Dia 40 do estado de sítio

É impressionante a preocupação dos “media” nacionais com as vítimas americanas do covid. A Bélgica lidera o “ranking” internacional de mortes/milhão? Os “media” não querem saber dos belgas. A Espanha e a Itália vêm logo a seguir? Que se lixem espanhóis e italianos. E os franceses? Deixá-los esticar o pernil à vontade. Mesmo os portugueses, por acaso conterrâneos dos jornalistas em questão, são assaz desprezados. A aflição do nosso jornalismo está quase toda concentrada nos pacientes dos EUA, pelos vistos encarados como seres humanos superiores, cujo falecimento é um golpe na humanidade e merece notícias e comentários intermináveis. Escrevo “quase” porque os “media” nacionais também se compadecem um bocadinho com as vítimas britânicas e brasileiras. É uma selecção engraçada. Não é uma selecção natural. Mas seria engraçado observar o que a selecção natural faria a esta espécie de “jornalismo”.

Dia 41 

O “milagre português” também passa pela doçura com que engolimos dogmas. Vejam um: temos o melhor SNS do mundo. O melhor SNS do mundo, que tem a menor quantidade de camas para cuidados intensivos da Europa (Roménia e Bulgária incluídas), entra em pânico ante a perspectiva de uma epidemia terrível. A epidemia revela-se relativamente branda, com apenas uma ou duas centenas de pessoas em simultâneo a necessitarem das UCI. Ainda assim, o melhor SNS do mundo suspende tudo para se concentrar no covid. A quantidade “excedente” de vítimas mortais de doenças “tradicionais” é cinco vezes superior às vítimas mortais do covid. Graças ao PS, que o criou em tempos e demoliu entretanto, o melhor SNS do mundo soma mais um sucesso.

Dia 42

A 5 de Março, o ministro da Economia jurava que o impacto do vírus no sector que “tutela” seria “bastante reduzido”, excepto em áreas insignificantes como os “transportes, as viagens e a hotelaria”. O homem sabe do que fala. À entrada de Maio e, após 15 dias de Estado de Desnorte, 45 de Estado de Emergência e uma quantidade ainda indefinida de Estado de Calamidade, é garantido que não chegaremos ao Estado de Austeridade. É verdade que há por aí alguns recém-desempregados (meia dúzia), algumas empresas que teimam em reabrir para conseguir facturar (três ou quatro) e alguns empresários (talvez dois) que preenchem erradamente os escassos setecentos requisitos que o Simplex exige à reabertura. Fora isso, tudo impecável. Quando atingirmos o Estado da Bem-aventurança, leia-se quando, à semelhança dos venezuelanos, disputarmos gatinhos para o guisado, poderemos sempre culpar o covid. E a Holanda, não esquecer a Holanda.

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Dia 43

Nas opiniões isentas do Presidente da República, de certos governantes e do ocasional artigo encomendado na imprensa estrangeira, o mundo deslumbra-se ante o “milagre português”. Ei-lo: proporcionalmente, somos o 11º país do mundo com mais mortos. Ou seja, só há uns 180 países melhor do que nós nessa matéria. É, de facto, extraordinário. Como se conseguiu tamanha proeza? Um secretário de Estado da Saúde, aquele sujeito grisalho que nas conferências diárias ouve as perguntas dos repórteres sem responder a nenhuma, foi explicar a um jornal britânico: Portugal preparou-se para o vírus desde Janeiro. Então não? Em Janeiro, a senhora da DGS negava que o vírus fosse contagioso. Em Fevereiro, a senhora da DGS duvidava que chegasse a Portugal. Em Março, a senhora da DGS recomendava as visitas aos “lares” da terceira idade. Em Abril, a senhora da DGS continuava no cargo, outro milagre português.

Dia 44

Como é costume nas nações “populares” e “democráticas”, o poder deseja colocar o “povo” a “mandar” em tudo o que é penduricalho. No caso, e a curioso pretexto do vírus, pretende-se que o contribuinte patrocine ainda mais a TAP, graças à visão de um sonhador notabilizado por viver à custa de um pai que vive à custa do PS que vive à custa do Estado. Não acho mal. É verdade que há alternativas mais baratas e mais eficazes à TAP. Mas o prazer de viajar em aviões com a bandeirinha de Afonso Costa e o nome de uma qualquer “personalidade” nativa não tem preço. Ou tem: agora serão centenas de milhões. Entretanto, se a ideia é nacionalizar prodígios onerosos que o mercado não quer, era interessante nacionalizar o ministro Pedro Nãoseiquê Santos. Diz ele que “a música agora é outra”, e é: chama-se “A Internacional”.

Dia 45

Ordens e Progresso. António – “O mundo mudou em 360º” – Costa, que além de culto é democrata, lá arranjou maneira de se livrar da dependência do PR e da AR, esses opositores ferozes, para mandar sozinho, conforme manda a decência. Vai daí, decretou uma série de regras para cumprirmos até se descobrir, segundo ele, uma cura ou uma vacina. É então possível que tenhamos de viver nesta agradável distopia até 2039 ou assim. Excepto, claro, se formos estalinis…, perdão, sindicalistas ou sindicalizados. Estes podem juntar-se aos magotes, em paz e com regras diluídas porque defendem os direitos dos trabalhadores. Os trabalhadores a sério é que não têm a vida tão facilitada. Na medida em que os trabalhadores a sério aceitaram o 1º de Maio e outros enxovalhos sem um resmungo, é bem feita! De brinde, a CGTP rejeita ajudas da UE e o próprio euro, os últimos obstáculos a separar-nos da gloriosa Caracas.

Dia 46

Gosto muito das pessoas jovens ou de meia-idade que se enclausuraram há dois meses e não saem à rua nem que a cozinha irrompa em chamas. Fiquem em casa, dizem elas. Confrontadas com os inconscientes que se passeiam lá fora, insultam-nos aos gritos ou em pensamento. Confrontadas com as medidas do “desconfinamento” (palavra linda), opinam, trémulas de pavor, que ainda é cedo, que falta chegar ao pico, que devíamos permanecer fechados na dispensa por mais dois meses ou dois anos, enquanto não se vencer a “guerra” (juro) ao vírus. Esses guerreiros do sofá e da Netflix, obedientes e mansos, são dignos da minha maior admiração. Por isso, eu nunca aproveitaria o fim-de-semana para violar as normas sagradas do recolher obrigatório, nem para percorrer 800 quilómetros, nem para entrar e sair de uma resma de concelhos, nem para tomar café sentado à mesa de uma pastelaria, nem para fingir que habito um lugar vagamente civilizado e não um parque de diversões socialista. E se o fizesse, não o diria aqui.