.

JMF atribuiu uma carga negativa ao que eu disse sobre a então anunciada conferência de paz em Genebra: “Atirou-se [Carlos Branco] contra a cimeira da Suíça,” mas sem explicar o que eu disse ou o que ele pensava sobre o assunto. Como se fosse pecado expressar um pensamento crítico. Estava a preparar a audiência para o que viria a seguir.

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E prossegue, “entre outras coisas, não daria demasiada importância a estes pontos de vista se não percebesse… como alguns dos vídeos das suas [minhas] prestações têm impacto. Há pessoas que [embora] não o digam pensam o mesmo. Essas pessoas estão espalhadas por mais do que um partido. As suas opiniões não valem por si próprias, mas refletem um pensamento mais alargado. Eu diria que algumas delas valem por si próprias… quem conhece estes militares desde os tempos da academia militar diz-me que não fica surpreendido porque… sabia quais eram as suas opiniões políticas nesse período.”

Não deixa de ser cómico, um acérrimo ex-maoísta/estalinista e chefe de redação no jornal “Voz do Povo” invocar o passado dos outros, com mais de quatro décadas, para um juízo de censura sem contraditório. No fundamental, JMF parece manter-se quase na mesma, continuando a recorrer aos mesmos truques e jogadas de malabarista. JMF recordar-se-á certamente dos tempos em que escrevia cartas anónimas à direção do jornal para “entalar” colegas.

Ou de, em 2003, se prestar a publicar um alegado editorial apologético da invasão do Iraque pelos EUA (o mesmo país que uns anos antes tinha fornecido armas químicas a Sadam Hussein) em nome da “direção editorial” do “Público”, que originou uma veemente resposta de um antigo diretor e um enorme desconforto na redação, ao pretender associar o jornal a uma invasão ilegal. JMF recordar-se-á certamente da harmonia e da concórdia que esse ato democrático provocou. Não se conseguiu distanciar das práticas dos tempos da “Voz do Povo”. Está-lhe na massa do sangue.

O truque de JMF é baixo: insinuar, denegrir e enlamear. Eu desconhecia ter alguma vez manifestado o meu pensamento político ao longo dos 40 anos de serviço. Alguns camaradas meus, naturalmente no exercício da sua liberdade, inscreveram-se em partidos políticos, concorreram a eleições (não foi o meu caso) e rabiscam no jornal de que JMF é diretor.

Coerentemente continuou a verve. “Mas apesar de tudo fizeram uma carreira, chegaram a generais e estiveram colocados na NATO. E eu interrogo-me como é que nós em Portugal colocamos nesses lugares de responsabilidade, na NATO, adversários da NATO.”

Sendo certo que no passado JMF se referiu à minha pessoa e às funções internacionais que exerci, não posso deixar de desafiar JMF a dizer onde é que já manifestei opiniões “adversárias à NATO”. Tenho vários textos publicados sobre o tema em jornais e revistas de referência. Se não o fizer terei de o considerar manipulador da opinião pública. Sou o único militar português que ocupou por três vezes cargos de relevo nas Nações Unidas e na NATO através de concurso internacional.

Se JMF soubesse do que fala, saberia que a NATO é um fórum onde se confrontam e se digladiam interesses. Saberia que vários ex-chefes militares da NATO manifestaram publicamente posições muito cuidadosas e preocupadas sobre a forma como os acontecimentos na Ucrânia se estão a desenrolar.

Sabemos como se comportam os cristãos-novos. Quando abandonou o maoísmo e se converteu ao “mercado” JMF teve de convencer os seus patrocinadores que era mesmo um tipo fiável. E daí quem se tornou um idiota útil foi JMF e não eu, como me acusou. Por isso, JMF não debate, denigre. A divergência de opinião é para ele criminosa. Encorajo-o a informar os seus ouvintes daquilo que Kissinger, Kennan, Mearsheimer e tantos outros disseram sobre a expansão da NATO e como anteciparam com rigor o momento que estamos a viver.

JMF é daqueles que acham que os nossos interesses nacionais devem estar sempre subordinados aos interesses de outros, e que essa subordinação não pode ser discutida sob pena de heresia. Ainda nos recordamos do sentido crítico de JMF quando acreditou nas armas de destruição massiva no Iraque e veio publicamente defender a intervenção norte-americana. “Deixem, pois, Bush e Blair fora” exultava JMF em abril de 2003. Uma comparação das suas previsões com os acontecimentos esvazia qualquer credibilidade que se lhe pudesse atribuir. Devia corar de vergonha e retratar-se publicamente pelo erro de análise. Coisa que até Colin Powell teve a altivez e a coragem de fazer de modo muito claro nos últimos anos da sua vida.

