Os homens, e mulheres, inteligentes, educadas e bem informadas do Século XXI sabem perfeitamente, sem margem para dúvidas, que os assuntos da comunidade não podem, nem devem, ficar entregues às mãos rapaces dos indivíduos “privados”, que é como quem diz dos cidadãos individuais. Não, esses apenas pensam no seu interesse próprio, no seu umbigo, não oferecendo garantia de democrática e inclusiva igualdade. Para que a justiça seja cumprida é evidente que aquilo que é comum, e isso significa tudo o que é importante para a maioria, ou seja, na cidade praticamente tudo e, a seu tempo, considerando o embate do nitrogénio, do fertilizante e do metano, tudo praticamente também no campo, deverá ficar nas mãos santas, proto-divinas, puras e imaculadas do burocrata.

O burocrata pode ser de dois tipos. Pode ser o burocrata estatal, onde se incluem homens e mulheres de providencial neutralidade democrática garantindo a bondade da gestão pública — e sendo certo, também, que não haverá qualquer dúvida racionalmente admissível sobre o mérito de tamanha evidência. O outro tipo é o burocrata devidamente munido da sua declaração de efectividade — o bom burocrata é efectivo, logo perpétuo e quase imortal — que gere o bem público que coube em sorte ao colosso privado que controla determinado quinhão da esfera privada como se de uma extensão do Estado fosse. Quer o primeiro burocrata, o público, quer o segundo, o alegadamente privado, não deixam assim de ser uma e mesma pessoa, pois ambos respondem aos “anseios das populações”, através de medidas inclusivas, justas e equilibradas pelo sacrossanto ESG, sempre ditadas bem lá de cima, do Olimpo centralizado que tudo decide e organiza em nome da igualdade, da justiça, da fraternidade e da inclusividade.

O burocrata é, assim, um ser esverdeado, porque larga como rasto uma pegada ecológica neutra, andrógino porque caracterizado por uma linguagem verdadeiramente imparcial e neutra, logo sem género, reproduzindo-se de forma assexuada por decreto, regulamento ou portaria, alimentado a carimbos, certificados e às respectivas taxas, agora digitais. Do mesmo modo, o burocrata é também, por excelência, um ser citadino, daí ganhando a necessidade — moral, ética, civilizacional! — de tudo desenhar, criar e distribuir a régua e esquadro, com direito a compasso, transferidor e escantilhão. Em suma, o burocrata paira sobre a geometria e tudo organiza, aplicando com garbo e orgulho as exigências dos últimos modelos cibernéticos, sistémicos e sistémico-cibernéticos. Aliás, no final, descobrir-se-á que o burocrata verdadeiramente, na sua essência burocrática, já transcendeu o mundo meramente material para, lá do éter digital, como um farol civilizacional, apontar o caminho da salvação que nos garantirá a imortalidade — mas tudo a seu tempo.

Uma ressalva, por exemplo, será que o burocrata não é ainda governado pela máquina de inteligência artificial e que garantirá futuramente a gestão perfeita. No entanto, sendo que os burocratas são pessoas de assinalável mérito pessoal, académico e moral que, atente-se!, e ao contrário dos restantes indivíduos na sociedade, apenas pensam no interesse colectivo democrático, seja ele, como no caso público estatal, aferido por superior decisão eleitoral ou, como no caso do alegadamente privado, definido pelo sempre democrático e inclusivo rating derivado da estrela que o serviço mereceu receber por parte do utente, assim se garante que ao burocrata nunca conte em primeiro lugar o seu próprio umbigo, mas, pelo contrário, o umbigo social tremendo que o algoritmo e as eleições vierem oferecer ao agora farto e abundante mundo material humano. Assim, faz-se ainda a gestão burocrática por intermédio dos intelectos dos próprios burocratas, num mundo de pequenos passos para cada burocrata, é certo, mas num enorme passo colectivo para a verdadeira civilização.

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Estes seres impolutos, graças a Deus!, os nossos burocratas, gerem então o património colectivo, tal como os dias de trabalho que a maioria da população transforma em impostos para contribuir para a causa pública ou, ainda, a grande maioria dos serviços onde essa mesma população estafa as parcas unidades de moeda digital que lhe sobram após ver a maior parte, a comum, liquidada e retida logo na fonte, ainda antes de fazer o seu caminho (digital) do servidor central (digital) para a carteira (digital) de cada um de nós.

Daqui se deve concluir que a maior das virtudes do homem, ou mulher, civilizado, ou civilizada, será precisamente aceitar que, muito melhor do que ele próprio, ou ela própria, é o burocrata o homem, ou a mulher, ou outro, que encarna a pessoa adequada para a gestão dos frutos sociais do seu trabalho, ou seja, da soma de todo o esforço anual de uma nação esmifrada em impostos, junto com o património cultural, económico e infra-estrutural, pagos aqueles, que, a cada ano, sobrem a cada país. Tudo isto o burocrata gere com a independência que uma rede burocrática global, internacional, livre de interesses nacionalistas e retrógrados, consegue hoje em dia, finalmente, garantir. A burocracia global, eis a chave da paz no globo e da verdadeira igualdade entre povos que, a reboque do ESG, são puxados algoritmicamente para a prometida riqueza do primeiro mundo — o burocrático, naturalmente, aquele gizado ao pormenor pelos “stakeholders” internacionais, alimentado a farinha de insectos e movido a pedais.

Assim, a grande virtude do homem, ou mulher, civilizado será — não se duvide! — a confiança que lhe merece o burocrata, pois é no burocrata que o homem civilizado confia o que lhe pertence, tal como ainda a regulação da forma como irá ele, o homem civilizado, trabalhar, casar, cozinhar, alimentar-se, copolar, vestir-se, exercitar-se, pensar, passear, enfim, viver. Eis, por fim!, a glória suprema da civilização industrial liberal: a libertação burocrática das agruras da vida ancestral, das escolhas perante o incerto e o desconhecido, das ansiedades próprias de quem estava fora do espaço seguro que o burocrata agora garante, e pelo qual pressurosamente zela, sempre presente do lado de fora da nossa porta. E não exagero, atente-se!, trata-se mesmo de uma libertação porque é um fardo que se alivia das costas de cada um de nós, homens civilizados que não deixam, a cada dia, de agradecer os confortos dessa civilização; e uma libertação burocrática também, porque é precisamente nos costados do burocrata que essa responsabilidade vai agora assentar.

O burocrata é, deste modo, o salvador da vida terrena. Sem ele e teríamos que pensar, agir e decidir por nós próprios, imagine-se o desaforo. Mas não, porque é o burocrata que nos liberta de nós próprios, que nos salva dos nossos medos, irracionalidade e indecência. Principalmente, é o burocrata a garantia de que o nosso apropriado pensar não foge ao superior interesse moral e civilizacional do ESG que regula o ambiente e o mundo social de acordo com os altíssimos princípios que edificam a nossa superior civilização. O burocrata, quer o avatar digital do mundo novo, quer o zeloso humano que enfrenta o desafio de ajudar a conquistar o futuro paraíso na Terra, representa então o anjo anunciador e criador do novo tempo, o inaugurador desse novo mundo, o novo paraíso, a nova salvação — a burocrática, pois claro.

E a cada momento que, azar do Destino!, o burocrata atropele algum incauto, falhe de alguma forma, ou falhe com alguma coisa, logo grita — não duvidemos — o homem civilizado: que se regule mais!, que se taxe mais!, que se dê mais poder ao burocrata para que ele não volte a falhar! Isto porque o burocrata é já hoje o arauto moral da civilização — e a esta evidência não encontra o homem civilizado qualquer demonstração empírica de falibilidade. Muito pelo contrário, por definição, o burocrata é infalível, portanto, se falhou é porque é preciso mais burocratas e mais burocracia para garantir que nada volte a falhar. E o povoléu civilizado agradece, compungido — afinal, é tudo para o seu próprio bem.

O pináculo da civilização ocidental — assuma-se! — encarnou na figura do burocrata: é o burocrata que identifica “os anseios das populações”, é o burocrata que recebe os pedidos dos “utentes”, é o burocrata que recolhe, distribui e organiza os meios para que o Estado “resolva”, é o burocrata que age em nome do Estado bem como, ainda, é o burocrata que regula e controla — tal como aplica o que regulou — as interações privadas das populações. É também o burocrata que vigia a população, que aconselha quando faz frio e avisa quando faz calor. O burocrata garante que não há excesso de velocidade, que os cintos de segurança estão apertados e que os pesos das crianças nas suas certificadas cadeiras é o apropriado. O burocrata certifica, pesa, fiscaliza e esteriliza a comida, a bebida, as embalagens, os serviços e os meios, bem como os químicos, e respectivas percentagens, que são indispensáveis à boa vida terrena.

O burocrata trata também da saúde, educa os filhos, verifica a qualidade da nossa atmosfera, garante a desinfecção dos nossos WC e patrulha as ruas impondo a ordem, a segurança e o devido distanciamento social. Do mesmo modo, o burocrata verifica por código QR o estado de vacinação de cada um de nós, avisa pelo Telejornal quando é preciso colocar máscara na cara ou, muitas vezes, ficar em casa para não morrer de calor, nem queimado nalgum incêndio ou, como está na moda, por apanhar um qualquer vírus respiratório.

Porque isto não é suficiente, e porque cada burocrata trata de justificar a sua própria importância pedindo a outros burocratas seus superiores pela contratação de mais burocratas seus inferiores, todo o discurso político do Estado burocrático — talvez seja já melhor dizer civilização burocrática — assenta em como criar mais Estado, ou seja, mais regulamentações que regulem os serviços, logo, quer num caso como no outro, criar mais burocratas. Aliás, no estado burocrático a solução é sempre mais burocracia, ou seja, mais burocratas, tudo seres estimáveis que, pagos com os nossos impostos, zelarão por nós, do berço até ao caixão — modelo standard, biodegradável ou reutilizável.

Por estes dias, no que resta do mundo velho, agitam-se ainda alguns críticos porque querem agora os burocratas também colocar outros burocratas a aferir se o género das crianças corresponde ao seu sexo biológico. Isso é função da família, dizem os recalcitrantes retrógrados espantados pelo avanço civilizacional que, brutos, não alcançam. Mas a família é coisa pequena, única, irrepetível, logo promotora de desigualdade e de uma irritante desorganização própria de entidades não-geométricas, organicamente desformes, difíceis de padronizar de acordo com o manual burocrático previamente aprovado. Ora, mas o princípio civilizador é o oposto, é o da régua e do esquadro, do igual, do repetível que, por fórmula e abstracta ciência, de acordo com os “peritos” e os “modelos teóricos”, por “consenso”, se comprovou como o melhor possível, logo aquele que “deve ser”. Este é o princípio civilizador que norteia o Estado, a Nação e a Civilização: que se decida qual a melhor forma e depois se igualize pela racional igualdade. Ou seja, trocando por miúdos, que tudo se organize pelo Estado, pelo colosso algorítmico e, claro está, pelo burocrata.

E assim será o futuro radiante da suprema civilização! A vida familiar será racionalizada e libertada de dúvidas e tensões existenciais que ainda afligem hoje aqueles à beira da libertação civilizadora. A família será, pois, regulada, formada, organizada, harmonizada e geometricamente composta. Os currículos propagandeados aos infantes também, claro, bem como todos os conteúdos que, a uma só voz, passam na TV, no iPad e no iPhone. Finalmente, evidentemente, até o sexo e o florescimento individual íntimo será vigiado, verificado, certificado, taxado, tributado, decretado, organizado por quotas e, salvo uma revolução, autorizado em função da inclusiva justiça social.

E não se duvide! será o burocrata a suprema entidade para levar a cabo mais esta espinhosa missão. Isto porque o burocrata é o paradigma do homem civilizado — e a burocracia o paraíso prometido.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.