“Olhai as aves do céu que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. (…) Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam: E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.”

Ainda que não se seja crente, como eu não sou, há que ceder no facto das palavras de Cristo, estas transmitidas pela mão de Mateus no capítulo 6 da sua versão do Evangelho, têm uma estética apaixonante. Tão apaixonante que nos faz entender porque tanta gente, ao longo de tantos anos, segue as suas palavras como o fundamento de toda a verdade.

Quando resolvi a meio da minha vida profissional que esta se passaria a fazer tendo este vosso criado como patrão foi, como devem imaginar, uma decisão algo inconsciente. Se o meu nome de família estivesse na lista dos capitães da indústria, talvez as coisas tivessem sido mais fáceis do ponto de vista psicológico, mas para quem parte do zero a coisa é aterradora. À medida que chegava a data final do pré-aviso ao meu antigo patrão, e entre almoços em que tentavam que mudasse de ideias, tudo o que a minha cabeça me dizia era “tu deves ser completamente estúpido!”. E que pior patrão poderia arranjar que eu próprio?

Não é à toa que os livros de teoria económica colocam o empreendedorismo como um recurso, dos tais que são finitos e escassos. É preciso experimentá-lo para se perceber exatamente porquê. Racionalmente é sempre uma má decisão, porque é algo que sai ou de pessoas que estão bem num emprego e o valor esperado do seu rendimento futuro é muito superior ao rendimento esperado do passo arriscado que vão dar, ou de pessoas que ficaram no desemprego e, se ficaram, é porque o valor do seu trabalho não foi particularmente apreciado. Ou seja, terá sempre que ser algo que sai do íntimo de cada um na persecução de algo verdadeiramente intangível. Eu queria (e continuo a querer) ser o melhor do mundo, sabia ter feito metade do caminho, mas precisava de ajuda para fazer a outra metade. E hoje há 200 pessoas que me tentam ajudar nessa tarefa, às quais sou grato em todo e cada um dos dias que saio do trabalho.

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Mas, no entanto, o empreendedorismo é mesmo semear para segar e ajuntar. É trabalhar e fiar. Levadas à letra as palavras ditas por Cristo, e de acordo com o Evangelho segundo Mateus, a vida seria feita de esperar que o alimento viesse fornecido pelo Pai celestial e todo o empreendedor seria perseguido. E, em abono da verdade, é-o. A sociedade portuguesa tem sido dominada por uma manta de moralismo fanático que nos faz atacar todo o empreendedor que possa levantar a cabeça acima daqueles que vivem alimentados por um pai celestial chamado república portuguesa. Não retirem destas palavras que eu acho que vivemos num estado cristão. Mas vivemos num país socialista, como diz o J. César das Neves, alimentado por fanáticos que levam Cristo à letra. Cristo foi, pelo contrário, um empreendedor notável que, como poucos, sofreu as dificuldades de o ser. Racionalmente teria sido melhor ter optado por outro caminho e só mesmo aquele algo verdadeiramente intangível o tornou no maior de todos os empreendedores (se calhar estou a ser herético, mas que me desculpem os cristãos).

O facto de sermos demasiado gordos para aves do céu e feios para lírios do campo, parece não nos impedir de sentir o direito de nos vestirmos como Salomão, dispensando as precedências de trabalhar e fiar para tal. E, se fosse apenas uma questão de ódio ao trabalho, que venha atirar a pedra quem nunca pecou. Mas é um pouco mais que isso. É uma espécie de ódio às pessoas que o querem fazer, uma corrente de tipo xenófoba que luta para que os empregos não sejam roubados por quem trabalha.

