Yuval Noah Harari é sobejamente conhecido pelos seus livros ‘Homo Sapiens’ e ‘Homo Deus’. No último, este professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém refere que a espécie humana, depois de ter vencido a fome, a doença e a guerra, busca a imortalidade, a felicidade e a divindade. É verdade que ainda há quem morra de fome, de doença e nas guerras, mas o certo é que estas calamidades não atingem os níveis catastróficos de outrora, como a fome que matou 15% da população francesa entre 1692 e 1694, ou a peste negra que levou mais de 200 milhões de pessoas no século XIV, ou até como a Primeira Guerra Mundial que, entre 1914 e 1918, tirou a vida a cerca de 40 milhões de mulheres e de homens. Com estes e outros exemplos, Harari chama a atenção para o seguinte: a fome, a doença e a guerra continuam a matar, mas de forma controlada. Onde há fome, a comunidade internacional une-se e acaba com ela; as doenças, como o ébola, não se propagam descontroladamente pelo planeta e a guerra é cada vez mais localizada.

Até aqui Harari realça apenas o óbvio. É a partir de determinada altura do livro que começa a ser polémico. Primeiro, diz-nos que o humanismo é uma nova religião que coloca o Homo sapiens no centro da vida, substituindo-se a Deus. Acrescenta ainda que, dentro do humanismo, o liberalismo, que se centra na liberdade individual, prevaleceu sobre os outros ramos desta nova religião, nomeadamente o socialismo e o humanismo evolucionista, que derivou para o nazismo. Foi o liberalismo que permitiu aos humanos, através da tecnologia, vencer a fome, a doença e a guerra. E como faz parte da natureza humana querer sempre mais, a evolução tecnológica não vai parar até atingirmos a imortalidade, a felicidade e a divindade. Se tivermos em conta as últimas descobertas na nanotecnologia e na robótica, a tecnologia vai mesmo ultrapassar a espécie humana. Ora, quando tal suceder, o Homo sapiens deixa de ser o centro da existência dando o seu lugar às máquinas. A ideia parece absurda, mas Harari dá-nos exemplos com resultados espantosos. E é aqui que chegamos ao ponto mais polémico: para o autor, a evolução tecnológica não nos diz apenas que as máquinas serão melhores que os humanos, mas que estes, à semelhança das máquinas, não são mais que uma soma de algoritmos.

Não sendo nós mais que uma soma de algoritmos, tendo Deus morrido, o que resta então? Qual o sentido da vida?

Se não somos mais que meros algoritmos, se não somos melhores que as máquinas nem que os animais, se não fazemos mais que seguir o que está pré-determinado no nosso código genético, o liberalismo, a crença no free will, na liberdade individual, é naturalmente posta em causa. Cada um de nós pode ser livre de querer ser advogado ou médico, jornalista ou arquitecto, mas a nossa escolha (pretensamente livre) mais não foi que pré-determinada pelo nosso sistema genético. A nossa escolha entre lermos um livro ou ouvirmos uma música, não passa de uma reacção bioquímica. “I don’t choose my desires. I only feel them, and act accordingly‘ (pág. 331).

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Se não somos livres, o liberalismo não faz sentido e o espaço ideológico para as teorias totalitárias volta a estar em aberto. Não sou um especialista nestas matérias, mas a leitura do livro de Yuval Noah Harari recordou-me algo que aprendi na minha educação católica. Harari diz que não somos livres porque estamos pré-programados. No entanto, o ponto fulcral da religião que acredita na existência de um Deus, de qualquer religião, é precisamente essa: o de contrariar parte da nossa essência. O de ir contra o inevitável. Daí o próprio conceito de sacrifício, que mais não é que uma negação dos nossos instintos primários, a ideia de que podemos ser mais do que somos, superarmo-nos, fazer o oposto do que nos apetece. Seja a não submissão ao consumismo mais primário de quem compra porque sim, o de não seguir o caminho fácil da mentira ou da prepotência, seja o de quem nega a si mesmo algo que lhe apeteça fazer, comer, beber, ou simplesmente dizer. A mensagem subjacente de qualquer religião que coloca Deus no centro da vida é que a espécie humana pode ser mais do que aquilo que o destino lhe traçou. Toda a ideia da libertação divina mais não é que isso mesmo: a libertação do preestabelecido. E não são só as religiões a dizê-lo. Até na literatura, como no Conde de Monte Cristo, essa força peculiar que apenas a espécie humana detém é retratada: um homem que nega os seus instintos mais primários, o amor, o prazer, a ambição, a gula, a inveja, única e exclusivamente para se tornar intocável e realizar o que mais deseja.

Harari escreveu um livro estupendo, cuja leitura sugiro, e que nos deixa vários alertas para o futuro. Um destes é relativo ao poder dos computadores que ultrapassará o do Homo sapiens em muitas das áreas em que estes se especializaram. Médicos, taxistas, camionistas, advogados, administradores de empresas, farmacêuticos, informáticos, músicos e até desportistas, poderão ter os seus dias contados. A partir do momento em que nos especializámos em áreas muito específicas torna-se mais fácil um algoritmo fazer melhor que nós e nos substituir. Não sei, não discuto. Mas é um ponto que não devemos descurar. Até porque, se tal suceder, o declínio do Ocidente pode não vir do declínio demográfico, podendo este até vir a ser positivo, mas da substituição dos humanos pela máquina. Do ‘Homo Sapiens’ pelo ‘Homo Deus’. Independentemente disso tudo, não deixa de ser interessante como Harari nos assusta com uma ideia polémica que, no fundo, a humanidade conhece desde o início.

Advogado