No actual sistema partidário, não há partido que mais se assemelhe ao PCP do que o Chega. Ambos fazem parte do regime, mas são contra o regime. Ambos estão no Parlamento, mas para o atacar. O PCP, fiel à velha estratégia frentista, apenas aceitou a democracia parlamentar no 25 de Abril para a substituir por uma “democracia popular”, ou seja uma ditadura comunista, assim que estivessem reunidas as “condições objectivas” para a “revolução proletária”, no dialecto do costume. A sua adesão à democracia pluripartidária nunca foi sincera. Se alguém tem dúvidas, basta ler o que Álvaro Cunhal disse a este respeito em 75. Não estou a pensar na célebre entrevista a Oriana Fallaci, em que ele garantiu que em Portugal nunca haveria “uma democracia de tipo ocidental, como há na Europa”, entrevista posteriormente desmentida pelo PCP sob a alegação de que o seu Secretário-Geral teria sido mal interpretado. A mesma ideia, quase ipsis verbis, pode ler-se num discurso de 28 de Junho desse ano, publicado sem escândalo pelas Edições Avante (Discursos Políticos, vol. 5, p. 86): “em Portugal, não haverá uma democracia burguesa de tipo ocidental”. Por democracia burguesa entenda-se, claro está, a democracia parlamentar que hoje conhecemos. André Ventura, por seu lado, já disse em várias ocasiões que pretende fundar uma IV República, abstendo-se convenientemente de explicar o que isso seja, e que os deputados do hemiciclo, exceptuando a sua messiânica pessoa, não representam o povo “lá fora”. Para um partido que teve 1% nas últimas eleições, a refundação do regime e o monopólio da representação soam a utopias tão irrealistas como a sociedade sem classes, mas os messias não se atrapalham com pormenores.
Há, no entanto, uma grande diferença entre uns e outros. Em 75, o PCP tinha um projecto político claro. Assustadoramente claro. É possível que, algures entre o fim do PREC e o fim da União Soviética, tenha renunciado à via revolucionária para lá chegar. Não por convicção, mas por táctica. É possível, embora os louvores às sobreviventes Cuba, Venezuela e Coreia do Norte nos recordem, aqui e ali, que engolir o sapo da geringonça não significa engolir o sapo da democracia. Em contrapartida, os sapos de Ventura têm a forma mais personalizada, mas menos doutrinal, dos políticos, dos ciganos e dos pedófilos. Não é exactamente um programa. E ninguém, nem mesmo os fiéis, leva muito a sério o que passa por programa do partido. Tanto é assim que, segundo algumas notícias, o Chega estaria a reformulá-lo para não parecer que quer acabar com o SNS. Talvez, entre os seus eleitores, haja uma vaga nostalgia dos bons tempos em que o Prof. Salazar governava este jardim à beira-mar plantado. Mas até os mais saudosistas percebem que, no Portugal de 2020, “Deus, Pátria e Família” não ganham votos sozinhos. Daí o recurso aos políticos, aos ciganos e aos pedófilos.
É por isso que os gritos de “Vergonha!” a propósito de qualquer indignação popular, ou as propostas de confinamento étnico e castração química, são mais graves do que parecem. À falta de melhor, resumem o programa do Chega. Que consiste em ganhar votos à boleia do ressentimento com a democracia. Não chega para fundar a IV República, mas faz crescer nas sondagens. Porque o regime, com os seus inegáveis impasses, tem feito por ignorar o desencanto de muitos que engrossaram a abstenção e agora se voltam para a retórica extremista. Seria um erro subestimá-los. Seria um erro ainda maior subestimar as causas da revolta. A demagogia do Chega preocupa-me menos do que a corrupção, a estagnação económica ou a falta de mobilidade social, pecados do “sistema” com os quais nunca nos poderemos conformar. Não tenhamos ilusões. A força dos extremos está, como sempre esteve, nas fraquezas do centrão. Se os democratas dos vários partidos não têm um projecto reformista para o país e a coragem de o defender, um projecto de liberdade, justiça e desenvolvimento como tinham em 75, os seus inimigos saberão aproveitar-se. Ontem Cunhal, hoje Ventura.