A nossa mais recente vítima foi o criador da Padaria Portuguesa, um sucesso empresarial raro que emprega 1200 pessoas das quais conheço circunstancialmente as 4 ou 5 que me atendem na loja das Amoreiras. Para mim, seria um excelente sinal ser vítima destes ataques porque isso significaria um sucesso muito maior do que aquele que tenho. Mas, para nós portugueses, pouco interessa que 1200 pessoas passem a ter um lugar no mercado de trabalho com contratos e descontos. O que interessa é que alguém está a semear, a segar e a ajuntar, em vez de ser alimentado pelo pai celestial, como mandam as passagens das escrituras que os fanáticos adoram. E qual o crime cometido pelo padeiro? Deu uma entrevista a um jornal em que se focou maioritariamente na abertura de lojas e na faturação, falando menos dos trabalhadores. Trabalhadores esses que, segundo os talibãs, trabalham em condições deploráveis, apesar de nenhum dos acusadores ter falado com os trabalhadores. E não deixa de ser surpreendente que saibam o que são condições de trabalho, atendendo as raras vezes que o praticaram.

Tenho como crença que esta nossa estranha religiosidade é consequência direta da nossa fraca intelectualidade. A nossa vida pública é dominada por pessoas de fraquíssima formação matemática. Enquanto entre os líderes dos partidos alemães nas últimas eleições encontrávamos mais que um doutorado em ciências duras; nos portugueses o mais provável é encontrarmos mais que um duvidoso licenciado em ciências de treta. E onde é que o sistema educativo anda a lutar por reduzir a importância da matemática e aumentar a das “ciências” sociais? Acertou, não é na Alemanha…

Esse défice educativo leva a que não entendamos a relação entre economia e trabalho, a acharmos que o nosso pai celestial pode vestir-nos como reis independentemente daquilo que façamos na vida. Chamamos “intelectuais” a sociólogos, a artistas e a pensadores de coisa nenhuma e, naturalmente e por oposição, só podemos condenar quem resolve alavancar o seu trabalho e tornar-se empreendedor. Olhamos a nossa vida económica um pouco como olhamos para o futebol: consumimos a arte dos jogadores que transpiram no campo, mas o que respeitamos é a intelectualidade dos comentadores demasiado obesos para pontapear uma bola ou para dar um passo na relva sem assistência médica. Quão pesados e feios são os nossos lírios do campo.

Insistimos em ignorar, pela fraca educação, que aquilo que os trabalhadores retiram dos seus patrões é exatamente aquilo que nós, como consumidores, queremos. Podíamos exigir que todos os patrões aumentassem os seus empregados em 30%. Sem grande esforço intelectual (acho eu, que não sou um), rapidamente percebíamos que isso não aumentava ninguém, porque tudo aumentava de preço na proporção que recebíamos mais. Em alternativa, podíamos exigir que um patrão em particular, vamos tomar o exemplo da Padaria Portuguesa, aumentasse os seus empregados em 30%. Estou quase certo (mas não sei) que 30% não é a margem operacional da empresa, pelo que aumentar os empregados em 30% ou em 500% teria o mesmo resultado: amanhã estaria fechada e os seus 1200 trabalhadores a fazer de aves do céu ou de lírios do campo, à espera de serem vestidos. As relações dos empreendedores com os seus trabalhadores, com os seus clientes e com os seus fornecedores, são relações que vivem todos os dias da procura de um equilíbrio que, no fim, é sempre determinado pela vontade do cliente. Se o cliente não quiser, não há trabalhadores, empreendedores, fornecedores, etc. Sim, o cliente somos nós.

Nunca vão ouvir de mim, ou de qualquer outro empreendedor (penso), uma crítica ou condenação a quem decidiu nunca o ser. Ser-se empreendedor é sempre uma situação difícil em qualquer circunstância. Mesmo fora do ambiente de religiosidade estrita em que vivemos. Muitas vezes, amigos meus procuram o meu conselho porque estão a pensar dar um passo na direção do empreendedorismo e eu sou o primeiro a dizer que devem ponderar esse passo, se não vejo neles aquele fator intangível, que não garante o sucesso, mas sem o qual ele não vai aparecer de certeza. Há centenas, milhares de trabalhadores cujo talento é fabuloso, mas não é alavancável. Quem acha que tem esse talento, mas precisa de ter mais que dois braços e uma cabeça, então, sim, deve dar o passo. Passo esse que implica semear, segar, ajuntar, trabalhar e fiar. E, quando olhar as aves do céu e achar que têm piada, espere até que lhe façam o serviço em cima da pintura do carro.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer