Chego tarde à polémica provocada pelo já célebre artigo de Maria de Fátima Bonifácio no Público e não tenho nada de novo a dizer. Além disso, concordo com a sua oposição às quotas para minorias no mercado de trabalho, na universidade e no Parlamento, e acredito que a discriminação positiva é uma entorse aos princípios liberais da meritocracia e da igualdade perante a lei. Mas esta questão torna-se secundária perante dois argumentos falaciosos e muito pouco liberais.

O primeiro é a generalização sobre os negros e os ciganos, que a leva a cair na velha armadilha ideológica do determinismo. Dizer que os “ciganos são inassimiláveis” ou que “os africanos são abertamente racistas” não é apenas uma caricatura de mau gosto. É condenar à suspeita todos os ciganos que procuram integrar-se na sociedade portuguesa, apesar dos obstáculos que enfrentam, e todos os negros que não são racistas, apesar dos preconceitos de que são alvo. É negar a individualidade a um número vastíssimo de pessoas em nome da sua origem étnica ou cultural. É, em suma, desprezar a meritocracia e a igualdade, os tais princípios liberais que as quotas – e, ironia das ironias, Fátima Bonifácio – põem em causa.

Seria uma grande ingenuidade esquecer o peso da cultura ou da etnia nos comportamentos, mas seria um cinismo ainda maior decretar que a herança social os determina sem hipótese de mudança. Um cinismo que se recusa a ver o elemento da condição humana ao qual os historiadores devem estar mais atentos: a liberdade individual. Porque em história não há leis, ao contrário das ciências naturais. Nenhum ser humano está condenado, pela sua origem, a um destino escrito nas estrelas (ou nas páginas de opinião do Público). É por isso que a democracia continua a ser o pior dos regimes, exceptuando todos os outros. Apesar de tudo, é aquele que melhor defende a possibilidade de mudar as circunstâncias em que vivemos. Apesar de tudo, é aquele em que não há “inassimiláveis”.

O segundo argumento falacioso é a invocação da “entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”, da qual os negros e os ciganos estariam excluídos. Convenientemente, Fátima Bonifácio não define que coisa seja a “Cristandade”. Percebe-se porquê: dá mais jeito brandir abstracções indefinidas contra outras abstracções indefinidas. Supondo, porém, que o termo sirva para descrever as sociedades europeias ou ocidentais, num sentido equivalente ao legado da “Grande Revolução Francesa de 1789” também não extensível a essas raças “disfuncionais em supermercados”, vale a pena lembrar alguns pormenores.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando a dita “Cristandade” nasce, ali pelo início da Idade Média, é já um fruto cruzado de culturas muito diferentes: a religião judaica, a filosofia grega, o direito romano. Cresce depois, no espaço a que hoje chamamos Europa, assimilando povos germânicos, celtas, eslavos e escandinavos que as civilizações clássicas tinham por “bárbaros” (ou seja, os negros e ciganos de então). Opera o milagre de conviver, nem sempre em paz, com judeus e até com muçulmanos – na Península Ibérica, na Sicília e nos Balcãs. Ao contrário do que geralmente se pensa, é quando a “Cristandade” começa a desintegrar-se, acompanhando a homogeneização cultural imposta por Estados cada vez mais centralizados, que Portugal e Espanha expulsam as suas populações não cristãs, tal como a Inglaterra fará pouco depois aos católicos e a França aos protestantes. Mesmo assim, ciganos e negros ficaram e a sua cristianização será, com maior ou menor sucesso, um dos factores preferenciais de assimilação. Nos países católicos, por exemplo, os negros formaram confrarias próprias, com frequência dedicadas a Nossa Senhora do Rosário. Não deixa de ser uma ironia, mais uma, que Salvini pretenda agora impedir a sua entrada na Europa sacando do terço em comícios da extrema-direita.

Nenhum destes processos históricos foi fácil, o que talvez explique o recurso a argumentos cristianíssimos por parte dos nossos contemporâneos mais dados a abstracções indefinidas e a idênticas dificuldades. Mas nem a “Cristandade” nos poderá salvar de dois erros simétricos. À esquerda, o de fechar os olhos aos problemas. À direita, o de fechar os olhos às soluções. Para combater o primeiro, Fátima Bonifácio cai no segundo. Sem se dar conta de que ambos são mais iguais do que parecem, na sua igual negação da história. E que, se hoje pode falar em “Cristandade”, é apenas porque a “Cristandade” se deu sempre ao trabalho de assimilar os “inassimiláveis”.

Investigador do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa