“Data-driven economy”, a mais recente buzzword do marketing, traduz o facto de a grande maioria da atual atividade económica, política e social estar intrinsecamente dependente da “observação” dos nossos dados pessoais.

Não importa onde vivemos ou a que grupos demográficos pertencemos: alguém está a recolher os nossos dados para nos perfilar, seguir, avaliar, prever o nosso comportamento, analisar as nossas reações e atitudes, influenciar as coisas que fazemos e compramos e, até mesmo, para influenciar o nossa tendência de voto, aquilo que consubstancia o exercício de um direito fundamental.

A (r)evolução desta “data-driven economy” apanhou-nos de surpresa. As empresas de tecnologia não informaram os utilizadores sobre a forma como estavam a usar os dados e muito menos pediram o nosso consentimento. Também não pediram autorização aos nossos governos. Por outro lado, alguns desses governos, a reboque da(s) “crise(s)” com que nos temos confrontado nas duas últimas décadas, não têm ficado atrás e, numa demanda vigilante e securitária, a todos pretendem vigiar para a todos, supostamente, protegerem.

Empresas e governos têm um apetite insaciável pelos nossos dados. E a quantidade e variedade de dados pessoais que geramos no decorrer da nossa jornada diária é tremenda. As nossas vidas, traduzidas em dados, são a matéria-prima da “data-driven economy” em que vivemos. Entretanto, pelo caminho, perdemos grande parte da nossa privacidade digital: a quem é que ainda não aconteceu entrar no carro e o seu smartphone informar que “o melhor caminho para o local X, é através de Y, e demorará Z minutos”. Não dissemos nada e nem sequer pedimos nada, mas o smartphone acerta em cheio na informação que nos vai sistematicamente apresentando. Tão certeiro e, aparentemente, tão inócuo.

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Quando começamos a perceber o que estava a acontecer, já estava implementada uma omnipresente arquitetura de vigilância digital com recolha massiva de dados pessoais. Alguns autores deram-lhe o nome de “data surveillance economy”. Outros cunharam-na de “surveillance capitalism”. O termo usado pelos marketeers, data-driven economy”, é o menos perturbador.

Nesta, tudo é usado para alimentar essa vigilância digital (em todos os lugares, de forma automática sem intervenção humana e, em grande parte, dissimulada da nossa vista) que tudo recolhe, tudo analisa e tudo vende pela proposta mais alta.

Ao permitir que as empresas (e governos) saibam tudo sobre nós, estamos a permitir que estes nos categorizem e nos manipulem. A maioria dos usos dos dados pessoais obtidos por esta forma de manuseamento é no exclusivo interesse das entidades que nos vigiam.

Privacidade significa, pois, ser capaz de manter, somente para nós próprios, certas coisas do nosso foro pessoal: as nossas esperanças, os nossos medos, o que lemos, o que escrevemos, os nossos relacionamentos, os nossos pensamentos, as nossas experiências (boas e más), os locais que visitamos, as nossas conversas, os nossos planos, as nossas doenças, os nossos erros, as nossas compras, as nossas fraquezas, os nossos rostos ou as nossas vozes. Deste ponto de vista, a privacidade é uma necessidade humana essencial e central para a forma como nos relacionamos com o mundo que nos rodeia. Ser privado de privacidade é fundamentalmente desumanizador.

A intrusão na nossa privacidade digital tem, como efeito colateral, a criação e o aumento de indesejáveis assimetrias de poder entre as entidades e os indivíduos. Destas assimetrias resultam ameaças à liberdade, à igualdade, à democracia, à dignidade, à autonomia, à criatividade e à intimidade das pessoas.

Variadas vezes somos confrontados com a narrativa de que “se não tem nada a temer então não tem nada a esconder”. Isto é profundamente errado. Cada um de nós tem a sua própria voz e opinião. Cada um de nós tem a sua opção de voto. E, nesta “data-driven economy”, muitos são os que nos querem fazer seus porta-vozes nas redes sociais, ou querem que votemos no candidato que defenderá os seus interesses, ou, então, querem que não votemos quando a nossa preferência é pelos adversários deles. Neste mundo global digital, cada um de nós é uma fonte de poder que tanto abrange a vertente económica, como a vertente social ou política.

O domínio da sociedade tenderá a ser exercido por aquelas entidades que sejam possuidoras do maior volume de informação relativa a cada um de nós. Se entregarmos os nossos dados às empresas, as mais ricas governarão. Se entregarmos os nossos dados aos governos, acabaremos por alimentar alguma forma de autoritarismo.

A privacidade digital, sendo uma manifestação de poder, exige que mantenhamos o seu controlo de forma a que nos consigamos proteger de pressões indesejadas e de abusos de autoridade. Para uma sociedade se manter livre é, pois, crucial que as pessoas mantenham a posse dos seus dados e da informação privada que daí advém. É hora de repensar as noções de privacidade digital, de examinar o que está em jogo, de onde vêm as ameaças e o que poderá limitar o poder daqueles que nos estão constantemente a observar, a ouvir, a inferir e a influenciar. E a tecnologia está a evoluir de forma tão rápida que temos uma dificuldade enorme em produzir legislação e políticas que nos consigam proteger de forma atempada e adequada.

Um mundo sem privacidade digital é perigoso. As dialéticas sociais passarão, também, pela luta entre os que defendem a proteção dos nossos dados e os que anseiam detê-los. E quem quer que ganhe esta luta, dominará!

Referências
April Falcon Doss, “Cyber Privacy” (BenBella Books, 2021)
Carissa Véliz, “Privacy is Power” (Bantam Press, 2021)
Shoshana Zuboff, “The Age of Surveillance Capitalism” (Profile Books, 2019)
Bruce Schneier, “Data and Goliath: The Hidden Battles to Collect Your Data and Control Your World” (W. W. Norton & Company; 2016)
Bruce Schneier, “Click Here to Kill Everybody. Security and Survival in a Hyper-Connected World” (W. W. Norton & Company, 2018)
Edward Snowden, “Permanent Record” (Macmillan, 2019)
Christopher Wylie, “Mind’ffck. Inside Cambridge Analytica’s Plot to Break the World” (Profile Books, 2019)