Depois da vitória que conduziu a seleção do Uruguai aos quartos de final do Campeonato do Mundo, Edinson Cavani deu a conhecer uma carta que tinha escrito ao pequeno Cavani de nove anos. É um exercício que quase todos acabamos por fazer, consciente ou inconscientemente, quando tecemos as nossas narrativas pessoais, num diálogo constante entre aquilo que fomos, o que julgamos ser e a angústia do que seremos.

Revisitar os nossos sonhos de infância é entender melhor as pequenas decisões que dão forma às nossas vidas, e também as grandes decisões que dão forma às nossas vidas. Não repete continuamente Ricardo Araújo Pereira que faz o que faz porque passou a infância à procura do sorriso da avó? Não o repete ele tantas vezes que ficamos na dúvida se se justifica ou se se tenta convencer? Não está, afinal, tudo lá atrás, quer porque nos limitamos a prosseguir o que fomos, quer porque procuramos nesse revisitar as lógicas do que nos tornamos?

O exercício de Cavani é, de tão infantil, um excesso de verdade: «Como criança, vives a vida com uma intensidade e uma paixão que é impossível como adulto. Nós tentamos agarrar-nos a esse sentimento à medida que ficamos mais velhos, mas escapa-nos por entre os dedos. Há demasiadas responsabilidades. Demasiada pressão. Demasiada vida vivida no interior.» (Vídeo aqui.)

Perder a infância é perder a inocência do acesso imediato ao mundo-real; é interpor continuamente camadas. Interpomos emoções, juízos morais, razões, os nossos medos, as nossas obsessões, os livros que lemos e as palavras que acumulamos. Torna-se cada vez mais difícil sentir intensamente, e somos remetidos para o interior da nossa mente como se vivêssemos presos num aparelho de televisão. Tornamo-nos incapazes de ouvir os pássaros (que ainda resistem) ou de reparar na lua, a não ser que nos digam que estamos perante um acontecimento astronómico raro. E vamos apagando as estrelas com as luzes da cidade e cortando as árvores que estragam os nossos passeios e colocando cimento naquilo que era terra e erva e animais. Vamos perdendo aos poucos a capacidade de sentir.

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A vivência parece, assim, menos pura porque menos imediata. E talvez por isso recordemos com nostalgia os pequenos prazeres da infância. A água gelada do mar no corpo e o gosto do gelado na praia e o prazer dos pés sujos de terra. Sentimo-nos adultos quando a experiência de andar à chuva se torna inaceitável. Crescemos e interpomos distâncias. E por isso precisamos continuamente de experiências novas. Que, por sua vez, nunca estão ao nível das expectativas. Os locais que visitamos nunca são tão bonitos como nas fotografias que vimos nas redes sociais; e embora sintamos uma pequena satisfação por acrescentar mais um país à lista dos visitados, passamos a maioria do tempo de olhos no smart-phone em contacto com o ponto de partida. Precisamos, a cada momento, de uma dose adicional mais forte, que se vai acrescentando às camadas acumuladas do nosso distanciamento.

Dir-me-ão que esta é a condição humana. Ou, pelo menos, a condição do homem moderno. Mas podemos aventar a hipótese de que teríamos vidas melhores se conseguíssemos diminuir essas camadas?

Como Conan Osiris nota, o busílis é que adoramos bolos e telemóveis e não conseguimos evitar as linhas de zeros e uns que vão apertando o cerco à nossa volta. É difícil resistir ao charme hipnótico do progresso. Afinal, quem não quer ser smart e ter a mais recente tecnologia? O preço a pagar de ficarmos dependentes da sua validação parece irrelevante. Mesmo que os pequenos acontecimentos da nossa vida só existam se forem publicados nas redes sociais, as viagens só assumam contornos reais se partilharmos fotografias, as relações amorosas só resultem online. A nossa memória torna-se dispensável (temos GPS) e a nossa capacidade de juízo é irrelevante se existem sítios que nos dizem que restaurante escolher.

Yuval Noah Harari fala-nos do homem que se quer deus. Não é nada de novo, dizem-me alguns. Foi sempre esse o fardo da humanidade – o querer deixar de o ser. E se assim é, talvez estejamos no caminho certo: não consiste a condição divina na elevação da experiência mundana?

Mas concentremo-nos. Este é um texto sobre futebol e sobre o prazer do golo. Fizemos uma deriva tecnológica como se não pudéssemos escapar dela, como se não conseguíssemos evitar falar da sua validação. Como se. É que já não gritamos golo. Ou gritamos, mas com menos intensidade. Sentimos cada vez menos. É que damos por nós presos à ilusão de que a tecnologia permite um acesso privilegiado à Verdade-com-letra-maiúscula. Abdicamos da experiência da vida pela ilusão da Verdade. E ao fazê-lo, abdicamos dos poucos momentos em que regressávamos à inocência da infância. O prazer de gritar golo e não ficar à espera que o VAR valide.

Professora da Universidade da Beira Interior