Naquela conversa de amigos do Contra-Corrente, a fingir ser uma coisa séria, JMF interroga-se porque é que sendo a Rússia o maior país do mundo “faz tanta questão em querer mais um bocadinho de território na Europa?”. JMF sabe muito bem que não foram ambições territoriais, mas sim a perspetiva de adesão da Ucrânia à NATO o que motivou a ação da Rússia, possível com a alteração da correlação de forças políticas em Kiev proporcionada pela revolução colorida de 2014.

Sabe, e se não sabe devia saber, que Putin, ao contrário do que fez com as repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul, imediatamente reconhecidas pelo Kremlin após a operação militar em 2008, só reconheceu Lugansk e Donetsk passados oito anos após a saída forçada do poder de um presidente democraticamente eleito, nas vésperas da invasão da Ucrânia.

Putin queria manter as duas repúblicas rebeldes na Ucrânia porque ainda alimentava nessa altura a ilusão de poder vir a eleger um novo presidente ucraniano tipo “Yanukovitch”, apesar das novas autoridades instaladas na Bankovka terem ilegalizado o partido vencedor das eleições, para depois convocarem eleições “democráticas”. JMF sabe que está a mentir, e nós sabemos porquê. Exatamente como mentiu sobre as armas de destruição massiva de Sadam Hussein. JMF quer estar bem com os patrocinadores, mas acaba mal com a história.

JMF escolhe seletivamente acontecimentos para compor uma farsa histórica que lhe seja conveniente. Na amálgama das historietas que lucubra deve dizer-nos se o neonazismo na Ucrânia é uma ficção, ou se acredita mesmo que a Ucrânia alguma vez seria capaz de ganhar um conflito contra a Rússia, mesmo com a massiva ajuda internacional.

Um dia destes, não faltará muito tempo, acertaremos contas e veremos quem falou verdade à opinião pública, e quem andou despudoradamente a fazer propaganda e desinformação. Não perderei a oportunidade de o desmascarar. Ao contrário de JMF, a minha lealdade é com a pátria, e com os valores plasmados na Constituição da República portuguesa. É um ato patriótico alertar para os perigos de opções que podem ser dramáticas para o nosso futuro coletivo, fruto de décadas de experiência enquanto militar. Lamento que o bem instalado JMF contribua insidiosamente em sentido contrário nos seus solilóquios radiofónicos.

Pequena errata para não perder muito tempo

  1. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia que as posições de Carlos Branco são bem conhecidas, tal como as de outros militares. Disso mesmo deu conta a imprensa na altura, que logo os referiu como “generais portugueses ‘putinistas’ pró-Rússia”. Também desde essa altura que tenho criticado as suas tomadas de posição e as suas “análises” alegadamente “neutrais”. Nada de novo portanto.
  2. Carlos Branco acusa-me de ter sido maoista, o que é verdade — mas não é uma acusação. Como somos os dois mais menos da mesma idade (eu nasci em 1957, ele em 1958) creio que não ignorará que muitos, nesta nossa geração, quando militaram contra o anterior regime no movimento estudantil, como eu militei, o fizeram enquadrados por organizações radicais. Nunca o escondi, tanto que de todo esse percurso até já dei conta pública num pequeno livro de memórias (Era Uma Vez a Revolução).  No meu caso curei-me dessas ideias mais ou menos quando cheguei à maioridade (então 21 anos) — não sei é se CB pode dizer o mesmo. Não sei se o major-general estará de acordo, mas não tenho por vergonhosa a “conversão” à democracia liberal.
  3. Carlos Branco insinua que eu escrevi cartas anónimas a denegrir colegas. É falso, mas é uma invenção – e uma calúnia – que diz muito sobre quem a profere.
  4. É verdade: enganei-me na guerra do Iraque. Mas poderá quem se tem sistematicamente enganado como “especialista” nesta guerra da Ucrânia atirar pedras? É verdade que não sigo as suas prestações televisivas com a mesma atenção que CB dedicou aos quase 50 anos que levo nos jornais, mas quem o tem feito tem sido eloquente, identificando-o como “o general que lava mais branco”, alguém cheio de “complexidades russas”.
  5. É curiosa a comparação que CB faz entre o que se passou em 2008 nas repúblicas georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul com o que se passou em 2014 em Lugansk e Donetsk e muito poderia ser dito, mas na comparação que faz o mais revelador é ter-se “esquecido” da Crimeia, anexada pela Rússia logo em 2014. É um “esquecimento” revelador da honestidade intelectual do argumento, pelo que por aqui me fico apesar de muito mais poder ter dito.

José Manuel Fernandes